domingo, 30 de setembro de 2012

Olavo Bilac: As Velhas Árvores

Ilustração de Joba Tridente

No dia um de outubro comemora-se o Dia do Idoso. Como estou numa fase de redescoberta de Olavo Bilac e estamos (oficialmente) na Primavera estou compartilhando este seu belo soneto que celebra a Natureza em todos nós: As Velhas Árvores. Ele foi publicado em seu livro Poesias Infantis, de 1929, onde se encontram, também, as belas poesias O Avô e A Velhice.


As Velhas Árvores

Olha estas velhas árvores, — mais belas,
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto à sombra delas
Vivem livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E alegria das aves tagarelas...

Não choremos jamais a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

Arte de Joba Tridente

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Monteiro Lobato: Negrinha



NEGRINHA (1927)

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.

Ótima, a dona Inácia.

Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

- Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.

- Cale a boca, diabo!

No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer…

Assim cresceu Negrinha - magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.

- Sentadinha aí, e bico, hein?

Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.

- Braços cruzados, já, diabo!

Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas - um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo - não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim - por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida - nem esse de personalizar a peste…

O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta…

A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos - e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo - essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”…

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

- Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!…

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma - divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha - coisa de rir - um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta - atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

- “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste - e foi contar o caso à patroa.

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

- Eu curo ela! - disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

- Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

- Venha cá!

Negrinha aproximou-se.

- Abra a boca!

Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

- Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?

E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

- Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida… Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária - mas que trabalheira me dá!

- A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora - murmurou o padre.

- Sim, mas cansa…

- Quem dá aos pobres empresta a Deus.

A boa senhora suspirou resignadamente.

- Inda é o que vale…

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu - alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.

Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também… Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado - e findo o seu inferno - e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?

Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral - sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos - a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

- Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

- Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. - Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus… Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.

- Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! - refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.

Chegaram as malas e logo:

- Meus brinquedos! - reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

Que maravilha! Um cavalo de pau!… Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais… Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos… que falava “mamã”… que dormia…

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

- É feita?… - perguntou, extasiada.

E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.

As meninas admiraram-se daquilo.

- Nunca viu boneca?

- Boneca? - repetiu Negrinha. - Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

- Como é boba! - disseram. - E você como se chama?

- Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

- Pegue!

Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente… era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.

Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.

Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo - estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

- Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?

Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.

Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha…

Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!

Assim foi - e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!… Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos… E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

Mas, imóvel, sem rufar as asas.

Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou…
E tudo se esvaiu em trevas.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira - uma miséria, trinta quilos mal pesados…

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

- “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

- “Como era boa para um cocre!…”


Carta Aberta ao MEC - livro Negrinha


foto: web

Carta Aberta ao MEC - livro Negrinha, de Monteiro Lobato

 CARTA ABERTA à Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), especialmente à COGEAM e às demais pessoas e instituições envolvidas no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):

Sou professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná, tenho atividade docente e produção bibliográfica na área de formação de leitores, dentre as quais alguns materiais didáticos produzidos para o MEC: sou coautora do livro Histórias e histórias: Guia do usuário do Programa Nacional Biblioteca da Escola (SEB/MEC, 2001), do fascículo Organização e uso da biblioteca escolar e das salas de leitura (MEC, 2005) e do artigo “Experiências de leitura no contexto escolar”, da coleção Explorando o Ensino (Literatura: Ensino Fundamental, SEB/MEC, 2010). E, também, sou autora e orientadora de pesquisas relevantes sobre a obra de Monteiro Lobato.

Considero da maior importância cultural e social os programas para formação de leitores e de acervos desenvolvidos pelo MEC e só posso esperar que programas desse gênero tenham continuidade, força política e crédito social.

Escrevo esta carta aberta porque estou consternada com a representação recentemente apresentada contra o livro Negrinha, de Monteiro Lobato, livro que não é racista, nem tampouco sexista. O conto que dá nome ao livro desperta um sentimento de angústia diante do sofrimento vivido por Negrinha, e desperta também uma forte reação contra práticas racistas, discriminatórias e violentas. Hoje dei duas entrevistas a esse respeito na mídia. Mas as condições de debate na mídia não têm sido as mais adequadas para desenvolvimento aprofundado de ideias.

Peço licença para apresentar algumas considerações sobre um pequeno trecho do edital do PNBE (citado pelos senhores Costa Neto, Domingues e Santos Júnior), que a meu ver mereceria uma discussão interna na SEB com vistas à sua reescrita. E, dada a repercussão na mídia, creio que mereceria também uma manifestação pública. O trecho a que me refiro é este, que copio do edital do PNBE-2013: “Não serão selecionadas obras que apresentem moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem.” (Destaquei palavras que pretendo comentar.) Creio, pela minha experiência docente, especialmente no trabalho com formação de leitores, que a compreensão dessa frase pelos que estão envolvidos com o PNBE é diferente da sua compreensão pelos senhores que assinaram a representação.

Permitam-me dizer o que pode ser óbvio: a construção de personagens em obras ficcionais se faz muitas vezes por meio de estereótipos. Arrisco dizer que toda obra cômica faz isso. E também que boa parte dos personagens secundários, de obras boas e ruins, são construídos por meio de estereótipos, porque são personagens planos, sem densidade, apresentados por meio de poucos elementos, de traços rápidos. Estereótipos não são um elemento negativo de uma obra. São, sim, elemento constitutivo da produção ficcional. Creio que os responsáveis pelo PNBE também pensem assim e por isso tenham selecionado (nas diferentes edições do programa) obras que contêm, sim, personagens construídas por meio de estereótipos, sem que isso signifique demérito para as obras, nem tampouco flexibilidade no julgamento da equipe que seleciona os livros.

Além disso, obras literárias de alta qualidade podem apresentar (e em geral apresentam) moralismos, preconceito e discriminação. As obras são filhas de seu tempo, são impregnadas pela ideologia e pelos valores da época em que foram escritas, e carregam esses valores de maneira explícita e implícita. Apresentam moralismos, preconceito e discriminação sob a forma de ideias de personagens, sobretudo. Apresentam, isto é, trazem em seu corpo, ideias diferentes das de hoje. Discutem essas ideias, solicitam do leitor um posicionamento, instigam o leitor a refletir. E refletir é o papel principal do leitor diante de um texto. Apresentar uma ideologia não significa (na minha compreensão do texto do edital) plantá-la como verdade nas mentes dos seus leitores. Significa trazê-la no texto, impregnada no modo como o narrador ou as personagens concebem o mundo, e, dessa forma, trazê-la para discussão, debate, reflexão. Uma obra apresenta moralismos quando coloca no diálogo entre personagens uma discussão sobre valores morais, ou religiosos, ou políticos. Suponho que o MEC não tenha sugerido que não fossem adotadas obras que discutissem ideias, mesmo quando elas fossem contrárias ao senso comum e aos valores de hoje. Suponho, isso sim, que o edital tenha tentado excluir do programa obras que fossem dogmáticas, que tivessem como primeiro objetivo a expressão de valores (morais, políticos, religiosos) e que apresentassem discussão desses valores por meio de uma trama ficcional ou de uma estrutura poética insustentáveis. Não me parece que tenha sido essa a compreensão dos senhores que assinaram a representação. Além de outros problemas de leitura (que me fazem supor que eles não tenham lido o conto inteiro, mas tenham pinçado pedaços que, fora do texto, podem parecer adequados aos seus propósitos), eles julgam que o conto “Negrinha” apresenta preconceito, e isso só é verdade no seguinte sentido: a personagem Inácia é preconceituosa. Para além disso, o conto não dissemina preconceito. Pelo contrário: ele denuncia a discriminação, os maus-tratos, a violência, a conivência da igreja, e luta contra tudo isso, ao estimular a identificação e o envolvimento emocional do leitor com a personagem principal. Inácia, por sua vez, é ridicularizada, clara e ostensivamente. Suas atitudes e suas ideias são desmerecidas também de maneira clara e ostensiva.

Uma certa leitura do edital (a que fizeram os reclamantes) entende que não poderia ser adquirida pelo programa nenhuma obra que contivesse qualquer moralismo ou estereótipo, ou que apresentasse, em sua trama, qualquer ideia racista, preconceituosa, qualquer violência, qualquer forma de discriminação. Por essa leitura, estariam excluídos todos os contos de fadas, por serem violentos e moralistas. Todas as fábulas: moralistas e dogmáticas. As cartas de viajantes e sermões de jesuítas: dogmáticos, política e religiosamente interessados. Estariam excluídas todas as obras realistas, porque, para denunciarem problemas sociais (dentre os quais diferentes formas de discriminação), elas antes os apresentam. Estariam excluídas todas as obras românticas, por apresentarem “estereótipos saturados” (outro termo do mesmo edital). Gregório de Matos, José de Alencar, Visconde de Taunay, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Erico Verissimo, Antônio Callado, Rubem Fonseca, a lista é extensa. Não sei se ficaria um autor em pé. Infelizmente, parece-me que a compreensão estrita do edital permite essa interpretação.

Sugiro, por isso, que esse trecho seja reescrito, não para dirigir o trabalho dos especialistas, não para mudar as diretrizes do MEC, mas a fim de evitar ações que, fundadas numa compreensão equivocada dos efeitos da literatura sobre os leitores, ajam como censoras do que pode ou não pode ser integrado ao acervo das bibliotecas escolares, pretendendo inclusive substituir-se à avaliação de uma equipe da mais alta qualidade. Não creio, porém, que com a revisão do edital o MEC acabará com a celeuma, dentre outros motivos porque celeuma dá visibilidade, populariza os nomes das pessoas. Mas creio que tiraria das mãos dos reclamantes um texto legal que eles começaram a usar como argumento para sua ação. Talvez eu esteja dando valor demais para um ato de menor importância. Tomara que seja isso.

Tenho esperança de que nós, professores, teremos liberdade e acervo suficiente para continuarmos a discutir nas escolas e na sociedade obras literárias de qualidade, por meio das quais compreenderemos melhor nossa identidade, nossas contradições, nossos problemas históricos. Compreender problemas é condição para superá-los.

Atenciosamente,

Milena Ribeiro Martins
Curitiba, 27 de setembro de 2012

Leia o conto Negrinha

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Gibran Khalil Gibran: A Raposa


Criação de Joba Tridente

Uma raposa olhou para a sua sombra, ao nascer do dia, e disse: “Preciso de um camelo para o almoço de hoje.” E passou a manhã toda procurando camelos. Mas, ao meio-dia, olhou novamente para sua sombra e disse: “Um rato bastará.


Gibran Khalil Gibran (1883 - 1931) foi um dos maiores autores da literatura libanesa. O Profeta, onde se encontra o fascinante texto Os Filhos, é a sua obra mais conhecida. Seus livros, traduzidos no Brasil por Mansour Challita, refletem a sua profunda religiosidade e o seu caráter pacifista. Gibran é autor, entre outros, de: O Louco; O Errante; Asas Partidas; Jesus, o Filho do Homem; Areia e Espuma; Temporais; Parábolas; As Ninfas do Vale; O Jardim do Profeta; As Almas Rebeldes; A Música.

Ilustração: Joba Tridente.2012

domingo, 16 de setembro de 2012

Literatura Infantil: A BONECA



Dia desses, pesquisando textos para um novo Projeto de Contação de Histórias, dei de cara com a poesia/conto A Boneca, de Olavo Bilac (1865 - 1918). Ela se encontra no seu famoso livro Poesias Infantis (1895), que conheço desde a minha infância.

O curioso é que, logo depois de reencontrar a singela poesia de Bilac, eu acordei, numa manhã de domingo, certo de que já havia lido aquela história (envolvendo uma boneca) em algum outro lugar e nas palavras de outro autor. Pensei até que (A Boneca) pudesse ser uma tradução de Bilac para algum conto dos Grimm ou Andersen, já que era tradutor e perambulou pela Europa.

Lá fui eu revirar arquivos, inclusive digitais, e acabei encontrando duas variações do tema: A Boneca, compilada por Guerra Junqueiro (1850 - 1923), publicada em Contos Para A Infância - Escohidos Dos Melhores Autores, Lisboa (1877), e Mary and Lucy, que se encontra em Little Stories for Little Children, by Anonymous, Londres (18..), ambos disponibilizados pelo Projeto Gutemberg. Para quem gosta de literatura o Gutemberg (entre outros sites DP) é um Clássico Paraíso, onde é possível encontrar até raridades musicais. A maioria do material disponível (em vários formatos de download) está em inglês. Mas há um bocado de literatura em português (de Portugal). Guerra Junqueiro, por exemplo, fica ao gosto do leitor: português arcaico ou atualizado.

Estou compartilhando esta curiosidade, com quem gosta de Literatura e ou trabalha com Contação de Histórias, porque acho divertido e importante conhecer variações de linguagem de um tema em comum na obra de autores contemporâneos ou não. Além de aproveitar o contexto para dar alguma ocupação aos macaquinhos do meu sótão, que também pensam por conta própria. Será que o tema (A Boneca) dos três contos publicados em datas próximas, na Inglaterra (Anonymous), Portugal (Junqueiro) e Brasil (Bilac), é mera coincidência? Ou tem a ver com a moral vigente e o estilo literário destinado ao público infantojuvenil que via o raiar de um novo dia? Por que os contos são tão iguais (conteúdo) nas suas diferenças (formas)? Ah, o inconsciente coletivo a cada dia mais singular, num mundo em que o cidadão se torna cada vez mais cada um.

Além da forma/estilo dos autores, o interessante nos três contos é o preceito (ou seria conceito?) moral que encerrava a literatura em fins do Século 19. O que aconteceu com ele nos anos 1900 e 2000? Mudaram os preceitos ou mudamos nós os conceitos de educação, moral e até mesmo de civilidade (ou seria de civismo?) nas escolas e nas comunidades? Ah, o politicamente (in)correto de hoje e a insana caça ao ideário literário de ontem. Como se fosse possível pensar o verbo de ontem com a cabeça verborrágica de hoje! Ou racionalizar o lúdico de hoje isento (ou seria ausente?) de “porquê”! A arte “não tem quê” isso ou aquilo. A arte é arte, independente de lhe atribuírem funções (terapêuticas?)!

O lúdicontemporâneo é uma febre colorida com efeitos colaterais. É tão multicolorido quanto multifacetado! Estou em meio a um processo de pesquisa (quantos contos falando de boneca já foram escritos?) e ainda longe de respostas que me satisfaçam. Afinal, sou um livre pensador livre (ou seria contestador?). O conto A Boneca, colhido por Guerra Junqueiro, não é o que acredito ter lido no passado.

Leia a versão atualizada (e abrasileirada) de A Boneca/Junqueiro. Leia o conto A Boneca/Bilac. Leia a tradução (sem compromisso) que fiz de Mary and Lucy/Anonymous (seja ele quem for!).


LINKS das Edições Integrais de Olavo Bilac, Guerra Junqueiro e Anonymous (em inglês). O livro de Olavo Bilac é raríssimo e, depois de muito fuçar na rede, o encontrei, entre outras preciosidades, no site da Unicamp.
- Olavo Bilac: Poesias Infantis
- Guerra Junqueiro: Contos Para A Infância

LINKS - Cortando caminho
- Projeto Gutemberg: Autores
- Projeto Gutemberg: Página inicial em português

*Artigo e ilustração/colagem de Joba Tridente - 2012

Anonymous: Mary e Lucy (As Bonecas)



Este conto foi publicado originalmente em Little Stories for Little Children by Anonimous, disponibilizado pelo Projeto Gutemberg.


Mary e Lucy
(tradução e adaptação de Joba Tridente)

Cada uma tinha a sua graciosa boneca para cuidar. Um dia Tom convidou Mary e Lucy para jogar bola e elas foram, largando as duas bonecas em cima de uma cadeira. O gato entrou na sala, alcançou as bonecas e começou a brincar, achando muito divertido rasgá-las e correr ao redor da sala com o nariz delas na boca.

Quando as meninas voltaram e viram suas novas bonecas em pedaços, começaram a chorar e a bater no bichano. Mas a sua mãe disse: Vocês não devem bater no gato, porque largaram as bonecas sozinhas e ele não sabia que não podia brincar com elas. Da próxima vez sejam mais cuidadosas com seus brinquedos.


Mary and Lucy
(by Anonymous)

Had each a nice doll, and they took care of them. One day Tom called them to play at ball, and they ran away to play, and left the two dolls on a chair. By and by the cat came in the room, and pulled the dolls to pieces, thinking I dare say, that it was fine fun to tear them to bits, and scamper round the room with poor dolly's nose in her mouth.

When the girls came back, and saw the nice new dolls all in bits, they began to cry, and to beat poor puss; but their mamma said, “No, you must not beat puss, for you left your dolls about, and the cat did not know that they were not for her to play with. Next time you must be more careful of your toys."

Ilustração original do livro Little Stories for Little Children by Anonymous



quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Helena Kolody - 100 anos - 9


Sol - Ilustração de Joba Tridente para Helena Kolody - 100 anos - 9

Que a poesia de Helena Kolody é de uma beleza inebriante, não há dúvida. Por vezes dolorida, ela chega ao leitor após intensa lapidação do verbo e do verso, em uma catarse tangente, sem jamais esconder o seu sujeito. O seu poema curto encurta distâncias para contagiar até mesmo os “desavisados” de primeira leitura. Através dele imagino quão envolventes foram as suas aulas no Instituto de Educação do Paraná: Escolhi o Magistério levada pelo impulso irresistível da vocação. A poesia foi um imperativo psicológico. Ao Magistério, dediquei os melhores anos de minha vida. Lecionei com prazer e entusiasmo. Amei os alunos como se fossem meus irmãos, meus filhos. (...) O Magistério e a poesia são as duas asas de meu ideal.

*
Grafite (1988)
Meu nome,
desenho a giz
no muro do tempo.

Choveu,
sumiu.


*
Pirilampejo (1992)
O sapo engoliu
a estrelinha que piscava
no escuro do brejo.

Ficou mais sombria a noite
sem o seu pirilampejo.


*
De Olhos Fechados (1993)
O sol forte ofusca.
A chuva estreita o horizonte.
Limita-me a vida.

A sonhar, de olhos fechados,
vejo melhor e mais longe.


Hoje a sensibilidade poética de Helena Kolody e o seu amor ao magistério encontra eco na literatura de Jane Sprenger Bodnar que, além de poemas de rara beleza (e melancolia), partilha com a mestra a dedicação ao Magistério, lecionando no mesmo Instituto de Educação do Paraná. Em entrevista à jornalista e escritora Marília Kubota, postada no site Escritoras Suicidas, Jane disse que, para ela, a poesia é “Algo que me conforta de uma antiga sensação de deslocamento e solidão em relação ao mundo real, prático, objetivo. Uma forma de expressão, encantamento e recriação. As grandes questões da humanidade continuam envoltas em neblina. A poesia não busca respostas, a poesia serve para "desacostumar as palavras", como disse o poeta Manoel de Barros.

Em uma breve entrevista à designer gráfica e escritora Tereza Yamashita, postada no site Abraços Dobrados, Jane Sprenger, que também coordena oficinas de literatura para crianças e adolescentes com habilidades especiais na área da linguística, falou: Procuro compartilhar com os estudantes textos que tenham me sensibilizado, pela sua beleza, humor ou questionamentos, levando-se em conta a nossa matéria-prima, que são as palavras. Trabalho onde a poeta paranaense  Helena Kolody estudou Magistério e lecionou Biologia por mais de vinte anos, é uma honra para mim!

*
gravura
imprimes em papel de seda
as nuvens de tuas lágrimas
até que só haja
uma linha d'água


*
estrelas de sábado
guardadas numa caixa
de sapatos

o passado
passado a limpo:
vaga-lumes


*
instalação
não importa
quero aberta a janela

perigo não há
já me assaltaram tantos sonhos

leve tudo
deixe apenas a luz do sol

grudada na parede
grafitando
o nome das horas


Jane Sprenger Bodnar nasceu em Curitiba. É autora do fantástico objeto-poético Homeopoética - Poemas em Cápsulas (1991), em parceria com Rollo de Resende e Fernando Zanella; do livro infantil Luísa Cuidadora de Planetas (2003) e integrante da antologia das escritoras suicidas: Dedo de Moça (2009). Jane publicou textos literários no jornal Nicolau (PR), Correio de Notícias (PR), A Notícia (SC), Mulheres Emergentes (MG), revista Textuale (Itália). Outros poemas seus podem ser lidos em Germina Literatura e Escritoras Suicidas.

Ilustração de Joba Tridente - 2012

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...