quinta-feira, 31 de março de 2016

Jacques Lacan: A psicanálise é outra coisa

Esta entrevista com o polêmico psicanalista Jacques Lacan foi realizada em 1974, pelo jornalista Emilio Granzotto, da revista italiana Panorama, e permaneceu inédita até ser traduzida por Paul Lemoine e publicada, em fevereiro de 2004, na edição n.428 da francesa Magazine Littéraire, em Paris. A tradução para o português é de Marcia Gatto. 

Conheci a entrevista nesta terça (29.03.2016), num compartilhamento no FaceBook e a achei tão interessante (divertida e mordaz) e ainda pertinente (40 anos depois) que decidi postá-la também por aqui. Há uma tradução em espanhol no portal Centro Lacaiano.


foto: (?) - web

Emilio Granzotto entrevista Jacques Lacan

Aqui Jacques Lacan alerta sobre os perigos do retorno da religião e do cientificismo: a psicanálise é para ele o único baluarte aceitável contra as angústias contemporâneas.

Emilio Granzotto - Fala-se cada vez mais frequentemente de crise da psicanálise. Sigmund Freud, dizem, está ultrapassado, a sociedade moderna descobriu que sua obra não seria suficiente para compreender o homem nem para interpretar a fundo sua relação com o mundo.

Jacques Lacan - São histórias. Em primeiro lugar, a crise. Ela não existe, não pode existir. A psicanálise não encontrou exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise, não há solução imediata, mas somente a longa e paciente busca das razões. Em segundo lugar, Freud. Como julgá-lo ultrapassado se nós ainda não o compreendemos inteiramente? O que é certo, é que ele nos fez conhecer coisas extremamente novas, que não poderíamos nem imaginar antes dele. Desde os problemas do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico ao assujeitamento às leis da linguagem. Sua doutrina colocou em questão a verdade, é algo que concerne a todos e cada um pessoalmente. Uma crise é outra coisa. Eu o repito: estamos longe de Freud. Seu nome serviu para cobrir muitas coisas, houve desvios, os epígonos nem sempre seguiram fielmente o modelo, confusões foram criadas. Após sua morte em 1939, alguns de seus alunos também pretenderam exercer a psicanálise de maneira diferente, reduzindo seu ensinamento a alguma fórmula banal: a técnica como ritual, a prática como restrita ao tratamento do comportamento, e como meio de readaptação do indivíduo a seu meio social. É a negação de Freud, uma psicanálise de conforto, de salão. Ele próprio o havia previsto. Há três posições insustentáveis, dizia ele, três tarefas impossíveis: governar, educar e exercer a psicanálise. Atualmente, pouco importa quem assume a responsabilidade de governar, e todo o mundo se pretende educador. Quanto aos psicanalistas, graças a Deus, eles prosperam, como os magos e curandeiros. Propor às pessoas ajudá-las significa um sucesso assegurado, e a clientela se acotovelando na porta. A psicanálise é outra coisa.

EG - O que exatamente?

JL - Eu a defino como sintoma – revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma filosofia. Detesto a filosofia, há tanto tempo ela não diz nada de interessante. A psicanálise também não é uma fé, e não me agrada chamá-la de ciência. Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está funcionando. Terrivelmente difícil porque ela pretende introduzir na vida do dia-a-dia o impossível, o imaginário. Ela obteve alguns resultados até o presente, mas ainda não tem regras e se presta a toda sorte de equívocos. É preciso não esquecer que se trata de algo totalmente novo, seja do ponto de vista da medicina, seja do da psicologia e seus anexos. Ela também é muito jovem. Freud morreu há apenas trinta e cinco anos. Seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, foi publicado em 1900 com muito pouco sucesso.  Foram vendidos, creio, trezentos exemplares em alguns anos. Ele tinha poucos alunos, tomados por loucos e nem mesmo de acordo com a maneira de colocar em prática e de interpretar o que tinham aprendido.

EG - O que não funciona hoje no homem?

JL - É essa grande lassidão, a vida como consequência da corrida pelo progresso. Através da psicanálise, as pessoas esperam descobrir até onde podemos ir carregando essa lassidão.

EG - O que empurra as pessoas a se fazer analisar?

JL - O medo. Quando lhe acontecem coisas, mesmo desejadas por ele, coisas que ele não compreende, o homem tem medo. Ele sofre por não compreender, e pouco a pouco cai num estado de pânico. É a neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente de medo de estar doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o medo coloca coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar, fobias nas quais as formas e os objetos adquirem significações diversas, e que dão medo.

EG - Por exemplo?

JL - Acontece ao neurótico se sentir pressionado por uma necessidade assustadora de ir dezenas de vezes verificar se uma torneira está realmente fechada, ou se uma coisa está no lugar correto, sabendo entretanto com certeza que a torneira está como deve estar e que a coisa está no lugar onde ela deve se achar. Não há pílulas para curar isso. É preciso descobrir porque isso acontece conosco, e saber o que isso significa.

EG - E o tratamento?

JL - O neurótico é um doente que se trata com a palavra, e acima de tudo, com a dele. Ele deve falar, contar, explicar-se a si próprio. Freud define a psicanálise como a assunção da parte do sujeito de sua própria história, na medida em que ela é constituída pela palavra endereçada a um outro. A psicanálise é a rainha da palavra, não há outro remédio. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo quanto inacessível ao aprofundamento consciente. E ele dizia que nesse inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.

EG - Palavra de quem? Do doente ou do psicanalista?

JL - Em psicanálise os termos “doente”, “médico”, “remédio” não são mais justos que as fórmulas no passivo que adotamos comumente. Dizemos: se fazer psicanalisar. É um erro. Aquele que faz o verdadeiro trabalho em psicanálise, é aquele que fala, o sujeito analisante. Mesmo se ele o faz da maneira sugerida pelo analista, que lhe indica como proceder e o ajuda por suas intervenções. Lhe é também fornecida uma interpretação. À primeira vista, ela parece dar um sentido ao que o analisante diz. Na realidade, a interpretação é mais sutil, tendendo a apagar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O objetivo é mostrar-lhe através de sua própria narrativa que o sintoma, a doença digamos, não tem nenhuma relação com nada, que ela é privada de qualquer sentido que seja. Mesmo se na aparência ela é real, ela não existe. As vias pelas quais esse ato da palavra procede, reclamam muita prática e uma infinita paciência. A paciência e a medida são os instrumentos da psicanálise. A técnica consiste em saber medir a ajuda que damos ao sujeito analisante. Em consequência, a psicanálise é difícil.

EG - Quando falamos de Jacques Lacan, associamos inevitavelmente esse nome a uma fórmula, o “retorno a Freud”. O que isso significa?

JL - Exatamente o que é dito. A psicanálise é Freud. Se queremos fazer psicanálise, é necessário voltar a Freud, a seus termos e a suas definições, lidos e interpretados no sentido literal. Fundei em Paris uma Escola freudiana precisamente com esse objetivo. Há vinte anos ou mais que exponho meu ponto de vista: retornar a Freud significa simplesmente tirar o terreno dos desvios e dos equívocos da fenomenologia existencial, por exemplo, como do formalismo institucional das sociedades psicanalíticas, retornando a leitura do ensinamento de Freud segundo os princípios definidos e enumerados a partir de seu trabalho. Reler Freud quer dizer somente reler Freud. Quem não faz, em psicanálise, utiliza uma fórmula abusiva.

...tomam-me por um obscuro
que esconde seu pensamento em cortinas de fumaça...

EG - Mas Freud é difícil? E Lacan, dizem, o torna completamente incompreensível. A Lacan repreende-se falar e sobretudo escrever de tal maneira que somente muito poucos adeptos podem esperar compreender.

JL - Eu sei, tomam-me por um obscuro que esconde seu pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por que. A propósito da análise, repito com Freud que é “o jogo intersubjetivo através do qual a verdade entra no real”. Não está claro? Mas a psicanálise não é um negócio para crianças. Meus livros são definidos como incompreensíveis. Mas para quem? Eu não os escrevi para todo o mundo, para que sejam compreendidos por todos. Ao contrário, nunca me ocupei minimamente de qualquer leitor que seja. Eu tinha coisas a dizer e as disse. É me suficiente ter um público que leia. Se ele não compreende, paciência. Quanto ao número de leitores, tive mais sorte que Freud. Meus livros são mesmo muito lidos, fico surpreso com isso. Também estou convencido de que em dez anos no máximo, aquele que me lerá me achará extremamente transparente, como  um belo copo de cerveja. Talvez até se diga então: “Esse Lacan, que banalidade!”

EG - Quais são as características do lacanismo?

JL - É um pouco cedo para dizê-lo, no momento em que o lacanismo ainda não existe. Sentimos dele apenas o cheiro, como pressentimento. Lacan, em todos os casos, é um senhor que pratica a psicanálise há pelo menos quarenta anos, e que há tantos anos a estuda. Eu creio no estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em meu livro que “aquilo a que nos leva a descoberta de Freud é a enormidade da ordem na  qual entramos, na qual nascemos, se podemos nos exprimir assim, uma segunda vez, saindo do estado chamado a justo título infans, sem  palavra”. A ordem simbólica sobre a qual Freud fundou sua descoberta é constituída  pela linguagem como momento do discurso universal concreto. É o mundo da palavra que cria o mundo das coisas, inicialmente confusas em tudo aquilo que está em devir. Há somente as palavras para dar um sentido completo à essência das coisas. Sem as palavras, nada existiria. O que seria o prazer sem o intermediário da palavra? Minha opinião é que Freud, enunciando em suas primeiras obras – A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer, Totem e tabu –  as leis do inconsciente, formulou, como precursor, as teorias com as quais alguns anos mais tarde Ferdinand de Saussure teria aberto a via à lingüística moderna.

EG - E o pensamento puro?

JL - Ele está submetido como todo o resto às leis da linguagem. Somente as palavras podem engendrá-lo e dar-lhe consistência. Sem a linguagem a humanidade não daria um passo adiante nas pesquisas / buscas do pensamento.  É o caso da psicanálise. Qualquer que seja a função que possamos lhe atribuir, agente de cura, formação ou de sondagem, há apenas um meio do qual nos servimos: a palavra do paciente. E toda palavra merece resposta.

EG - A análise como diálogo, portanto. Há pessoas que a interpretam mais como um sucedâneo da confissão.

JL - Mas que confissão? Ao psicanalista confessamos um belo nada. Deixamo-nos ir a lhe dizer simplesmente tudo que se passa pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da psicanálise é o homem como animal falante.  Cabe ao analista ordenar as palavras que ele ouve e dar-lhes um sentido, uma significação. Para fazer uma boa análise, é necessário o acordo, o entendimento entre o analisante e o analista. Através do discurso de um, o outro procura imaginar do que se trata, e encontrar além do sintoma aparente o nó difícil da verdade. A outra função do analista é explicar o sentido das palavras para fazer compreender ao paciente o que se pode esperar da análise.

EG - É uma relação de extrema confiança.

JL - Mais uma troca, na qual o importante é que um fala e o outro escuta.  Também o silêncio. O analista não faz pergunta e não tem ideias. Ele só dá as respostas que ele quer realmente dar às questões que sua vontade suscita. Mas ao final, o analisante vai sempre aonde seu analista o leva.

EG - O senhor acaba de falar do tratamento. Há possibilidade de curar? Sai-se da neurose?

JL - A psicanálise tem sucesso quando ela limpa o terreno, sai do sintoma, sai do real. Quer dizer quando ela chega à verdade.

EG - O senhor pode enunciar o mesmo conceito de uma maneira menos lacaniana?

JL - Eu chamo sintoma tudo aquilo que vem do real. E o real tudo aquilo que não vai bem, que não funciona, que se opõe à vida do homem ao afrontamento de sua personalidade. O real volta sempre ao mesmo lugar. Você sempre encontrará lá, com os mesmos semblantes. Por mais que os cientistas digam que nada é impossível no real. É preciso ter um grande topete para afirmar coisas desse gênero, ou então, como eu suspeito, a total ignorância do que se faz e diz. O real e o impossível são antitéticos, eles não podem caminhar juntos. A análise empurra  o sujeito para o impossível, ela lhe sugere considerar o mundo como ele é realmente, isto é, imaginário, sem significação. Enquanto que o real, como um pássaro voraz, só faz se alimentar de coisas sensatas, de ações que têm sentido. Ouve-se repetir que é preciso dar um sentido a isso e a aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos, ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada. Os sábios perdem o fôlego a nos explicar. Meu medo é que por seus erros, o real, essa coisa monstruosa que não existe, acabe por conseguir, por levar a melhor. A ciência é substituída pela religião, e ela é de outra maneira mais despótica, obtusa e obscurantista. Há um deus-átomo, um deus-espaço, etc. Se a ciência ganha ou a religião, a psicanálise está acabada.

...para mim a única ciência verdadeira,
séria, a ser seguida, é a ficção científica...

EG - Atualmente, que relação existe entre a ciência e a psicanálise?

JL -  Para mim a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica. A outra, a oficial, que tem seus altares nos laboratórios, avança às cegas, sem meio correto. E ela até começa a ter medo de sua sombra. Parece que chegou o momento da angústia para os sábios. Em seus laboratórios assépticos, alinhados em seus jalecos engomados, esses velhos bambinos que brincam com coisas desconhecidas, fabricando aparelhos cada vez mais complicados e inventando fórmulas cada vez mais obscuras, começam a se perguntar o que poderá acontecer amanhã, o que essas pesquisas sempre novas acabarão por trazer. Enfim! Digo. E se fosse muito tarde? Os biólogos se perguntam agora, ou os físicos, os químicos. Para mim, eles são loucos. Já que eles já estão mudando a face do universo, vem-lhes ao espírito somente agora se perguntar se por acaso isso pode ser perigoso. E se tudo explodisse? Se as bactérias criadas tão amorosamente nos brancos laboratórios se transformassem em inimigos mortais? Se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda a merda que o habita, a começar por esses sábios dos laboratórios? Às três posições impossíveis de Freud, governo, educação, psicanálise, eu acrescentaria uma quarta, a ciência. Ademais, que os sábios não sabem que sua posição é insustentável.

EG - Eis uma versão bastante pessimista do que chamamos progresso.

JL - Não, é algo completamente diferente. Eu não sou pessimista. Nada acontecerá. Pela simples razão de que o homem é uma porcaria, nem mesmo capaz de destruir a si próprio. Pessoalmente, acharia maravilhoso um flagelo total produzido pelo homem. Isso seria a prova de que ele conseguiu fazer alguma coisa com suas mãos, sua cabeça, sem intervenções divina, natural ou outros. Todas essas belas bactérias superalimentadas para a diversão, espalhadas através do mundo como os gafanhotos da Bíblia, significariam o triunfo do homem. Mas isso não acontecerá. A ciência atravessa felizmente essa crise de responsabilidade, tudo entrará na ordem das coisas, como se diz. Eu anunciei: o real levará vantagem, como sempre. E nós estaremos como sempre ferrados.

EGOutro paradoxo de Jacques Lacan. Censuram-lhe, além da dificuldade da língua e a obscuridade dos conceitos, os jogos de palavras, os gracejos de linguagem, os trocadilhos à francesa, e justamente, os paradoxos. Aquele que escuta ou que lê o senhor tem o direito de se sentir desorientado.

JL - De fato eu não brinco, digo coisas muito sérias. Eu apenas me sirvo da palavra como os sábios de que falei de seus almanaques e de suas montagens eletrônicas. Eu procuro me referir sempre à experiência da psicanálise.

EGO senhor diz: o real não existe. Mas o homem médio sabe que o real é o mundo, tudo que o cerca, que ele vê a olho nu, toca.

JL - Livremo-nos também desse homem médio que, em primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção estatística. Existem indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem da rua, de pesquisas de opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse gênero, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de escuta. Nenhum, em qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas fobias, as mesmas angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não compreender. O homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o presidente da República?

EG - Nós falávamos de real, do mundo que todos nós vemos.

JL - Justamente. A diferença entre o real, isto é, o que não vai bem, e o simbólico, o imaginário, isto é, a verdade, é que o real é o mundo. Para constatar que o mundo não existe, que ele não está aqui, é suficiente pensar em todas as banalidades que uma infinidade de imbecis acreditam ser o mundo. E convido meus amigos da Panorama, antes de me acusarem de paradoxo, a refletirem bem sobre o que leram apenas.

EG - Dir-se-ia que o senhor está cada vez mais pessimista.

JL - Não é verdade. Não me enquadro nem entre os alarmistas nem entre os angustiados. Infeliz do psicanalista que não tiver ultrapassado o estádio da angústia. É verdade, existem à nossa volta coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas veem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que devoram. Mas não há porque se fazer um drama disso. Estou certo de que assim que estivermos de saco cheio de foguetes, da televisão e de todas suas malditas pesquisas no vazio, encontraremos outra coisa com a qual nos ocuparmos. É uma revivescência da religião, não é?  E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado. Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal.  O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau.

EG - As angústias são toda dessa natureza ou existem angústias ligadas a certas condições sociais, a certa época histórica, a certas latitudes?

JL - A angústia do sábio que tem medo de suas descobertas pode parecer recente. Mas o que sabemos nós do que aconteceu em outros tempos? Dos dramas de outros pesquisadores? A angústia do operário escravo da cadeia de montagem como de um remador de galera, é a angústia de hoje. Ou, mais simplesmente, ela está ligada às definições e palavras de hoje.

EG - Mas o que é a angústia para a psicanálise?

JL - Algo que se situa fora de nosso corpo, um medo, mas de nada, que o corpo, espírito incluído, possa motivar. O medo do medo, em suma. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade é sem remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar na palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande desconhecido.

EG - Agora que se distribui sexo em todas as curvas, sexo no cinema, sexo no teatro, na televisão, nos jornais, nas canções, nas praias, ouve-se dizer que as pessoas estão menos angustiadas com os problemas ligados à esfera sexual. Os tabus caíram, dizem, o sexo não dá mais medo.

JL - A sexomania invasora é apenas um fenômeno publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que diz respeito, repito-o, a uma relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o analista. Não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias ou neuroses de massa. Que o sexo seja colocado na ordem do dia e exposto na esquina das ruas, tratado como um detergente qualquer nos carrosséis televisivos, não comporta nenhuma promessa de algum benefício. Não digo que isso seja ruim. Não é suficiente certamente para tratar as angústias e os problemas particulares. Faz parte da moda, dessa fingida liberalização que nos é fornecida, como um bem dado de cima, pela dita sociedade permissiva. Mas não serve ao nível da psicanálise.”


Jacques-Marie Émile Lacan (Paris, 13.4.1901 - Paris, 9.9.1981), psicanalista francês, nasceu em uma família de sólida tradição católica. Na adolescência rompeu com o catolicismo e passou a dedicar-se, com afinco, à vanguarda literária. Leu Baruch Spinoza, Nietzsche, Charles Maurras, os surrealistas e James Joyce. Frequentou de livrarias e grupos de escritores e poetas e foi aluno de Gaëtan Gatian de Clérambault. Embora estimado fora dos meios psicanalíticos franceses, Lacan não recebeu reconhecimento da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), na qual seus trabalhos não eram considerados e seu anticonformismo causava irritação. A partir de 1936, deduziu que a obra freudiana devia ser relida “ao pé da letra” e à luz da tradição filosófica alemã. Em 1938, nutrindo forte sentimento de repugnância em relação ao triunfo do nazismo, concluiu que a psicanálise nascera do declínio do patriarcado e argumentava a favor da revalorização de sua função simbólica no mundo ameaçado pelo fascismo. Em 1965, Lacan fundou a coleção Champ Freudien nas Éditions du Seuil e em 1966, publicou os Escritos. Em 1974, dirigiu um ensino do “Campo Freudiano” no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. Sofrendo de distúrbios cerebrais e de uma afasia parcial, Lacan morreu em 9 de setembro de 1981, após a retirada de um tumor maligno no cólon.

Resumo da resenha elaborada por Aurea Chagas Cerqueira, que você pode ler na íntegra no portal da Federação Brasileira de Psicanálise. Na internet há muito material biográfico sobre Lacan. Não encontrei informação alguma sobre o jornalista Emilio Granzotto.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Joba Tridente: língua

Exercito Poemas Visuais e ou Poemas Concretos desde os anos 1970. Eram Exercícios moldados a ferro em brasa..., fruto do seu tempo, que por vezes ainda ecoa. Nos anos 1990 se tornaram mais brandos..., ou quase. língua é de uma edição experimental composta de estampas de Exercícios poéticos Visuais.



l  í  n  g  u  a
Joba Tridente

ah!
línguaafiada
ah!
guia da fala
ah!
lua do verbo
ah!
nua que cala
ah!
guia do falo
ah!
línguaenfiada
ah!


*
exercício dezoito.
setembro.1999
ilustração.2014

  

Joba Tridente em Verso: 25 Poemas Experimentais (1999); Quase Hai-Kai (1997, 1998 e 2004); em Antologias: Hiperconexões: Realidade Expandida (2015); 101 Poetas Paranaenses (2014); Ipê Amarelo, 26 Haicais; Ce que je vois de ma fenêtre - O que eu vejo da minha janela (2013); Ebulição da Escrivatura - 13 Poetas Impossíveis (1978); em Prosa: Fragmentos da História Antropofágica e Estapafúrdia de Um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás (2000); Cidades Minguantes (2001); O Vazio no Olho do Dragão (2001). Contos, poemas e artigos culturais publicados em diversos veículos de comunicação: Correio Braziliense, Jornal Nicolau, Gazeta do Povo, Revista Planeta, entre outros.

terça-feira, 29 de março de 2016

Cecília Meireles: A Língua do Nhem

Mexe e vira e mexe e uma pérola poética da grande escritora Cecília Meireles aparece por aqui, dando mais brilho às voltas da literatura universal colhida ao acaso. O poema A Língua do Nhem está presente em Ou Isto ou Aquilo (1964)..., um livro para crianças de qualquer idade. Hoje, particularmente, ele me parece uma melancólica metáfora. Amanhã, talvez, assim como ontem, a sua aliteração (re)encontrará outro eco...



A Língua do Nhem
Cecília Meireles

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa da velhinha,
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha,
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem, falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

*
ilustração de Joba Tridente.2016


Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro, 1901 – Rio de Janeiro, 1964). Escritora, professora e jornalista. Em 1919, aos 18 anos, publicou Espectro, o seu primeiro livro de poesia. Cecília Meireles é autora de uma vasta obra onde se destacam: Criança, meu amor (1923), Nunca Mais (1923), Poema dos Poemas (1923). Batuque, Samba e Macumba (1933), A Festa das Letras (1937), Viagem (1939), Olhinhos de Gato (1940), Vaga Música (1942), Problemas de Literatura Infantil (1950), Romanceiro da Inconfidência (1953), Solombra (1963), Poemas de Israel (1963), Ou Isto Ou Aquilo (1964). Na web há farto material sobre a escritora.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Valêncio Xavier: Uma Releitura da Via-Sacra


No ano 2000, recebi do então editor de cultura José Carlos Fernandes, do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, um convite desafiador: realizar um trabalho plástico para ilustrar a releitura da Via-Sacra feita pelo escritor e cineasta Valêncio Xavier (1933-2008).

Bem, para mim, um livre pensador que já teve censurada a exposição Sagrados e Profanos, por conta da catarse sobre religião e política, foi um convite inusitado. Todavia(crucis), como tinha liberdade para abordar o tema, aceitei. Trabalhei um bom tempo entre pesquisa e realização, optando por uma técnica de recortes (utilizando uma grande variedade de papel) e sobreposição tridimensional.

Em 2011 fiz uma postagem da Via-Sacra, mas sem o texto contemporâneo de Valêncio Xavier. Esta é a reedição da publicação completa feita em Abril de 2015. Como não tenho as fotos originais do jornal, fotografei as artes (em acervo) com uma câmera simples e a qualidade (com os cortes) não está das melhores, mas queria aproveitar o momento. Quanto ao foco da minha releitura da Via-Dolorosa, publicada na Sexta-Feira, 21 de Abril de 2000, que cada um se deixe enredar pela coroa de espinhos e tire a sua própria conclusão.


Uma Releitura da Via-Sacra
texto de Valêncio Xavier
ilustração de Joba Tridente
21.04.2000



Jesus é condenado à morte
Jesus aceita com submissão e amor a sentença que O condena, pois foi pela sua morte que Ele nos deu a Redenção, e impediu a morte de nossa alma.




Jesus recebe a cruz
Sem reclamar, Jesus recebe sobre seus ombros o peso esmagador da cruz: o peso de teus pecados e todas as misérias do mundo e o desamor dos seres humanos uns pelos outros.




Jesus cai pela primeira vez
O peso da cruz aumenta a cada passo. Seu corpo está coberto pelo sangue derramado nas guerras infindas dos homens contra os homens. Ele perde suas forças e cai por terra, pela Terra.




Jesus encontra-se com sua mãe
Jesus encontra-se com Maria, sua mãe. Mãe e filho se abraçam em meio à dor. A Terra é nossa mãe, vamos nos abraçar a ela e impedir que filhos ingratos destruam seus rios, suas matas, sua vida.




Simão Cirineu ajuda Jesus
Jesus, na sua humildade, aceita que um humilde homem do povo o ajude a carregar a cruz ao cimo do Monte Calvário. Ajudemos a carregar a pesada cruz dos homens do povo sem emprego.




A Verônica enxuga o rosto de Jesus
Uma mulher enfrenta os ferozes guardas e enxuga o sangue de Jesus. No lenço fica impresso o rosto de Jesus sofredor. Em tua alma está impresso o sofrimento das mulheres por seus filhos sem escola, sem médicos?




Jesus cai pela segunda vez
Sob o peso da cruz, Jesus cai outra vez. Mas a força de seu amor pela humanidade o faz levantar-se e seguir rumo ao Calvário. Nós podemos ajuda-lo a levantar-se, ajudando a levantar os caídos pelo peso das drogas e da aids.




Jesus consola as mulheres
Jesus esquece seus sofrimentos para consolar as mulheres que choravam. Ele fez isso para que não esqueças o sofrer das mulheres que fazem trabalhos acima das suas forças e ganham menos do que merecem.




Jesus cai pela terceira vez
A humilhação pelo peso redobrado dos pecados do mundo faz Jesus cair sob o peso esmagador da cruz ao chegar ao Calvário. E quantos de nós somos esmagados por leis injustas ou pela falta de leis que nos protejam da corrupção que corrói o país?




Jesus é despido
Jesus é humilhado na sua divindade e nos seus direitos humanos ao ser despojado de suas vestes. Nós devemos nos sentir humilhados ao ver os direitos humanos de nossos semelhantes serem negados, e devemos lutar contra isso.




Jesus é pregado na cruz
Os pregos ferem a carne de Jesus e a tortura continua com a cruz levantada e os soldados ferindo-O com suas lanças. A tortura de inocentes prossegue em muitas partes do mundo. Cabe a nós lutarmos contra isso.




Jesus morre na cruz
O véu de Templo rasgou-se ao meio e Jesus exclamou num grito: “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito!”, e morreu por nós. Quantos de nós estamos morrendo de fome, frio, e em guerras e por mãos criminosas? O que faremos para cessar essas mortes?




Maria recebe Jesus morto
Não existe dor maior que a de uma mãe receber nos braços o seu filho morto. E que podemos fazer pelas mães que têm seus filhos mortos por traficantes de drogas, por desmandos da polícia e por falta de segurança no país?



Jesus é sepultado
Jesus morto nos deu a vida verdadeira. Seu sepulcro foi o caminho da ressurreição e nos céus velará por nós e nos dá a esperança de que, aqui na Terra, alguém há de velar por nós.




Ressurreição


Valêncio Xavier (1933-2008): jornalista, escritor, cineasta. Entre suas obras mais importantes estão os livros: Desembrulhando as Balas Zequinha (1973); Mez da Gripe (1981); O Mistério da Prostituta Japonesa & Mimi-Nashi-Oichi (1986); Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentindo (2001), Crimes à Moda Antiga (2004)..., e os filmes: A Visita do Velho Senhor; Carta a Fellini; O Pão Negro - Um episódio da Colônia Cecília. Para mais informações sugiro a leitura do artigo As Muitas Vidas de Valêncio Xavier no portal Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro e a entrevista concedida pelo autor à jornalista Marilia Kubota e publicada aqui no Falas ao Acaso: O Fantástico Mundo de Valêncio Xavier.

Joba Tridente: artesão de palavras e imagens. Entre suas exposições de artes plásticas destacam-se, em individuais: 1991 - Sagrados e Profanos - Hall da SEEC-Paraná - PR; 1986 - Sagrados e Profanos - Galeria “B” da Fundação Cultural do Distrito Federal - DF; 1984 - Arteveste - Galeria Jegue Elétrico - DF; 1983 - I Comício Cósmico de Brasília - Centro Cultural Le Corbusier – DF e Arte Alternativa II e III - Galeria Jegue Elétrico - DF; 1982 - Arte Alternativa - Galeria Jegue Elétrico – DF; e em coletivas: 2015 - Bench Artes - São Paulo-SP; Nem Tudo Termina em Pizza - São Paulo-SP. 2013 - Mail Art Cupcake - MuBE - Museu Brasileiro de Escultura. 2000 - Fandango Subindo a Serra - SESC da Esquina - Curitiba-PR.  1997 - Guido Viaro, 100 Anos: Interpretação 97 - Museu de Arte do Paraná - Curitiba - PR. 1996 - V Concurso de Presépios - Memorial da Cidade de Curitiba - PR; 1994 (itinerante: 1995/1996) - Suite Vollard, Picasso - Uma Interpretação Paranaense - Museu de Arte do Paraná - Curitiba - PR; 1987 - Salão de Artes Plásticas de Brasília - Galeria da Fundação Cultural do Distrito Federal - DF e Levante Centro-Oeste - Galeria da Fundação Cultural do Distrito Federal - DF; 1986 - Salão de Artes Plásticas de Brasília - Galeria “B” da Fundação Cultural do Distrito Federal - DF; 1983 - I salão de Arte Mística/Mítica/Mediúnica - Hall da Prefeitura Municipal de Petrópolis - RJ e II Salão de Arte Mística/Mítica/Mediúnica - Centro de Convenções de Brasília - DF.



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