segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Guerra Junqueiro: A Boneca


Ilustração de Joba Tridente - Conto: A Boneca. 2012

A Boneca
em Contos para a Infância (1875)
escolhidos dos melhores autores por Guerra Junqueiro


Deixe-me agora, leitor, contar-lhe uma história - a história duma boneca!

Não há muitos anos, mas ainda não era a cordoaria do Porto o ameno jardim, onde a infância folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe enegreça o espírito a vista dos dois monumentos, que a meu ver simbolismo as duas mais horríveis calamidades, que podem aniquilar um homem - o hospital e a cadeia! - ainda não há muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da feira, divertindo-me a meu modo.

Cansado das inúmeras figuras, que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar por findo o espetáculo, quando novos personagens me chamaram a atenção.

Eram os meus vizinhos ricos.
Aqui é preciso uma rápida explicação.

Das famílias da minha vizinhança, só conheço três.

Qual destas três famílias será mais feliz?...

Pelo que tenho notado, não têm que invejar umas às outras.

São todas felizes; cada qual a seu modo.

Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.
Parou o carro, o criado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depô-la no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa, para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca onde eu estava.

Não havia ali segredo a surpreender.

Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer àquela formosa criança a manifestação de qualquer desejo.

No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer a felicidade de dez crianças menos abastadas.

Tinha o necessário para montar completamente a casa duma boneca... rica.

Faltava apenas a dona da casa - a boneca.

Todo risos e atenções, o lojista apresentou o que tinha de melhor.

Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma magnífica boneca de dois palmos de altura, com cabelo em bandeaux e olhos azuis.

Uma boneca como as outras: cabeça e colo de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.

Uma vive na loja da casa, que habito. É uma tribo de crianças, que fazem o martírio e a alegria da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.

Alguns deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos, caídos do céu sobre um monte de lama.

São os meus vizinhos pobres.

A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.

É como se costuma dizer, gente  que vai muito bem com a sua vida.

A filha que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.

São os meus vizinhos remediados.

A terceira é a dos meus vizinhos ricos.

Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito nas listas dos acionistas de todos os bancos e no rol dos credores do estado - nada falta àquela ditosa gente!

Compõe-se igualmente de marido, mulher e filha.

Que formosa criança!... Terá oito anos.

Franzina e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas duma cor de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado - provavelmente ainda a crescer - que há de um dia ter o direito de lhes cobrir de beijos.

Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este mudou todas aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.

A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática criança.

Saí dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa variadíssimas considerações, sugeridas pela quase indiferença, com que aquela menina recebera brinquedos, que representavam um par de moedas.

Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de pano, horrível artefato português, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor de rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!

Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.

Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro, com que os anjos, por lavar, provocavam os ralhos da mãe.

Quando, no dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.

Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata não se via ninguém - estava a pequena na mestra; no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com auxílio duma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos brancos.

Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.

- «Aí está a tua caricatura, minha feiticeira!...» - disse eu de mim para mim. «Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...»

Retirei-me da janela.

Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.

A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia três e quatro vezes!

Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!

Chamava-lhe Sr.ª D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava finalmente com a boneca um destes diálogos de senhoras da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.

Um dia, - estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos -ouvi um grito de susto.

Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.

Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janela.

O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se de que só lhe bastava querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:

«Não atire!... Dê-me.»

Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não dera fé até então.

Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio donde vinha a súplica.

Vendo uma criança, pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:

- «Já não presta!... Está esmurrada!...»

- É o mesmo!... Dá-me?... - bradou a outra, cujos olhos brilhavam de cobiça.

 - «Dou...» - volveu a rica, encolhendo novamente os ombros.

E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes da rua.

Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe a que ela ainda não podia acreditar, que fosse sua!

Por espaço de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.

A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em ela se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam excelência! Chamavam-lhe Sr.ª D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos, do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas finalmente, completamente estranhas para ela!

E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se cada vez menos azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!

Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido, que trouxera no corpo, ainda não poderia enganar olhos pouco conhecedores.

Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis, viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja duma adeleira.

Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho, e com ele as ondulações do moiré, até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa - no Inverno! - xaile e manta na cabeça.

Muito mal lhe ficava aquilo!... Àquela boneca custava-lhe de certo o ver-se tão mal arranjada.

Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e balbuciei:

- É justo!... Cada qual segundo as suas posses.»

Por esse tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.

O honrado homem soubera, que eu me queixara da bulha, que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião, para me pedir desculpa.

Vendo-me conversar com o honrado pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.

Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.

Chama-se Maria.

Por um destes acasos da Providencia, que parece às vezes comprazer-se em criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.

Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei deveras pasmado quando o pai me apresentou.

E bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse: «Esta é a minha Maria!»

E tinha razão!

Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo era.

- É quem vale à mãe!... - acrescentou o velho.» - Ali, onde a vê, faz o serviço duma mulher!... Há seis meses, quando a minha santa esteve doente - bem pensei que não arribasse! - a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem!?... Olhe que aquela pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a queria deixar!...»

E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.

Fazia gosto ver aquela pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.

Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da porta da loja, sem dar pelo menos os bons dias à pequena.

Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas, com uma boneca deitada nos joelhos.

 - Eu conheço aquela boneca!... - disse eu de mim para mim.

E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:

 - Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...

Foi ali a menina da vizinha! - respondeu a pequenita, corando de prazer.

Era escusado dizer-me.

Maria pegara na boneca e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.

De tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha-se com ela.

 - Quem te viu e quem te vê!... - pensava eu.

Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos a podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!

Roçada por aquelas mãos, de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como lixa, submetida a torturas, era, ainda assim, singularíssimo o aspecto da triste!

Dava ares duma duquesa que, por necessidade, houve sido levada a fraternizar com o povo.

A mísera mudara mais uma vez de nome!...

De Sr.ª D. Ana passara a ser Sr.ª Rosinha e tratavam-na por vossemecê.

Trajava vestido de chita, capote velho de pano verde e lenço na cabeça.

Era um prazer para mim o escutar as conversas, que Maria sustentava com a boneca.

Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver falta de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que mais familiares eram à pequena.

Outras vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.

Já o leitor vê que, apesar da bondade Maria, deixara de ser feliz.

Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!

Desmaiada de cores, quase perdido o cabelo, semiapagados os olhos, desfeito o carmim dos lábios, a boneca não prometia longa duração.

Foi este pelo menos, o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona que o seu destino lhe dera.

Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!

Um dia chovia a cântaros! - o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.

Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um objeto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço voando, e foi cair no leito do enxurro...

Olhei... Era a boneca!...

A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a, e, depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a a passar pelo estreito, traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca de lobo, que encontrou na passagem!

Será pieguice, será o que o leitor quiser; mas, confesso-lhe, que me impressionou o fim da pobre boneca.

Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado à vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:

- Porque deitaste fora a boneca, Maricas!?

- Não fui eu... - balbuciou a pequena, chorando. - Foi ali o Joaquim!...

 - E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...

- Ora!...--respondeu o garoto com enfado.- Ora!... Estava velha... e feia!...

Curvei a cabeça ante aquela razão, e segui o meu caminho.

Pobre boneca!


Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg.

Ilustração de Joba Tridente.2012 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Olavo Bilac: A Avó


A Avó - Ilustração de Joba Tridente

A Avó

A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha!...
Teve tantos desenganos!
Ficou branquinha, branquinha,
Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,
Repousa, pálida e fria,
Depois de tanta canseira:
E cochila todo o dia,
E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando
Dos netos invade a sala...
Entram rindo e papagueiando:
Este briga, aquele fala,
Aquele dança, pulando...

A velha acorda sorrindo.
E a alegria a transfigura;
Seu rosto fica mais lindo,
Vendo tanta travessura,
E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,
Beija-os, e, tremulamente,
Passa os dedos engelhados,
Lentamente, lentamente,
Por seus cabelos doirados.

Fica mais moça, e palpita,
E recupera a memória,
Quando um dos netinhos grita:
“Ó vovó! conte uma história!
Conte uma história bonita!”

Então, com frases pausadas,
Conta histórias de quimeras,
Em que há palácios de fadas,
E feiticeiras, e feras,
E princesas encantadas...

E os netinhos estremecem,
Os contos acompanhando,
E as travessuras esquecem,
- Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem...

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

Ilustração de Joba Tridente.2012

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Olavo Bilac - Poesias Infantis


Nos últimos 100 anos muita coisa mudou na Literatura Infantil..., inclusive o conceito de Literatura Infantil. Veja o que pensava o grande escritor Olavo Bilac quando, a pedido Editora Francisco Alves, escreveu, em 1895, o seu famoso livro Poesias Infantis, publicado em 1904 e 1929:

Ao Leitor
Quando a casa Alves & Cª me incumbiu de preparar este livro para uso das aulas de instrução primária, não deixei de pensar, com receios, nas dificuldades grandes do trabalho. Era preciso fazer qualquer coisa simples, acessível à inteligência das crianças; e quem vive a escrever, vencendo dificuldades de forma, fica viciado pelo hábito de fazer estilo. Como perder o escritor a feição que já adquiriu, e as suas complicadas construções de frase, e o seu arsenal de vocábulos peregrinos, para se colocar ao alcance da inteligência infantil?

Outro perigo: a possibilidade de cair no extremo oposto – fazendo um livro ingênuo demais, ou, o que seria pior, um livro, como tantos há por aí, falso, cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medo de coisas que não existem. Era preciso achar assuntos simples, humanos, naturais, que, fugindo da banalidade, não fossem também fatigar o cérebro do pequenino leitor, exigindo dele uma reflexão demorada e profunda.

Mas a dificuldade maior era realmente a da forma. Em certos livros de leitura que todos conhecemos, os autores, querendo evitar o apuro do estilo, fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação, uma poesia infantil conheço eu, longa, que não tem um só verso certo! Não é irrisório que, querendo educar o ouvido da criança, e dar-lhe o amor da harmonia e da cadência, se lhe deem justamente versos errados, que apenas são versos por que rimam, e rimam quase sempre erradamente?

Não sei se consegui vencer todas essas dificuldades. O livro aqui está. É um livro em que não há animais que falam, nem fadas que protegem ou perseguem crianças, nem as feiticeiras que entram pelos buracos das fechaduras; há aqui descrições da natureza, cenas de família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever; alusões ligeiras à história da pátria, pequenos contos em que a bondade é louvada e premiada.

Quanto ao estilo do livro, que os competentes o julguem. Fiz o possível para não escrever de maneira que parecesse fútil demais aos artistas e complicada demais ás crianças.

Se a tentativa falhar, restar-me-há o consolo de ter feito um esforço digno. Quis das à literatura escolar do Brasil um livro que lhe faltava.
O.B.

A Pátria
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

Quem com seu suor a fecunda e umedece,
vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!

Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

Arte de Joba Tridente sobre foto de: (?)


Olavo Bilac: A Boneca


A Boneca

Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: “É minha ! “
— “É minha!” a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxavam por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando a bola e a peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca...


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

Ilustração de Joba Tridente.2012

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Jorge de Lima: Essa Negra Fulô


             
            Essa Negra Fulô

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

Jorge Mateus de Lima (1893 - 1953).  O autor do inesquecível Invenção de Orfeu (1952) é dono de um texto que permite as mais diversas leituras. Transitou com a mesma disciplina e inquietação entre a poesia e o romance. O poema Essa Negra Fulô é um dos seus trabalhos mais analisados.  
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