sábado, 30 de março de 2019

Joba Tridente: conjugação da falácia


..., no auge da Operação Lava Jato, muitas Delações Premiadas pautavam a mídia brasileira e internacional. ..., diante das primeiras acusações, toda a ignóbil gentalha política e empresarial, se fazendo de vítima, na iminência da prisão prévia, como se orientada por um único advogado, vomitava as mesmas frases desconexas de um vocabulário padrão, tipo: a insubsistência dos indícios supostamente relacionados a mim; extremamente surpreso com a citação do meu nome; prezo pela honestidade, seriedade e responsabilidade junto ao meu eleitor; acusações são inconsistentes; não conheço, jamais estive ou falei com essa pessoa; absolutamente falsa a afirmativa; nada temo, pois jamais solicitei ou recebi vantagens indevidas; jamais contribui com qualquer prática ilícita; repudio qualquer ato de corrupção..., frases ocas que até serviram para safar uns e condenar outros meliantes.

..., colecionei vários impropérios e não resistindo a tanta hipocrisia, cometi a singela prosa em verso conjugação da falácia (2017-2019) que, dado o nível cultural dos inomináveis envolvidos, estes jamais entenderão tal verso em tal prosa.


                 
conjugação da falácia
joba.tridente

: eu sou inocente
não conheço tal pronome
não conheço este verbo
e tampouco esta conjugação

: eu respeito a lei
nunca cometi tal adjetivo
nunca vi tal predicado
jamais autorizei este verso neste contexto
nunca estive na companhia desta regra
nada sei de hipérbole
nada sei de metonímia
é um perjúrio com a minha métrica

: eu estou surpreso
estão querendo prejudicar o meu tema
na tentativa de me ligar à essa catacrese
e macular a minha palavra

: eu estou indignado
jamais mantive contato com esta rima
desconheço qualquer metáfora
só recebo substantivos declarados
minha atuação é pautada pela antítese
repudio com veemência quaisquer prosopopeias
e aguardo com tranquilidade a apuração da norma

          : quando a poesia for declamada 
          tudo será esclarecido
          e vou provar minha inocência

            *
            ilustração.joba.tridente.2019


Joba Tridente, artesão de imagens e de palavras em Verso: 25 Poemas Experimentais (1999); Quase Hai-Kai (1997, 1998 e 2004); em Antologias: Hiperconexões: Realidade Expandida – Sangue e Titânio (2017); Hiperconexões: Realidade Expandida (2015); 101 Poetas Paranaenses (2014); Ipê Amarelo, 26 Haicais; Ce que je vois de ma fenêtre - O que eu vejo da minha janela (2014); Ebulição da Escrivatura - 13 Poetas Impossíveis (1978); em Prosa: Fragmentos da História Antropofágica e Estapafúrdia de Um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás (2000); Cidades Minguantes (2001); O Vazio no Olho do Dragão (2001). Contos, poemas e artigos culturais publicados em diversos veículos de comunicação: Correio Braziliense, Jornal Nicolau, Gazeta do Povo, Revista Planeta, entre outros.


quinta-feira, 21 de março de 2019

Cruz e Sousa: Poemas 3


No ano em que completa a mística dos 121 anos da morte de Cruz e Sousa, o grande mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima, o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo, em três postagens. Para estas publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas  Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio Público e na web (alguns links abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.

Primeiro você conheceu sete intensos sonetos de amor e dor ressignificando a natureza feminina: Cabelos; Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de bônus, o poema Caveira, que desconstrói a beleza humana. Depois, a catarse (incômoda!) em quatro poemas: Cristo de Bronze; Levantem Esta Bandeira; Enquanto Este Sangue Ferve; Sapo Humano. Hoje, na terceira e última postagem, a vez da paixão e da melancolia em três belíssimos poemas pinçados de Poesia Interminável e de Poemas Humorísticos e Irônicos: Frutas e Flores; Pássaro Marinho; Escárnio Perfumado.


                  

FRUTAS E FLORES1
Cruz e Sousa (Poesia Interminável)

Laranjas e morangos — quanto às frutas,
Quanto às flores, porém, ah! quanto às flores,
Trago-te dálias rubras, d'essas cores
Das brilhantes auroras impolutas.

Venho de ouvir as misteriosas lutas
Do mar chorando lágrimas de amores;
Isto é, venho de estar entre os verdores
De um sítio cheio de asperezas brutas,

Mas onde as almas — pássaros que voam —
Vivem sorrindo às músicas que ecoam
Dos campos livres na rural pobreza.

Trago-te frutas, flores, só apenas,
Porque não pude, irmã das açucenas,
Trazer-te o mar e toda a natureza!

1 Nos manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional encontramos uma variação para o primeiro verso deste soneto no qual “goiabas” substitui “morangos”.



                 

PÁSSARO MARINHO
Cruz e Sousa (Poesia Interminável)

Manhã de maio, rosas pelo prado,
Gorjeios, pelas matas verdurosas
E a luz cantando o idílio de um noivado
Por entre as matas e por entre as rosas.

Uma toilette matinal que o alado
Corpo te enflora em graças vaporosas,
Mergulhas, como um pássaro rosado,
Nas cristalinas águas murmurosas.

Dás o bom dia ao Mar nesse mergulho
E das águas salgadas ao marulho
Sais, no esplendor dos límpidos espaços.

Trazes na carne um reflorir de vinhas,
Auroras, virgens músicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços!



                  

ESCÁRNIO PERFUMADO
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

*
ilustrações de Joba Tridente



João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC: 24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista, precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês, inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque, o jornal republicano e abolicionista Tribuna Popular, o jornal A Cidade do Rio, a Folha Popular, o jornal O Tempo. João da Cruz e Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa, 1961), O livro Derradeiro (poesia, 1961), Dispersos (poemas em prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão “Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: Modernidade e mobilidade social nas duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia Brasileira; Leonardo Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz e Sousa; Alessandra Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e desumano de criticar; Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.

quarta-feira, 20 de março de 2019

Cruz e Sousa: Poemas 2


No ano em que completa a mística dos 121 anos da morte de Cruz e Sousa, o grande mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima, o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo, em três postagens. Para estas publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas  Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio Público e na web (alguns links abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.

Ontem você conheceu sete intensos sonetos de amor e dor ressignificando a natureza feminina: Cabelos; Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de bônus, o poema Caveira, que desconstrói a beleza humana. Hoje compartilho a catarse (incômoda!) em quatro pertinentes poemas extraídos de Broquéis e Poemas Humorísticos e Irônicos: Cristo de Bronze; Levantem Esta Bandeira; Enquanto Este Sangue Ferve; Sapo Humano. Amanhã, na terceira postagem, a vez da paixão e da melancolia com poemas pinçados de Poesia Interminável e de Poemas Humorísticos e Irônicos.


      

CRISTO DE BRONZE
Cruz e Sousa (Broquéis)

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias...

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!...



                                           
                                      
{Levantem Esta Bandeira}
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo;
Da terra azul brasileira
Levantem esta bandeira
Que sente o horror da esterqueira
Da escravidão — negro sapo.
Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo.


{Enquanto Este Sangue Ferve}

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Enquanto este sangue ferve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.




        










SAPO HUMANO
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

a Emiliano Perneta

Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo,
Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros,
Umas vivas canções do teu nojento papo,
Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.

E canções de tal forma e tais e tais centelhas,
Que todas possam ir, miraculosamente,
Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas
Com o íris voador de cada asa fulgente.

Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo,
Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama
Em camadas envolve o atro ventre redondo,
Dos tempos imortais nessa fecunda chama.

Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras,
O sombrio Caim nos lamaçais errantes,
O clown gargalhador das charnecas rasteiras,
Que ri-se para o sol com riso ironizante.

Não és o sapo atroz, coaxador, visguento,
Que rouco ruge e raiva à noite os seus horrores,
E para o constelado e mudo firmamento
Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.

Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio,
Nascido de roldão na lúgubre miséria
E que do mundo vão no pavoroso seio
Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.

Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto
Do crime aterrador, do tenebroso vício,
Mas que ainda possuis o brilho de um afeto
Que te livra, talvez, do eterno precipício.

Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada,
Não caiu de uma vez, como terrível fora;
Nela ainda há clarões de límpida alvorada,
Um prenúncio feliz de aurora redentora.

Ainda tens coração que pulsa no teu peito
Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos,
Que são o grande amor, o sentimento eleito
Vencendo esses fatais instintos assassinos.

Tu semelhas de um charco a superfície nua
E vítrea, que no campo, aos ares, adormece,
Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua,
Para a vasta amplidão cintila e resplandece.

Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo,
Repleto de vibriões do vício — essas crianças,
Sorriem virginais, oh! solitário corvo,
Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.

O amor que regenera os ínfimos bandidos,
Não reduziu, enfim, tu'alma a ignóbil trapo.
E eis por que, num viver de pântano e gemidos,
Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!

*
ilustrações de Joba Tridente.2019


João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC: 24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista, precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês, inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque, o jornal republicano e abolicionista Tribuna Popular, o jornal A Cidade do Rio, a Folha Popular, o jornal O Tempo. João da Cruz e Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa, 1961), O livro Derradeiro (poesia, 1961), Dispersos (poemas em prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão “Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: Modernidade e mobilidade social nas duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia Brasileira; Leonardo Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz e Sousa; Alessandra Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e desumano de criticar; Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.

terça-feira, 19 de março de 2019

Cruz e Sousa: Poemas 1


No ano em que completa a mística dos 121 anos da morte do escritor Cruz e Sousa, o grande mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima, o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo, em três postagens. Para estas publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas  Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio Público e na web (alguns links abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.

Hoje, do livro Faróis, sete intensos sonetos de amor e dor ressignificam a natureza feminina: Cabelos; Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de bônus, o poema Caveira, que desconstrói a beleza humana. Amanhã, a catarse (incômoda!) em quatro poemas extraídos de Broquéis e Poemas Humorísticos e Irônicos. E na terceira postagem será a vez da paixão e da melancolia em poemas pinçados de Poesia Interminável e Poemas Humorísticos e Irônicos.


                             
I
CABELOS
Cruz e Sousa

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!



                             
II
OLHOS
Cruz e Sousa

A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,

Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras...

Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!...



                             
III
BOCA
Cruz e Sousa

Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.

Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos...

Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos...



                            
IV
SEIOS
Cruz e Sousa

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.

Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos...

Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.

Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando...



                            
V
MÃOS
Cruz e Sousa

Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.

Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.

Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!



                            
VI
PÉS
Cruz e Sousa

Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n’alma, doloroso e inquieto...

Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
Geram fascinações dilacerantes!



                             
VII
CORPO
Cruz e Sousa

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!



      
CAVEIRA
Cruz e Sousa

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

*
ilustrações de Joba Tridente.2019


João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC: 24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista, precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês, inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque, o jornal republicano e abolicionista Tribuna Popular, o jornal A Cidade do Rio, a Folha Popular, o jornal O Tempo. João da Cruz e Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa, 1961), O livro Derradeiro (poesia, 1961), Dispersos (poemas em prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão “Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: Modernidade e mobilidade social nas duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia Brasileira; Leonardo Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz e Sousa; Alessandra Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e desumano de criticar; Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.

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