domingo, 27 de dezembro de 2009

Dito Assim: Carlos Drummond de Andrade


Dito Assim são falas colhidas ao acaso, nas obras máximas de grandes autores. São convites à (re)leitura. São falas para nunca esquecer.


Dito Assim por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em O Avesso das Coisas - Aforismos – Record.1990:

Romances de luxúria e violência, que se supõem modernos, são plagiados do Antigo Testamento.

Há certo sadomasoquismo na idéia de Deus deixar-se crucificar pelos homens que ele criou.

É o esqueleto, e não o corpo, que detém a essên­cia da beleza.

Para cada tipo de situação política há um discur­so pronto, de que se trocam as vírgulas.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Literatura: Carta de Antônio Rodrigues



Carta de Antônio Rodrigues
O lado “B” da literatura “A” na Internet

Esta série de cinco artigos, que escrevi em 2001, foi publicada no Caderno G, da Gazeta do Povo, de Curitiba, no segundo semestre do mesmo ano.

Bem é que morram, porque não haverá ouro para tantos!
Este é um breve trecho da cópia de uma impressionante e, por vezes, apavorante carta que o soldado, viajante, aventureiro e jesuíta português Antônio Rodrigues enviou, em maio de 1553, aos seus irmãos jesuítas em Portugal e que a Fundação Biblioteca Nacional está disponibilizando, juntamente com A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio (1881/1923), no arquivo: Cronistas e Viajantes.

A carta é um relato dos sonhos, esperanças e pesadelos de Antônio Rodrigues em busca de uma terra repleta de riquezas: “E é que eu e outros Portugueses, assim por vaidade como por cobiça de ouro e prata, no ano de 1523, partimos de Sevilha em uma armada, que fazia Dom Pedro de Mendonça, na qual éramos 1800 homens; e todos carregados de nossa cobiça, chegamos, com próspero vento, ao Rio da Prata e entramos pelo rio com as naus 60 léguas.” O seu conteúdo desvela a confissão dolorida e amarga de um homem procurando compreender e situar a realidade que o cerca, diante da “lógica católica apostólica” a que serve. A culpa de Antônio Rodrigues, “em pensamentos, palavras e obras”, parece infinita e a sua súplica de perdão atravessará os “mares de Portugal” e também os séculos, atordoando o leitor habituado com a História Oficial. Nada se compara com o fato sendo descrito por quem comete o ato. Documento ideal para ser discutido e analisado por professores e alunos de história, geografia, antropologia, sociologia, economia, a carta detalha contrastes e confrontos entre civilizados e selvagens. Resta-nos saber quem é quem pois, uns são movidos pela ambição e outros para se livrar do jugo.

(...) Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam cada dia 4 ou 5.
Propondo-se a relatar uma viagem de ida e volta do Brasil ao Peru, Antônio Rodrigues serve-nos em uma cuia a História como ela era e assim, diante dos nossos olhos, o domínio português se firma, vilarejos são levantados e povos exterminados, enquanto a ambição leva dezenas de confiantes homens cristãos ao Peru e traz de volta uns poucos miseráveis sobreviventes. Quem dera fosse pura ficção!

(...) Porque, enforcando-se a dois soldados, lhes comeram as barrigas das pernas, e um homem matou em sua casa a um seu primo e comeu-lhe a assadura. Acabando de a comer o acharam que estava para morrer, permitindo Deus por seu justo juízo que o matasse a comida com que a morte do primo procurou. Aconteceu também comerem uns o excremento que outro depois de ter comido deitava, ainda que pela corrupção dos corpos era aquilo tão peçonhento que quem o comia logo morria. E, desta maneira, uns com fome, outros por os matarem as onças, e outros os gentios, morreram neste tempo, que se fez a cidade, 600 homens.

Para quem quer conhecer o Brasil de anteontem, pra entender o Brasil de hoje, a Carta de Antônio Rodrigues é um bom começo. Ela não é tão idílica, como a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha (também disponível no site da FBN), portanto, que o leitor fique prevenido pois, em alguns momentos, a narrativa pode embrulhar o estômago mais sensível. É que não há como ficar indiferente aos cheiros da miséria e aos gritos da violação da terra, dos povos, das crenças primitivas, em nome de Jesus Cristo.

Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez nenhum proveito na fé.

ilustração: Terra Brasilis, Atlas Miller, c 1523 – 1525/Mapas Históricos Brasileiros/ Grandes Personagens da Nossa História – Abril Cultural, 1973

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Joba Tridente: Aula de Religião


Aula de Religião
uma questão polêmica

1
Garoto. No fim do primário ou começo do ginásio. Tive Aula de Religião (Católica Apostólica Romana, evidentemente) na escola pública, dada por um padre. Na época era Católico Apostólico Romano. Não me incomodava muito. Não tardou para eu aprender a diferença entre Religião e Teologia. Ao compreender o que era singular e o que era plural, encontrei a dúvida. Ao buscar respostas virei um Livre Pensador. Na minha cidade, no interior de São Paulo, numa região chamada de Alta Paulista, numa cidade chamada Osvaldo Cruz, tinha além da Igreja Católica Apostólica Romana, uma Igreja Batista e uma Igreja Presbiteriana, além de um Centro Espírita, pelo que me lembro. Isso foi lá pelos anos 1960. Era adolescente. Estou certo de que os fiéis de outras crenças não eram obrigados a assistir a Aula de Religião sobre o Catolicismo, que encerrava com uma reza.

2
Hoje há um mercado de religiões (e variantes) para todo tipo de gosto e de bolso e de intenção. E todas as religiões são favoritas e únicas, do deus lá delas, em detrimento do deus lá das outras. O homem teme o que ele criou. O que ele inventou. Inventa-se um monstro para temê-lo. Inventa-se um deus para todas as causas. Religião não deve ser imposta, quiçá proposta. O oculto na verdade de um nem sempre (ou nunca) é satisfação na verdade exposta do outro. Cada um compreende a sua “necessidade” e coisa alguma mais aquém ou além dela. O homem religioso é egoísta (como a sua crença) por natureza. Partilhar (se não a crença) é força de expressão ou gesto de ocasião. Tudo é dízimo no corpo ou na alma daquele que ignora a própria “fé”.

3
Ensinar Teologia ou ao menos abrir espaço de discussão em sala de aula, num leque de opções religiosas e crenças outras, parece positivo..., mas pode ser também perigoso, sem a neutralidade do palestrante. Há no mundo uma corrente (pequena ainda) que crê num totalitarismo evangélico, amanhã, mais forte e fundamentalista que o do catolicismo cristão, ontem. É mais que possível. Quando vemos “religiosos” vociferadores a qualquer hora do dia (e da noite) nas redes de TV ou pelas ruas ou pelos “templos” impondo as suas “verdades”, há que se temer. Quando vemos “religiosos” vociferadores a qualquer hora do dia (e da noite) travando (e tramando) sua eterna guerra santa em nome do “impiedoso”, infiltrados nos negócios políticos e financeiros, há que se temer. Quando se vê, se lê, se ouve vociferações religiosas, de quem quer seja (sagradas ou profanas) há que se temer, sim!

4
Se, aos olhos marxistas, ontem a religião era “o ópio do povo”, aos olhos democratas, hoje ela é “o crack do povo” Só mudou o nome da droga. Liberar é muito diferente de libertar. Dar aula sobre religiões, com a sua literatura (mítica/mística/erótica) incorporada, é uma coisa. Mas, dar aula somente sobre uma religião e a sua literatura incorporada, em detrimento de outras, me parece preconceituoso. Ou se fala sobre todas ou sobre nenhuma. Na verdade, não vejo em quê a aula de religião pode ajudar/melhorar a vida (profissional) de uma gente antes carente de saneamento básico, comida, educação, saúde, escola, hospital, moradia, cidadania... , e que a cada dia está mais para um trecho de Partido Alto (de Chico Buarque): Diz que Deus, diz que dá/ Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô nega/ E se Deus não dá/ Como é que vai ficar, ô nega/ Diz que Deus, diz que dá/ E se Deus negar, ô nega/ Eu vou me indignar e chega...; do que para um trecho do verso do poeta latino Juvenal (in Sátiras X): mens sana in corpore sano (mente sã em corpo são).

5
A propósito de mens sana in corpore sano, que tem hoje as mais diversas aplicações, há um trecho da Sátira X, em tradução livre, na Wikipédia: Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são./ Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte,/ que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza,/ que suporte qualquer tipo de labores,/ desconheça a ira, nada cobice e creia mais/ nos labores selvagens de Hércules do que/ nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental./ Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio;/ Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.;
e o recorte do mesmo trecho (com os dois versos finais) que pode ser lido em Boletim de Estudos Clássicos – 33, num estudo de Joana Abranches Portela: Mas, se à viva força queres fazer algum pedido e oferecer nos santuários/ as entranhas e os salpicões divinatórios de um porquinho luzidio,/ então pede uma mente sã num corpo são./ Pede uma alma forte isenta do terror da morte,/ que coloque uma vida longa em último entre os dons/ da natureza, que possa suportar quaisquer canseiras,/ que não conheça a ira, que não tenha ambições e considere preferíveis/ os sofrimentos de Hércules e os seus duros trabalhos/ à volúpia e aos festins e aos cochins de Sardanapalo./ O que te aconselho, tu mesmo a ti podes dar, certamente/ é pela virtude que se abre o único caminho de uma vida tranquila./ Não precisas de nenhum deus, se tens a razão. Somos nós/ que te fazemos deusa, ó Fortuna, e te colocamos no céu.

6
Ou seja, fora do contexto, cada um faz a leitura que quiser ou puder dos poemas de Chico Buarque ou de Juvenal. Apesar dos poetas não dizerem exatamente o que achamos que eles disseram, já que um trecho não expressa o poema inteiro. É assim, também, com a religião.

ilustração de Joba Tridente: Mito

sábado, 12 de dezembro de 2009

Livro: Micrômegas

O gigante Micrômegas encontra o navio
dos filósofos. (Gravura de Charles Monnet)


Micrômegas
O lado “B” da literatura “A” na Internet


Esta série de cinco artigos, que escrevi em 2001, foi publicada no Caderno G, da Gazeta do Povo, de Curitiba, no segundo semestre do mesmo ano.

O convite de hoje é para visitar a Virtual Book que oferece grátis excelente literatura em seis idiomas (português, espanhol, inglês, francês, italiano e alemão) e descobrir o mundo iluminado, irônico e sarcástico de Voltaire (1694/1778) através da divertida ficção Micrômegas (1750).

Micrômegas é um conto de leitura fácil e rápida onde as idéias de Voltaire, o filósofo do iluminismo, “viajam” livres entre a ficção sacra e profana e a filosofia pura. Quem conhece Zadig (1749) e Cândido (1759), outras obras fascinantes do autor, vai encontrar um ponto em comum: o personagem andarilho. Assim como Zadig e Cândido vagam por países e/ou reinos desconhecidos, buscando conhecimento, sabedoria e respostas aos seus intermináveis infortúnios, Micrômegas vaga pelo Universo em busca de instrução filosófica.

As aventuras espaciais de Micrômegas, bem no estilo ficção científica, são narradas com muito sarcasmo. O personagem título é originário da estrela Sírio, mede oito léguas de altura e decidiu fazer uma viagem filosófica, ao ser condenado por causa de suas estranhas idéias, como “querer saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era da mesma natureza que a dos caramujos”. Em Saturno ele conhece o secretário da Academia, um filósofo um tanto quanto pessimista, que o acompanha na viagem. Os dois chegam na Terra, na margem setentrional do Mar Báltico, a 5 de Julho de 1737. Como eles não conseguem enxergar os minúsculos seres humanos, duvidam que exista algum tipo de vida na Terra ou que alguém de bom senso queira viver aqui. A dúvida persiste mesmo quando encontram um navio transportando filósofos, pois acham impossível que seres tão pequenos falem ou pensem, pois “para falar é preciso pensar ou quase”. Mas logo que começam a filosofar os extraterrestres vão descobrir que estão “altamente” enganados.

Em Micrômegas, Voltaire não deixa, pensamento sobre pensamento. Com seu humor cáustico questiona a essência das coisas, do espírito, da matéria, da alma; indaga sobre a duração da vida e a razão da morte; esmiuça a estupidez de todos os seres: “Sabeis, por exemplo, que neste momento, cem mil doidos da minha espécie, que usam chapéus, matam cem mil outros animais que usam turbante ou são massacrados por eles. Por toda a Terra é assim que se procede desde tempos imemoriais. (...) Trata-se, informou o filósofo, de um pouco de lama do tamanho do vosso calcanhar. Não é que qualquer dos Homens que se deixa degolar pretenda algumas migalhas dessa lama. Trata-se apenas de saber se ela é pertença de um certo homem chamado “Sultão” ou de outro a quem denominam, não sei porquê “César”. (...) Nem um nem outro viram ou chegarão a ver o pequeno torrão em litígio; e quase nenhum destes animais, que mutuamente se degolam, viu o animal por quem se deixa matar.

Micrômegas é a obra ideal para se iniciar em Voltaire. É um texto curto, enxuto e terrivelmente atual nas suas entrelinhas, onde há bem mais que um simples colóquio filosófico sobre a vida inteligente no Universo. Bom, é verdade que os conceitos científicos do séc.18 mudaram um pouco, mas como ainda não há provas da existência ou não de seres verdes em Marte, quem pode garantir que não existam jesuítas e matemáticos resolvendo teoremas de Euclides em Sírio e Saturno?

sábado, 5 de dezembro de 2009

Livro: A Luneta Mágica


A Luneta Mágica

O lado “B” da literatura “A” na Internet


Esta série de cinco artigos, que escrevi em 2001, foi publicada no Caderno G, da Gazeta do Povo, de Curitiba, no segundo semestre do mesmo ano.

Internet, como é que a gente conseguia viver sem ela!? À primeira vista (ou seria acesso?), é como a cidade de São Paulo, sabendo procurar, encontra-se de tudo, do arco da moça ao arco da velha. O melhor é que, ao contrário de São Paulo, na rede a maioria das coisas boas é grátis. Como, por exemplo, literatura brasileira e/ou estrangeira. Num país em que o livro é um bem de consumo distante de milhões de bolsos e que a leitura de lazer não é prioridade, nem na educação, o acesso, totalmente grátis, às mais diversas obras literárias, é um colírio. Para quem realmente gosta de literatura e, portanto, não se importa com seu formato digital (PDF, ebook), há um grande número de bibliotecas disponibilizando textos literários, em várias línguas, para pesquisa e leitura no próprio site e/ou para cópias. Ali estão: Machado de Assis, Eça de Queirós, Shakespeare, Gregório de Matos, Fernando Pessoa, Antônio Vieira, Euclides da Cunha.

O propósito desta série de artigos sobre a literatura na internet é falar sobre algumas obras interessantes, curiosas, divertidas e desconhecidas do grande público leitor, como: Micrômegas, a “ficção científica” filosófica de Voltaire, o iluminista autor de Zadig; As cartas apavorantes dos primeiros aventureiros portugueses no Brasil selvagem, como a de Antônio Rodrigues, escrita em 1553; Contos infantis do mundo todo.

Neste primeiro artigo a sugestão é acessar a página da Fundação Biblioteca Nacional e (re)descobrir Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) possivelmente na sua melhor obra: A Luneta Mágica. Este romance, pouco conhecido do grande público, é fascinante, divertido e perturbador. Publicado, entre 22 de março e 27 de setembro de 1868, como folhetim, no periódico A Semana Ilustrada, a sua trama, 133 anos depois, continua atual, uma vez que no Brasil a política ainda se arrasta, a moral engatinha e a ética ensaia os primeiros passos.

Diz-se que em terra de cego quem tem um olho é rei ou caolho. Nessa romanceada crônica de costumes, Macedo nos desvela que ter um olho em terra de cego é uma benção ou uma maldição. Na provinciana Rio de Janeiro do séc.19, o míope Simplício não mede esforços para curar a sua miopia física e moral: “Miopia física: - a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta. E por isso ando na cidade e não vejo as casas. Miopia moral:- sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minhas. E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.” O seu desejo de ver as coisas do mundo é tanto que nem se importa com os meios. É nessa busca incessante que conhece um armênio mágico que cria, para ele, lunetas capazes de lhe dar a visão do real, durante três minutos, e depois disso, a visão do inesperado: a maldade e/ou a bondade que habita em todas as coisas, e/ou ainda o raro bom senso, da pessoa ou coisa observada. O que acaba colocando em polvorosa toda a sociedade do Rio antigo, que hora o hostiliza e o considera um louco e hora o ridiculariza e se aproveita de sua ignorância.

O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais é um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.

A sina de Simplício no mundo seria trágica se não fosse cômica e ele o contrário de si mesmo, enredado em seus dilemas sobre o valor da cegueira e o peso da visão. A verdade é que ainda somos todos míopes diante da vida ou daquilo que não conhecemos ou compreendemos. Se 2001 (ano da publicação deste artigo) não é como imaginávamos em 1968, infelizmente continua o mesmo descrito em 1868, por Joaquim Manuel Macedo: corrupção, banditismo, oportunismo, falsidade, politicagem, fraude, ladroagem, impunidade, poder...

O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos que fazem leis, muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso! (...)
Dizem‑me isso, e asseguram‑me que o bom senso é senso raro.
Eu não entendo estas coisas; mas atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.
Asseveram‑me ainda que se assim não fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo oficial inteiramente fora da lei.”


Autor de romances leves como A Moreninha (1844) e O Moço Loiro (1845), talvez por isso, Joaquim Manuel de Macedo é considerado, por alguns críticos, um escritor pouco criativo. No entanto é preciso ressaltar que, se nessas primeiras obras encontramos um autor bastante jovem e romântico, aos 23/24 anos, o mesmo não se dá com A Luneta Mágica (1868) onde o escritor, beirando os 50 anos, está ciente do mundo ao seu redor e muito mais seguro do que a sua pena desenha sobre o papel. O Joaquim Macedo de A Luneta Mágica, permite-se ser irônico, sarcástico, dolorosamente divertido e, em sua reflexão dura e fria do mundo que o cerca, desfia um rosário de pérolas ainda hoje novas. Ou talvez apenas um pouco amareladas pelo ciclo vicioso da repetição.

Um advogado era para mim a luz do direito, o escudo da inocência, o campeão da lei; era a Sabedoria a pleitear pela justiça; como pois um advogado se anima a mentir diante de Deus e dos homens, a malfazer a sociedade, esforçando‑se com todo o poder das suas faculdades para que se julgue inocente e puro um assassino conhecido e provado, um malvado que ele sabe que é assassino?... e, mil vezes ainda pior, como é que outro advogado profundamente convencido de que o réu não cometeu o crime que lhe imputam, ousa ir acusá‑lo, ousa ir pedir que o encarcerem, que o condenem a trabalhos forçados?

A Luneta Mágica é um texto fácil e rápido, mas não é gratuito. É divertido, mas não é banal. Rimos da inocência de Simplício, ultrajada por familiares, mulheres, amigos e oportunistas de plantão, mas poderíamos chorar. A impressão que fica, ao fim da leitura, é a de que, com o passar do tempo, estamos a cada dia mais idiotizados nas relações humanas, políticas e sociais.

- Consola‑te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te exasperas por não poder ostentá‑los.

Ainda bem que já foi decretado O Fim da História. Por quem, mesmo?

Nota: Em 1986, Wilson Rocha adaptou A Luneta Mágica para a série Teletema, da Rede Globo. O programa foi exibido de 26 a 30 de maio de 1986 e reprisado de 10 a 14 de janeiro de 1987 (Fonte: Memória Globo. Em 2009, a obra está sendo lançada no formato de História em Quadrinhos, com adaptação de Carlos Patati e arte de Marcio Castro, pela a Panda Books.

ilustração: arte de Joba Tridente sobre foto de Joaquim Manuel Macedo
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