sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Joba Tridente: Colher - 2

COLHER é um poema em desenvolvimento. Trata de menores delinquentes, que conheci quando orientava Oficinas Culturais em Abrigos (Orfanato, Quartel, Semiliberdade) para adolescentes infratores e em situação de risco, e de jovens adultos, que conheci outrora e que desapareceram nos porões do (des)governo..., por ousarem pensar por conta própria. Já publiquei, no Falas ao Acaso, em novembro de 2014, os fragmentos I e IV. Agora você confere o fragmento VII.



COLHER - 2
Joba Tridente

VII

um banco de palavras
aleatórias
mãos trêmulas caçando palavras
aleatórias
memória puxando palavras
aleatórias

: em casa nunca
faltou sopa de letrinhas!

mãe, que letra é essa?
que letra?
essa que parece uma forquilha
é o ípsilon, mais comum no inglês
com ela se escreve young
quer dizer jovem

e essa?
essa é o dábliu
parece um M de ponta-cabeça
com M se escreve mártir
com W se escreve war
quer dizer guerra

mãe?!
o que é?
acho que escrevi um poema na sopa
leia pra mim
    mãe amanhece
    mãe entardece
    mãe anoitece
    mãe

mãe, onde vai?
recolher a roupa e já volto

acho que ela não gostou
do meu primeiro poema na sopa
mãe não tinha lavado roupa

engoli meu poema inteiro
com uma só colherada

engoli minha mãe
que numa noite desapareceu
na noite

engoli muitos outros poemas
a colheradas até o último pacote de sopa
e a minha mãe não voltou

*
joba tridente poesia (2014/2015) foto (2012)


Joba Tridente em Verso: 25 Poemas Experimentais; Quase Hai-Kai; em Antologias: Hiperconexões: Realidade Expandida; 101 Poetas Paranaenses; Ipê Amarelo, 26 Haicais; Ce que je vois de ma fenêtre - O que eu vejo da minha janela; Ebulição da Escrivatura; em Prosa: Fragmentos da História Antropofágica e Estapafúrdia de Um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás; Cidades Minguantes; O Vazio no Olho do Dragão. Contos, poemas e artigos culturais publicados em diversos veículos de comunicação: Correio Braziliense, Jornal Nicolau, Gazeta do Povo, Revista Planeta, entre outros.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Charles Baudelaire: O Bolo

Em As duas Clarices – entre a Europa e a América: leitura e tradução de obra de Clarice Lispector na França e no Quebec, lançado em 2014, pela Editora UFPR, a escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem, faz uma análise interessante da crônica-conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector (1920-1977) e do poema em prosa O Bolo, de Charles Baudelaire (1821-1867). Em provocação ao leitor, estou publicando os dois textos. Todavia, para não induzir a leitura do conto e do poema, cito apenas um breve trecho da analogia de Lucia Cherem: “O conto Perdoando Deus e um dos poemas em prosa de Charles Baudelaire, O bolo (Le gâteau), possuem a mesma estrutura narrativa, embora, a partir de um determinado momento, evoluam em direções diferentes. Os dois (...) possuem uma mesma visão romântica do mundo que vai, aos poucos sendo revista. (...) Os dois narradores partem de uma sensação de plenitude e enfrentam uma queda brusca, voltando ao mundo real. O que os diferencia, no entanto, é o rumo que cada um deles toma depois da sensação vivida. (...) Num estudo sobre Baudelaire, W. Benjamin, lembrando Paul Valéry, afirma que todo escritor, ao relatar uma emoção vivida, necessita trabalhar com a sua memória. É tentando lembrar-se do que aconteceu que poderá ou não tocar o leitor, no sentido de esse leitor reviver com o autor a mesma sensação.”



O BOLO
Charles Baudelaire
tradução de Paulo M. de Oliveira

Eu viajava. A paisagem no meio da qual me achava era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa se passou nesse momento em minha alma. Os meus pensamentos vagavam com uma ligeireza igual à da atmosfera. As paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me, então, distantes como as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob os meus pés. Minha alma parecia-me vasta e pura como a cúpula do céu que me cercava. Das coisas terrestres só me chegava ao coração a lembrança diminuída e apagada, como o ruído dos guizos de gado quase imperceptível que pastava ao longe, muito longe, na vertente de outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro em sua imensa profundeza, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do manto de um gigante aéreo que voasse pelo céu. Lembro-me de que essa sensação solene e rara, provocada por um grande movimento perfeitamente silencioso, enchia-me de um misto de alegria e de medo. Sentia-me em suma, graças à entusiasmadora beleza que me cercava, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo. Creio até que, na minha perfeita beatitude e no meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu chegara ao ponto de não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom. Foi quando a matéria incurável, renovando suas exigências, fez-me pensar em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por tão longa subida. Tirei do bolso um grande pedaço de pão, um copo de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos da época vendiam aos excursionistas para que o misturassem com a água da neve.

Eu estava tranquilamente cortando o meu pão, quando um leve ruído me fez erguer os olhos. Diante de mim estava um pequeno ser andrajoso, desgrenhado, cujos olhos fundos, ferozes e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. Ouvi-o suspirar, então, com uma voz baixa e rouca, a palavra: Bolo! Não pude deixar de rir ao escutar o nome com que ele pretendia honrar o meu pão quase branco, e cortei para ele uma fatia que lhe ofereci. Ele se aproximou devagarinho, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça. Depois, apanhando a fatia com a mão, recuou de repente, como se receasse que a minha oferta não fosse sincera ou que eu já estivesse arrependido.

No mesmo instante, porém, foi derrubado por outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se teria podido tomá-lo por um irmão gêmeo. Rolaram ambos no chão, disputando a valiosa presa, sem que nenhum quisesse sacrificar a metade pelo irmão. O primeiro, exasperado, puxou o segundo pelos cabelos; este pegou-lhe a orelha com os dentes e cuspiu-lhe uma migalha sangrenta com uma soberba praga regional. O legítimo proprietário do bolo tentou cravar as unhinhas nos olhos do usurpador; este, por sua vez, empregou toda a força para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reanimado pelo desespero, o vencido endireitou-se e fez rolar o vencedor por terra, com uma cabeçada no estômago. Para quê descrever uma luta hedionda, que na verdade durou mais tempo do que pareciam permiti-lo aquelas forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso a cada instante. Mas, ai de mim! Mudava também de volume. Quando, por fim, exaustos, anelantes, ensanguentados, pararam ambos pela impossibilidade de continuar, já não havia, a dizer verdade, nenhum motivo de batalha: o pedaço de pão desaparecera, todo fragmentado em migalhas semelhantes aos grãos de areia com que se misturara.

Esse espetáculo anuviou-me a paisagem. A alegria calma em que minha alma se expandia, antes de ver aqueles pequeninos homens, desapareceu por completo. E assim fiquei por muito tempo, triste, repetindo-me sem cessar:

- Há um soberbo lugar em que o pão se chama bolo, iguaria tão rara que é o suficiente para causar uma guerra perfeitamente fratricida!

*
Ilustração de Joba Tridente.2015


*
Notícia Biográfica extraída da primeira edição de Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa, da Athena Editora, 1937, com tradução de Paulo M. de Oliveira: Charles Pierre Baudelaire nasceu em Paris, a 09 de Abril de 1821. Era filho de um pintor amador adido à administração do Senado. Ainda muito criança, perdeu o pai, tornando sua mãe a casar-se com o coronel Aupick, que foi mais tarde marechal de campo e embaixador da França em Constantinopla, em Londres e em Madri. / Baudelaire iniciou seus estudos no colégio de Lyon e terminou-os no Liceu Luiz O Grande em 1839. A despeito da vontade da família, não quis seguir nenhuma carreira, para consagrar-se exclusivamente à literatura. Foi então que seus pais, para vencer-lhe a resistência, resolveram embarcá-lo num navio mercante com destino a Calcutá. Ele, porém, não chegou ao termo da viagem e, após uma ausência de dez meses, regressou à França. / Ao atingir a maioridade, recebeu Baudelaire uma fortuna de cerca de setenta e cinco mil francos, que o pai lhe deixara como herança. Vendo-se finalmente livre, foi morar na ilha de Saint Louis, onde travou relações de amizade com Banville, Levasseur, Prarond e outros jovens poetas e artistas. / Notável influência na formação de seu espírito exerceram as obras de Edgar Poe, seu contemporâneo, que ele, desde criança familiarizado com a língua inglesa através das viagens que fizera, traduziu para o francês com uma perícia verdadeiramente magistral, reunindo-as em cinco volumes: Histórias Extraordinárias, Novas Histórias Extraordinárias, Aventuras de Arthur Gordon Pym, Eureka e Histórias Sérias e Jocosas.  / Quanto às obras de Baudelaire, muitas das quais foram condenadas e perseguidas, passaram a constituir, logo depois de sua morte, verificada em Paris a 31 de Agosto de 1867, uma edição definitiva, composta de quatro volumes: Flores do Mal, Curiosidades Estéticas, A Arte Romântica e Pequenos Poemas em Prosa. Desse último volume, que aparece sob esse título geral, mas que encerra diferentes trabalhos, extraímos os poemas cuja primeira tradução brasileira aqui oferecemos ao público.

Paulo M. de Oliveira é tradutor, entre outras obras, de Tommaso Campanella - A cidade do Sol (1935); Alfred de Musset - Confissões de um filho do século (1936), com Adelaide Pinheiro Guimarães; Blaise Pascal - Pensamentos (1936); François Rabelais - Gargântua (1936); Charles Baudelaire - Pequenos poemas em prosa (1937); Gustave Flaubert - Madame Bovary (1937); Guido de Ruggiero - Sumário de história da Filosofia (1937); Cesare Beccaria - Dos delitos e das penas (1937); Dante Alighieri - Vida nova (1937), com Blasio Demétrio; Erasmo de Roterdã - Elogio da loucura (1939); René Descartes - Discurso sobre o método (1939); La Rochefoucauld - Máximas e reflexões (1939).  Informações sobre Paulo M. de Oliveira no site não gosto de plágio.

domingo, 23 de agosto de 2015

Clarice Lispector: Perdoando Deus

Em As duas Clarices – entre a Europa e a América: leitura e tradução de obra de Clarice Lispector na França e no Quebec, lançado em 2014, pela Editora UFPR, a escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem, faz uma análise interessante da crônica-conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector (1920-1977) e do poema em prosa O Bolo, de Charles Baudelaire (1821-1867). Em provocação ao leitor, estou publicando os dois textos. Todavia, para não induzir a leitura do conto e do poema, cito apenas um breve trecho da analogia de Lucia Cherem: “O conto Perdoando Deus e um dos poemas em prosa de Charles Baudelaire, O bolo (Le gâteau), possuem a mesma estrutura narrativa, embora, a partir de um determinado momento, evoluam em direções diferentes. Os dois (...) possuem uma mesma visão romântica do mundo que vai, aos poucos sendo revista. (...) Os dois narradores partem de uma sensação de plenitude e enfrentam uma queda brusca, voltando ao mundo real. O que os diferencia, no entanto, é o rumo que cada um deles toma depois da sensação vivida. (...) Num estudo sobre Baudelaire, W. Benjamin, lembrando Paul Valéry, afirma que todo escritor, ao relatar uma emoção vivida, necessita trabalhar com a sua memória. É tentando lembrar-se do que aconteceu que poderá ou não tocar o leitor, no sentido de esse leitor reviver com o autor a mesma sensação.”



PERDOANDO DEUS
Clarice Lispector

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? Naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

...mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.

É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

*
Ilustração de Joba Tridente.2015


*
Clarice Lispector (1920 - 1977), a voz feminina mais intensa e triste da literatura brasileira, é autora de Romances: Perto do Coração Selvagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); A Maçã no Escuro (1961); A Paixão segundo G.H. (1964); Uma Aprendizagem ou Livro dos Prazeres (1969); Água Viva (1973); Um Sopro de Vida (1978)..., Novela: A hora da estrela (1977)..., Contos: Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião estrangeira (1964); Felicidade clandestina (1971); A imitação da rosa (1973); A via crucis do corpo (1974); Onde estivestes de noite? (1974); A bela e a fera (1979)..., Crônicas: Visão do esplendor - Impressões leves (1975); Para não esquecer (1978); A descoberta do mundo (1984)..., Literatura  infantil: O mistério do coelho pensante (1967); A mulher que matou os peixes (1968); A vida íntima de Laura (1974); Quase de verdade (1978); Como nasceram as estrelas (1987). Há vasto material sobre ela na web: Releituras ou Clarice Lispector ou Wikipédia, entre outros. 

Nota: O conto Perdoando Deus, presente nas coletâneas Felicidade Clandestina (1971) e A Descoberta do Mundo (1984), foi publicado, em 19.09.1970, como crônica, no Jornal do Brasil.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Rollo de Resende: poema VII

No dia 15 de Agosto de 2015, Rollo de Resende completaria 50 anos. No dia 23 de Agosto de 2015, se lamentará 20 anos de sua morte. Na estrofe da ausência, somando-se os 30 anos de vida com os 20 anos de morte, faz-se 50 no reverser. Em sua homenagem uma seleção de sete poemas. A apresentação da escritora Jane Sprenger Bodnar, parceira literária de Rollo de Resende nos agitos culturais curitibanos, pode ser conferida na primeira postagem: poemas I e II. Você, que já foi ao parque de diversões, com o poema III, se banhou no mar, com o poema IV, desapegou-se do passado, com o poema V, encontrou o inesperado, com o poema VI, hoje se delicia com o sétimo deles, presente no livro Água Mineral.



VII

todos os dias
refaço a mesma rua,
nostálgico.
quero encontrar
de quem arrancaram-me.
vivo imantado.


*

Ilustração de Joba Tridente.2015





*
Jorge de Oliveira, Rollo de Resende, Jane Sprenger, Fernando Zanella
em bela foto de Aldo Melo

Autobiografia Rollo de Resende, em Água Mineral. Reginaldo ROLLO Possetti DE RESENDE. Nasceu roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes, artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada Recreio e de catecismos. Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, o Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares, porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Helio Leites, Adélia Prado. Algumas antologias que contém poemas meus: as do concurso Helena Kolody, Grifos de São José dos Pinhais, a antologia Poemas Fora da Ordem, prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos, e outros. Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei Bem Que Se Aviste Racho de Romã - 21 poemas que está em sua segunda edição. Em 1990, alguns poemas intitulados A Sublime Deriva foram publicados em página dupla no Jornal Nicolau. Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella elaboramos o projeto Homeopoética - poesias em cápsulas, em 1992. Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone: (041) 200 2021. Escritores preferidos: Walt Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mario Quintana e outros. Água Mineral - 60 poemas escritos entre 1990 e 1994 é meu terceiro livro. 9.Outono.1995.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Rollo de Resende: poema VI

No dia 15 de Agosto de 2015, Rollo de Resende completaria 50 anos. No dia 23 de Agosto de 2015, se lamentará 20 anos de sua morte. Na estrofe da ausência, somando-se os 30 anos de vida com os 20 anos de morte, faz-se 50 no reverser. Em sua homenagem uma seleção de sete poemas. A apresentação da escritora Jane Sprenger Bodnar, parceira literária de Rollo de Resende nos agitos culturais curitibanos, pode ser conferida na primeira postagem: poemas I e II. Você, que já mediu o mundo e a roda, com o poema III, se deixou levar pelo azul, com o poema IV, e sentiu as força do desapego, com o poema V, hoje se delicia com o sexto deles, presente no livro Água Mineral.


   

VI

pode ter saído de um romance de pasolini
(um dos seus “ragazzi de vitta”)
ou de um poema de konstantinos kaváfis

mas não,
veio a mim aqui mesmo do lado de fora da vida
e mais,
na verdade iria ao encontro de qualquer um


*
Ilustração de Joba Tridente.2015




 
*
detalhe de duas Fikebanas de Rollo de Resende

Autobiografia de Reginaldo ROLLO Possetti DE RESENDE. Nasceu roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes, artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada Recreio e de catecismos. Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, o Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares, porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Helio Leites, Adélia Prado. Algumas antologias que contém poemas meus: as do concurso Helena Kolody, Grifos de São José dos Pinhais, a antologia Poemas Fora da Ordem, prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos, e outros. Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei Bem Que Se Aviste Racho de Romã - 21 poemas que está em sua segunda edição. Em 1990, alguns poemas intitulados A Sublime Deriva foram publicados em página dupla no Jornal Nicolau. Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella elaboramos o projeto Homeopoética - poesias em cápsulas, em 1992. Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone: (041) 200 2021. Escritores preferidos: Walt Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mario Quintana e outros. Água Mineral - 60 poemas escritos entre 1990 e 1994 é meu terceiro livro. 9.Outono.1995.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Rollo de Resende: poema V

No dia 15 de Agosto de 2015, Rollo de Resende completaria 50 anos. No dia 23 de Agosto de 2015, se lamentará 20 anos de sua morte. Na estrofe da ausência, somando-se os 30 anos de vida com os 20 anos de morte, faz-se 50 no reverser. Em sua homenagem, uma seleção de sete poemas. A apresentação da escritora Jane Sprenger Bodnar, parceira literária de Rollo de Resende nos agitos culturais curitibanos, pode ser conferida na primeira postagem: poemas I e II. Você, que já rodou pelo mundo com o poema III e mergulhou no azul com o poema IV, hoje se delicia com o quinto deles, presente no livro Água Mineral.



V

por enquanto não sou o homem das lonjuras.
então, rendo graças a esses objetos
que agora me deixam:
a colher de pau quebrada ao meio:
a panela de barro rachada, vazando sobre
o fogo;
a mochila que devolvo ao tião, esgarçada.
tudo isto
transforma-se
no livro
que não é

me livro


*
Ilustração de Joba Tridente.2015




*
Jane Sprenger, Stella de Resende e Rollo de Resende

Autobiografia de Reginaldo ROLLO Possetti DE RESENDE. Nasceu roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes, artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada Recreio e de catecismos. Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, o Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares, porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Helio Leites, Adélia Prado. Algumas antologias que contém poemas meus: as do concurso Helena Kolody, Grifos de São José dos Pinhais, a antologia Poemas Fora da Ordem, prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos, e outros. Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei Bem Que Se Aviste Racho de Romã - 21 poemas que está em sua segunda edição. Em 1990, alguns poemas intitulados A Sublime Deriva foram publicados em página dupla no Jornal Nicolau. Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella elaboramos o projeto Homeopoética - poesias em cápsulas, em 1992. Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone: (041) 200 2021. Escritores preferidos: Walt Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mario Quintana e outros. Água Mineral - 60 poemas escritos entre 1990 e 1994 é meu terceiro livro. 9.Outono.1995.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Rollo de Resende: poema IV

No dia 15 de Agosto de 2015, Rollo de Resende completaria 50 anos. No dia 23 de Agosto de 2015, se lamentará 20 anos de sua morte. Na estrofe da ausência, somando-se os 30 anos de vida com os 20 anos de morte, faz-se 50 no reverser. Em sua homenagem uma seleção de sete poemas. A apresentação da escritora Jane Sprenger Bodnar, parceira literária de Rollo de Resende nos agitos culturais curitibanos, pode ser conferida na primeira postagem: poemas I e II. Ontem, com o poema III, você viu o mundo girar. Hoje você mergulha no azul, com o quarto poema, presente no livro Água Mineral.


             

IV

quando éramos crianças
usávamos azul-marinho
na escola

eu ainda não conhecia
o mar


*
Ilustração de Joba Tridente.2015



*
Rollo de Resende e Jane Sprenger
receitando Homeopoética - Poesias em Cápsulas 

Autobiografia de Reginaldo ROLLO Possetti DE RESENDE. Nasceu roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes, artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada Recreio e de catecismos. Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, o Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares, porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Helio Leites, Adélia Prado. Algumas antologias que contém poemas meus: as do concurso Helena Kolody, Grifos de São José dos Pinhais, a antologia Poemas Fora da Ordem, prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos, e outros. Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei Bem Que Se Aviste Racho de Romã - 21 poemas que está em sua segunda edição. Em 1990, alguns poemas intitulados A Sublime Deriva foram publicados em página dupla no Jornal Nicolau. Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella elaboramos o projeto Homeopoética - poesias em cápsulas, em 1992. Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone: (041) 200 2021. Escritores preferidos: Walt Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mario Quintana e outros. Água Mineral - 60 poemas escritos entre 1990 e 1994 é meu terceiro livro. 9.Outono.1995.

domingo, 16 de agosto de 2015

Rollo de Resende: poema III

Ontem, 15 de Agosto de 2015, Rollo de Resende completaria 50 anos. No dia 23 de Agosto de 2015, se lamentará 20 anos de sua morte. Na estrofe da ausência, somando-se os 30 anos de vida com os 20 anos de morte, faz-se 50 no reverser. Em sua homenagem uma seleção de sete poemas de sua autoria. A apresentação da escritora Jane Sprenger Bodnar, parceira literária de Rollo de Resende nos agitos culturais curitibanos, pode ser conferida na postagem anterior: poemas I e II. Hoje você se delicia com o terceiro poema, também do livro Água Mineral.


                                  

III

estava nublado e o sol
só veio muito tempo depois:
um dia, meu pai levou-me
a uma roda-gigante
com a intenção de me mostrar
o mundo.


*
Ilustração de Joba Tridente. 2015

                       


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Rollo de Resende, Fernando Zanella e Jane Sprenger: Homeopoetas
foto de Aldo Melo

Autobiografia de Reginaldo ROLLO Possetti DE RESENDE. Nasceu roxinho em Cambará, norte do Paraná, em 15 de agosto de 1965. Leão no solar, ascendente em gêmeos e lua cruel em peixes, artista plástico e cantor de blues. Quando criança, leitor de uma revista de recortes, chamada Recreio e de catecismos. Na adolescência, a descoberta de Augusto dos Anjos, o Conde de Monte Cristo, O Menino do Dedo Verde. Éramos uma turma de catorze alunos e vivíamos na cola das escolas literárias e de seus representantes. Por dois anos não passei nos vestibulares, porque na hora da redação escrevia poesias. Já em Curitiba, a descoberta de Helena Kolody, Helio Leites, Adélia Prado. Algumas antologias que contém poemas meus: as do concurso Helena Kolody, Grifos de São José dos Pinhais, a antologia Poemas Fora da Ordem, prêmio Caetano Veloso, nos seus cinquenta anos, e outros. Em 1988, através da Feira do Poeta, publiquei Bem Que Se Aviste Racho de Romã - 21 poemas que está em sua segunda edição. Em 1990, alguns poemas intitulados A Sublime Deriva foram publicados em página dupla no Jornal Nicolau. Sou integrante do grupo Baú de Signos, oficinas de poesias e afins. Com Jane Sprenger Bodnar e Fernando Zanella elaboramos o projeto Homeopoética - poesias em cápsulas, em 1992. Eu e minha irmã Stella de Resende integramos o elenco de poetas escolhidos para o Disque-poesias - fone: (041) 200 2021. Escritores preferidos: Walt Whitman, Elisabeth Bishop, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Rabindranath Tagore, Mario Quintana e outros. Água Mineral - 60 poemas escritos entre 1990 e 1994 é meu terceiro livro. 9.Outono.1995.

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