domingo, 31 de março de 2013

Joba Tridente: Retrato Dez por Um



Retrato em Dez por Um (*)


- Um trocadinhu, pessoali!
- Si cada um qui passassi aqui mi dessi um centavu eu tava feitio!
- Tem genti qui faz di contia qui nem mi vê!
- E eu é qui sô cego!

UM - Chova ou faça sol. Frio ou calor. Eles estão . No mesmo lugar. Mais certos que um meteorologista. Ilusões de ótica. Para uns. Cativos da própria sina. Para outros. Há anos. Aos pés de um sinaleiro. No nicho de um prédio público. Se arrastando pelas calçadas. Deslizando entre os diferentes. Agarrados a um poste. Parados no meio da praça. Seres. Administrativamente inexistentes. Impostos caducados. Sucatas do capitalismo. Profissionais da própria deficiência. Da própria indiferença. Da própria. Dá!

DOIS - O cisco em um olho, evita os mendigos. No outro, ofusca os desocupados. As lentes vencidas não captam os deficientes. Meras pedras soltas no caminho do apressado. Santas desculpas no caminho do lento. O normal prefere o atalho!

TRÊS - Ah, os motivos sempre expostos! O físico incompleto: Dor! A cabeça incompleta: Inveja! A educação incompleta: Frustração! A classe social incompleta: Deus Me Paga!

QUATRO - O olhar sempre incômodo, de falsa ou apavorante súplica dos pedintes, traz muita gente à realidade. Ajuda eu, miudinho! Ajuda, miudinho!  Ajuda!  Mãos crédulas vagam por entre bolsos e bolsas à cata de um troco, de uma moeda, de um agradinho qualquer. Solidariedade medrosa. Um Deus Lhe Pague!  pronto a lhes saltar da boca. Saltam muito, dependendo do dia. Amém, Jesus! Com a mente automática uma das mãos sobe e desce à aproximação de alguém. Trêmula. Eles tudo vêem, até os que contornam o ponto. A cabeça descai. O braço levanta. Estica. Estende. A mão se abre. A mão se fecha. Dedos treinados conferem a esmola. Moedas. Notas. Muitos sugerem o valor da dádiva, segurando uma nota de um real. Às vezes, basta o olhar!

CINCO - Um homem agarrado a uma árvore. Agarrado a um poste. Agarrado a alguma coisa vertical, suficientemente grande para ser agarrada. Puro devaneio. A sua lamúria, terrivelmente suplicante, vai sempre num crescendo. Apavora os transeuntes. Baba. Quase um ator. De rua. Parece um não-homem desabando sobre o alheio. Um homem se arrastando dia e noite. Altas horas ao sol ou à lua. Esfarrapado. Medieval. Algo saído de um quadro de Bosch. Um verso de Dante. Uma cena de Fellini. Uma vírgula apocalíptica. Balbucia súplicas empurrando uma caixa com trocados. Barrando. Atropelando os passantes. Nas costas um cartaz Deus Lhe Pague. Cuspe. Mais que um coadjuvante. De rua. Parece um não-homem desmanchando sob o alheio. Uma mulher que diz nada. Apenas olha com cara terrivelmente velha e suplicante. Numa terra de branco transparente. Projeta a sombra da noite. Olha nos olhos. Guarda a esmola na sacola. No final da tarde, talvez, o pão. Um Deus Lhe Pague sempre lhe escapa da frágil boca vespertina. Seca. Fiandeira de destinos. De rua. Parece uma não-mulher  acusando o alheio. Somam-lhes homem-estaca, homem-carrinho, homem-pula-pula, homem-nada. Sexo a varejo. Há mais homem que mulher na lida da pedição. Há mais mulher que homem no aluguel de criança. Há mais criança que adulto na perda da própria identidade. Sobre todos  há um silêncio sepulcral!

SEIS - Festival de pernas amputadas. Braços cotocos. Corpo sem coordenação. Cabeças ocupadas por extraterrestres, espíritos de porcos, fantasmas do passado. Ouvidos sem som. Bocas sem fala. Olhos sem luz. Feridas extrapolando a alma. Gente terminal. Interminada. Interminável. Não-gente. Não!

SETE Infância!? Inocência!? Esperança!? Sonho!? Futuro: Compre um agulheiro, tio! Compre uma pastilha, tia! Compre uma flor pra moça, moço! Compre isso! Compre aquilo! Eu preciso vender, se não a minha mãe me bate! Então, me um trocado! Faço qualquer coisa! Me ajude! Me ! Me! M! !   

OITO - Um trocado! Um real! Um vale refeição! Um vale transporte! Uma ajuda para comprar remédio para a criança! Pedem. Suplicam. Exigem inexistentes cidadãos. Ninguém está a salvo. Nem eles! A miséria entre os comuns pode ser ampla, geral e irrestrita. Depende apenas do ponto (em) que se avista. Ou da coleta do dia. Nãoespaço para amadores. Todos são sem alguma coisa. Desejos (quase) abortados. Mãos indomadas no atacado!

NOVE - Pede-se de tudo pelas ruas, esquinas, praças, portas de bares, restaurantes, igrejas, cinemas, cemitérios, centros de compras, caixas 24 horas. Teatro. O pedintódromo é a céu aberto. Qualquer lugar que o movimento prometa. Um pede. Teme ser preso. Outro dá. Teme ser tomado. Marcado. Vigiado. Encontrado na esquina que vem depois. Paraneurose.  Neuroparanóia. Pesadelos. Noites em claro. Ouvidores caros. Rezas obsoletas. Gorjetas dizimadas. Decimadas. Olhar conivente de um Deus!

DEZ - Minha culpa! A Igreja. Crescer e multiplicar. Minha culpa! O rico. Ser rico. Minha culpa! O pobre. Ser pobre. Minha culpa! O empresário. Ser lucro. Minha culpa! O computador. Ser futuro. Minha culpa!  O Governo. Ser falta. Minha culpa! O Estado. Ser resto. Minha máxima culpa! O Pedinte. Existir. Pedir. Ei, doutor, uma esmola/ para um pobre que é são/ ou lhe mata de vergonha/ ou vicia o cidadão, cantava Gonzaguinha, nos anos 70. Um dia ao invés de poesia. Ser. Cidadania!


(*) Joba Tridente - Crônica escrita em 04.06.1997, publicada no mesmo ano no Caderno Cultural do Jornal A Notícia (Joinville-SC)..., e ainda atual. Ilustração de 2013.

sábado, 30 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Gregório de Matos



Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) estou postando uma literatura copilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga. Encerro a Semana com a insinuante e poética barganha do mestre da eloquência Gregório de Matos em A Jesus Cristo Nosso Senhor.


A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vós tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


*
Ilustração de Joba Tridente - 2013



Gregório de Matos Guerra (Salvador, 1636 – Recife, 1695), o Boca do Inferno, poeta satírico e advogado, um dos maiores nomes da poesia barroca do Brasil. Gregório de Matos é considerado o precursor da literatura brasileira. Há farto material sobre o autor e a sua polêmica obra disponibilizado em vários arquivos no Portal Domínio Público (link) e na web.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Guerra Junqueiro 3



Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) estou postando uma literatura compilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga. Nesta sexta-feira Guerra Junqueiro receita A Água de Lourdes, um poema publicado em A Velhice do Padre Eterno (1885).


A Água de Lourdes

Se ergueis uma capela à água milagrosa,
            Esse elixir divino,
Então erguei também um templo à caparrosa
            E outro templo ao quinino.

Se a água faz milagre, o que eu vos não discuto,
            E por isso a adorais,
Ajoelhemos então em face do bismuto
            E doutras drogas mais.

Façamos da magnésia e clorofórmio e arnica
            As hóstias do sacrário;
Transformemos o templo enfim numa botica
            E Deus num boticário.

Que a vossa água opere imensas maravilhas
            Eu não duvido nada:
É o Espirito Santo engarrafado em bilhas,
            É o milagre à canada.

Desde que se espalhou pelo universo o eco
            Do milagre feliz,
Tartufo nunca mais encheu o seu caneco
            Em outro chafariz!
  


Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais polêmicos e importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg. A grafia acompanha a da edição de A Velhice do Padre Eterno de 1926.

Ilustração de Leal da Câmara (1876 - 1948) para A Velhice do Padre Eterno - Edição Lello & Irmãos Editores, de 1926.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Guerra Junqueiro 2



Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) estou postando uma literatura compilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga. A quinta-feira também é de Guerra Junqueiro e o seu inflamante poema A Árvore do Mal, publicado em A Velhice do Padre Eterno (1885).


A Árvore do Mal

Por baixo do azul sereno, entre a fragrância
       Dos mirtos, dos rosais,
Viviam numa doce e numa eterna infância
       Nossos primeiros pais.

Seus corpos juvenis, mais alvos do que a lua,
     Mais puros que os diamantes,
Conservavam ainda a virgindade nua
     Das coisas ignorantes.

Pôs Deus nesse jardim com sua mão astuta
     Ao lado da inocência
A Árvore do Mal que produzia a fruta
     Venenosa da ciência.

E, apesar de conter venenos homicidas
     E o germe do pecado,
Era Deus quem comia á noite, às escondidas,
     Esse fruto vedado.

Por isso Jeová tinha ciência infinda,
     Tinha um poder secreto,
E Adão que não provara os frutos era ainda
     Um anjo analfabeto.

Eva colheu um dia o belo fruto impuro,
      O fruto da Razão.
Nesse instante sublime Eva tinha o Futuro
     Na palma da sua mão!

O homem, abandonado a submissão covarde,
     Viu o fruto e comeu.
Esse fruto é a luz que a Júpiter mais tarde
     Roubará Prometeu.

E ao ver igual a si a estátua que criara,
     O homem réprobo e nu,
Jeová exclamou: «Maldita seja a seara
     cuja semente és tu!»

Veio depois a Igreja e repetiu aos crentes
     De toda a humanidade:
«Maldito seja sempre o que enterrar os dentes
     Nos frutos da Verdade!»

A Igreja permitia esse vedado pomo
     Somente aos sacerdotes.
Da Árvore do Mal fugia o mundo, como
     Os lobos dos archotes.

Se o sábio que buscava o ouro nas retortas
     Ia como um ladrão
Roubar timidamente, à noite, às horas mortas,
     Algum fruto do chão,

Tiravam-lhe da boca esse fruto daninho
     Duma maneira suave:
Atando-lhe á garganta uma corda de linho
     Suspensa d'uma trave.

Um dia um visionário, alma vertiginosa,
     Espirito imortal,
Foi deitar−se, que horror! à sombra temerosa
     Da Arvore do Mal.

A Igreja ao ver aquela intrépida heresia
     Lança-lhe excomunhões;
Tomba por terra um fruto... e Newton descobria
     A lei das atrações!

Sacudi, sacudi, a arvore maldita,
     Que os astros tombarão,
Como se sacudisse a abobada infinita
     Deus com a própria mão!

E quando o mundo inteiro enfim houver comido
     Até á saciedade
O fruto que lhe estava ha tanto proibido,
     O fruto da Verdade,

Homens, dizei então a Jeová: - «Tirano,
     Vai-te embora daqui!
Construímos de novo o paraíso humano;
     Fizemo-lo sem ti.

«Expulsaste do Olimpo a humanidade outrora,
     Ó déspota feroz;
Pois bem, o Olimpo é nosso, e Jeová, agora
     Expulsamos-te nós!


Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais polêmicos e importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg. A grafia acompanha a da edição de A Velhice do Padre Eterno de 1926.

Ilustração de Leal da Câmara (1876 - 1948) para A Velhice do Padre Eterno - Edição Lello & Irmãos Editores, de 1926. 

quarta-feira, 27 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Guerra Junqueiro 1



Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) estou postando uma literatura compilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga. Hoje é quarta-feira e cabe a O Dinheiro de S. Pedro, do polêmico escritor português Guerra Junqueiro, autor da obra prima: O Melro, que também se encontra em A Velhice do Padre Eterno (1885), possivelmente a sua obra mais emblemática.


O Dinheiro de S. Pedro

De tal modo imitou o papa a singeleza
Do mártir do Calvário,
Que à força de gastar os bens com a pobreza
            Tornou-se milionário.

Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
            O teu vigário humilde
Conversando na bolsa em fundos da Turquia
            Com o Barão Rotschild.

A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida,
            Por te haver dado a morte,
Tem-na no seu bureau o Padre-Santo erguida
            Sobre uma caixa forte.

E toda essa riqueza imensa, acumulada
            Por tantos financeiros,
O que é a economia, oh Deus! foi começada
            Só com trinta dinheiros!


*
Ilustração de Leal da Câmara - 1926



Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais polêmicos e importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg. A grafia acompanha a da edição de A Velhice do Padre Eterno de 1926.
  
Ilustração de Leal da Câmara (1876 - 1948) para A Velhice do Padre Eterno - Edição Lello & Irmãos Editores, de 1926.


terça-feira, 26 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Anônimo 3



Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) estou postando uma literatura compilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga. Há sete anos ou oito anos, pesquisando arquivos literários do Projeto Gutemberg, encontrei uma pérola raríssima: Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir, de autoria desconhecida, publicado em 1862. A terça-feira está reservada para a fantasia burleca A Tentação de Santo Antonio.


A Tentação de Santo Antonio

«O mundo acabar
Penso que vai,
Ai ai! ai ai!
Vou apitar!
Tão rodeado
Estou de diabos
Com unhas e rabos
D'assarapantar!
Raios, coriscos,
Bombas e traques
E mais petiscos
A rabiar
E a estoirar
Em torno de mim!
Zás catrapaz!
Se Deus piedade
Não tem do frade,
Grande caurim
Me vai pregar
Dom Satanaz!»

Todo a tremer, Santo Antonio
Assim se poz a gritar
Quando o travesso demonio
Em pessoa o foi tentar.

Sae do inferno
Troça bravia
De quantos demos
Por lá havia.
Em vassouras
Vêem montados,
Com tesouras
E machados
Sobraçados;
Bem armados
D'escupetas,

Estes coçam as carécas,
Aquelles fazem caretas,
Tocando grandes trombetas,
Cavaquinhos e rebecas.
Vem um tocando fagote,
E outro com um chicote
Já começa a sacudir
O habito empoeirado
Do alegre frei Antonio;
Mas o frade atomatado
Logo se põe a fugir
De tão chibante demonio,
Correndo conforme póde
E gritando todo afflicto:
«Aqui d'el-rei, quem m'acode!
Ó da guarda! Eu apito!»

Dous feios diabos
Mui cabelludos,
Cornos agudos
E longos rabos,
Entram na cella
Do bom santinho;
Vão-lhe á panella
Que ao lume tinha
C'uma gallinha
Paio e toucinho,
Tiram-lhe a tampa,
Comem-lhe tudo,
Deitam-lhe trampa;
Vão-lhe á borracha
Que tem o vinho
N'um esconderijo;
Bebem-lhe tudo
Deitam-lhe mijo.
Á tal cambada
Não escapa nada
Tudo se acha
Quebra e estraga
Mija e caga.

Uma pequena bonita
Tambem lh'entra na caverna
Toda lépida e catita,
E começa a levantar
O ballão, e linda perna
Logo se põe a mostrar...
«Ai Jesus! diz Santo Antonio
Vai-te d'aqui ó demonio
Não me estejas a tentar...»

«Façam dançar
Contradançar
Pular
Cantar
Saltar
Esse santinho»
Já diz gritando
Um diabinho
Que está tocando
A desgarrada
N'um cavaquinho.
Eis toda aquella
Endiabrada
Troça bravia
O bom do Santo,
Que já n'um canto
Se escondia,
Vai buscar.
E a tocar
N'uma panella
Com a tranca
Da janella,
N'uma banca
O faz dançar
Pular
Saltar
Cantar.

Até Plutão, o rei demonio,
Quiz assistir á funcção,
Pois quer ver se frei Antonio
Se livra da tentação;
E p'ro que der e vier
Comsigo traz a mulher.

O Santo todo encolhido
No meio d'aquella canalha
Cada vez mais se atrapalha;
Um demo mais atrevido,
Dá-lhe muita bordoada,
E outro feito cupido
Vem por traz com uma setta
E no coração lh'a espéta...
A nada se move o frade
Modelo de castidade!!

Vendo porém
Que fim não tem
A seringação
Fórma tenção
De s'esconder;
E mui callado
Vai-se a metter
Dentro da cama;
Mas lá recúa
Todo espantado
Pois uma dama
Toda janota,
(Ainda que nua,
Mesmo em pelóta)
Acha deitada
Em seu lugar...
A concubina
Com uns olhinhos
Muito espertinhos
A scintillar
Já o fulmina
E quer tentar...

A tal menina
É mesmo boa;
Se Prosepina
É em pessoa!

Santo Antonio atrapalhado
Contempla incendiado
Aquella erotica scena,
E em frente da belleza
De coisas que nunca viu...
Ao poder da natureza,
Com bem custo resistiu...
Mas quando quasi tentado
Com os olhos da pequena,
Vai a cair na esparrella
De saltar a cima della,
Lembra-lhe Deus derepente
Que vai cair em peccado,
Fica todo aforçurado
E como que inspirado,
Vai buscar muito apressado
D'agua benta seis canadas
E nos demos imponente
Ferra boas hysopadas.
Estoira que nem castanhas
Toda aquella diabada,
Cada demo dá um tiro
Que nem uma peça raiada;
E fugindo a bom fugir
Tudo vai em debandada,
Santo Antonio de contente
Dá tamanha gargalhada
Que até no traseiro sente
A fralda toda cagada.

«Se não vou buscar
Logo tão depressa
A tal agua benta,
De certo me tenta
Aquella travêssa...
Olhem que é ladina,
Mesmo de tentar,
A tal Prosepina!
Mal empregado pexão
Para o dente do Plutão!»

Lamenta tão pesaroso
A má sorte da pequena
O famoso Santo Antonio,
Que parece já ter pena
De se mostrar tão teimoso
Em resistir ao demonio...


*
Ilustração de Joba Tridente - 2013


O Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir é um daqueles achados que faz a gente confirmar que um bom texto é atemporal. O volume é recheado de prosa e verso sarcásticos, irônicos, safados, metafóricos, eróticos, românticos, chulos ao extremo e divertidíssimos do primeiro ao último parágrafo ou verso. Uma Colleção de Receitas Para Fazer Rir, inacreditavelmente atual, 151 anos depois da sua publicação, e tão boa que poderia até mesmo ser um texto perdido de Gregório de Matos (1623-1696) ou de Bocage (1765-1805).

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