quinta-feira, 25 de março de 2021

Millôr Fernandes: ABC Gestaltiano


Millôr Fernandes
ABC Gestaltiano

Há muito que venho aguardando o dia propício para a publicação deste divertidíssimo ABC Gestaltiano, (que, em 1964, virou Alfabeto Concreto, fac-símile abaixo) do genial escritor Millôr Fernandes, no Falas ao Acaso. Mas, aí, enquanto artista que se vira daqui e dacolá, vou me ocupando com outras artes e negligenciado outras e os blogs vão claudicando. Hoje, 27 de março de 2021..., num país desgovernado e em polvorosa com a pandemia negada..., dia que marca nove anos da morte deste que foi um dos mais notáveis intelectuais brasileiros, acho que é o momento propício para aliviar as tensões.

Esta composição gestaltiana levou anos, literalmente, para ser feita. Foi melhorando na medida em que o tempo – os anos, Deus meu! – foram passando. Publicada a primeira vez em 1958, na revista O Cruzeiro, foi reescrita para várias publicações. Não se consegue fazer esse tipo de coisa, numa sentada só. Tem que ser um pouco chinês. Millôr Fernandes.



ABC GESTALTIANO

Millôr Fernandes 

O A é uma letra com sótão. Chove sempre um pouco sobre o à craseado. O B é um l que se apaixonou pelo 3. O b minúsculo é uma letra grávida. Ao C só lhe resta uma saída. O Ç cedilha, esse jamais tira a gravata. O D é um berimbau bíblico. O e minúsculo é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras letras. O F, com seu chapéu desabado sobre os olhos, é um gangster à espera de oportunidade. O f minúsculo é um poste antigo. A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O g minúsculo é uma serpente de faquir. O H é uma letra duplex. A parte de cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo é um dinossauro. O I maiúsculo guarda, em seu porte de letra, um pouco do número I romano. O i minúsculo é um bilboquê. O J, com seu gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O j minúsculo é uma foca brincando com sua bolinha. Vê-se nitidamente; o K é uma letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto com o k minúsculo o K maiúsculo treina passo-de-ganso. O L maiúsculo parece um l que extraíram com raiz e tudo. Mas o l minúsculo não consegue disfarçar que é um número (1) romano espionando o número arábico. O M maiúsculo é um gráfico de uma firma instável. O m minúsculo é uma cadeia de montanhas. O N é um M perneta. No n minúsculo pode-se jogar críquete com a bolinha do o. O O maiúsculo boceja largamente diante da chatice das outras letras. O o minúsculo é um buraquinho no alfabeto. O p é um d plantando bananeira. Ou o q, vindo de volta. O Q maiúsculo anda sempre com o laço do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando de costas ao espelho. O R ficou assim de tanto praticar halterofilismo. Sente-se que o s é um cifrão fracassado. O S maiúsculo é um cisne orgulhoso. Na balança do T se faz jusTiça. O U é a ferradura do alfabeto, protegendo o galope das ideias. O u minúsculo é um n com as patinhas pro ar. O V é uma ponta de lança. O W são vês siameses. O X é uma encruzilhada. O Y é a taça onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente, de braços pra cima. O Z é o caminho mais curto entre dois bares. O z minúsculo é um s cubista.

*Ilustrações: 1. Fotomontagem de JT.2021, com foto de Millôr Fernandes/Wikipédia e assinatura de Millôr Fernandes/Acervo IMS. 2. Assinatura de Millôr Fernandes/Acervo IMS.

 




Fac-símile: Pif-Paf, nº1, p.18, de 21 de maio de 1964, Rio de Janeiro.
Millôr Fernandes, sob o pseudônimo de Emanuel Vão Gôgo.

  

Millôr Fernandes (Rio de Janeiro/RJ: 16.08.1923 - Rio de Janeiro/RJ: 27.03.2012): desenhista, humorista, cartunista, artista-plástico, dramaturgo, escritor, tradutor e jornalista brasileiro. Perspicaz e sarcástico, dono de uma linguagem única, num país a cada dia mais anafabestado, Millôr ganhou fama com suas colunas e páginas de humor irônico (ainda hoje pertinentes) publicadas nas revistas A Cigarra, O Cruzeiro, Pif-Paf, Veja, IstoÉ, e nos jornais, O Jornal, O Pasquim, Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, O Dia, Correio Brasiliense, Folha de S.Paulo.

Saber mais: Wikipédia: Millôr Fernandes; Instituto Moreira Salles: Acervo de Millôr Fernandes; TV Cultura de São Paulo/Roda Viva: Millôr Fernandes (03.04.1989); TV Cultura de São Paulo/Vitrine: Entrevista com Millôr Fernandes; Piaui: Zillôr: Um Nome a Melar; Dissertação/Eduardo Coleone: Millôr Fernandes: análise do estilo de um escritor sem estilo através de suas fabulosas fábulas; Dissertação/Ana Angélica Alves de Mello Santos: Duas crônicas verbo-visuais de Millôr Fernandes: uma análise bakhtiniana; Dissertação/Alessandro Ribeiro e Catarina Santos Calado: Formação de palavras em textos de Millôr Fernandes; Tese/ Odilia Carreirão Ortiga: O riso e o risível em Millôr Fernandes: o cômico, o satírico e o humor; Outras análises da obra de Millôr Fernandes: aqui.


segunda-feira, 15 de março de 2021

Mulheres Poetizam

 


MULHERES POETIZAM

Neste março de 2021 que, ao reflexo de 2020, ainda nos aborrece e nos amortece com a pestilência do coronavírus..., a Revista Carlos Zemek - Arte e Cultura, está lançando mais um ebook literário grátis. Desta vez, em comemoração ao mês dedicado às mulheres, a antologia Mulheres Poetizam, organizada pela escritora Isabel Furini.

Em seu prefácio, a escritora e editora Chris Herrmann, enfatiza: Mulheres Poetizam é mais do que simplesmente uma antologia que empilha poemas de autoras ‘de versos’. É um projeto que já carrega em si, mesmo antes de se ler os poemas, vários aspectos que fazem toda a diferença. (...) Estamos no mês dedicado às mulheres, em um momento pandêmico e político terrível, doído e complicado, onde as vozes femininas, especialmente nas artes, são ainda mais necessárias e urgentes. (...) Obviamente que a antologia não tem a pretensão de abarcar vozes de todas as grandes poetas existentes em um país imenso e continental como o Brasil. Contudo, esta seleção de 26 poetas é, por excelência, uma mostra honrosa da boa literatura poética feita por mulheres em nosso país. (...) Como espelhos do cristal mais fino que existe, seus textos são sutis e provocantes. (...) Refletem a essência da verdade em seus ‘gritos e sussurros’: espelham a alma feminina-feminista ancestral, contemporânea e universal.”

Para esta postagem especial, selecionei e ilustrei poemas de cinco autoras: Bárbara Lia (Poema sem título), Adriane Garcia (Leve), Jéssica Iancoski (Sem a palavra, o amor não acontece), Flávia Quintanilha (Estrela) e Etel Frota (Trágico). Para conhecer os poemas das outras vinte e uma escritoras, basta acessar o link Mulheres Poetizam, baixar o ebook gratuitamente e ou ler online



 

 







Poema sem título

Bárbara Lia

 

ruas respiram o calor da vida

quando as portas se abrem

na madrugada

 

só da minha porta escoa

a aragem fria

da solidão calcinada

 

lençóis de linho

em desalinho

de saudade

 

silêncio

de paredes

órfãs

 

tudo ignorado

pela ikebana

sorrindo luz

no canto da sala

 

Bárbara Lia (1955). Poeta e Escritora. Livros publicados: O sal das rosas (Lumme), A última chuva (Mulheres Emergentes), Solidão Calcinada (Imprensa Oficial - PR/), A flor dentro da árvore, Forasteira (Vidráguas), As filhas de Manuela (Triunfal.), Não o convidei ao meu corpo (Kazuá), entre outros. Vive em Curitiba. http://www.chaparaasborboletas.blogspot.com

 

 










Leve

Adriane Garcia

 

Abrir gavetas e armários

Retirar coisas

Tudo que sobra

 

Não ter medo de olhar

Para dentro das gavetas e armários

E retirar tudo que sobra

 

Passar adiante

Com menos, sempre menos

Até voar sem as horas.

 

Adriane Garcia (BH/MG), poeta. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Evaproto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020).

 

 










Sem a palavra, o amor não acontece

Jéssica Iancoski

 

para Christian Dunker

 

o sexo representa o infantil

preenche-se a falta com

o gozo da infância indolente

onde não há uma palavra gentil

há o gosto do beijo

que sedento toma a frente

a vagina oca molhada

consumindo o falo sustenido

num vagido puro da libido

quanto mais se aprende a fala

quanto menos a laringe entala

menor é o vazio, maior é o brio

sem a palavra não conjuga-se

o verbo da fala,

o desejo é a regência

da falta.

 

Jéssica Iancoski é escritora, poeta e artista plástica. Publicou em várias antologias e revistas. Teve o poema Rotina Decadente reconhecido pela Academia Paranaense de Letras. É idealizadora do Toma Aí Um Poema – o maior podcast lusófono de declamação de poesias, segundo o Spotify. Com mais de 36 mil ouvintes diferentes, ao longo do tempo. www.jessicaiancoski.com e @Euiancoski

 











estrela

Flavia Quintanilha

 

quando amei aquela estrela

deixei o cinza no fundo da gaveta

sorri colorido

e foram verdes minhas mãos

 

em seus olhos vi o universo

espalhado em folhas

numa muda de alfazema

e meus cabelos ventavam alecrim

 

em seus beijos desenhei a pétala

o jardim cantava pimentas

num lençol de algodão

e os quadros se firmaram no ar de

nossos poemas

 

tentei alcançar aquela estrela

nas receitas que não cozi

nas rendas que acabei ao tecer

fechaduras

e meu corpo já não me comporta

 

nem as folhas

nem as asas

 

quando amei aquela estrela

virei pó

 

Flavia Quintanilha é poeta e filósofa. Membro colaborador no Instituto de Estudos Filosóficos na Universidade de Coimbra e editora associada na revista Philosophy International Journal. Pesquisa sobre hermenêutica filosófica principalmente nos temas metaética, metapoesia e deep ecology. Publicou os livros Aporias da Justiça (Novas edições Acadêmicas - 2015), A mulher que contou a minha história (Kotter - 2018) e Desabotoar (Patuá – 2020).

 

 










Trágico

Etel Frota

 

para Abílio

 

lavra o árido

cala o ávido

anacrônico

 

verte o cálido

fala o óbvio

pentatônico

 

lega o ótimo

vai, num átimo

cessa, anônimo

 

Etel Frota, nasceu em 1952, em Cornélio Procópio (PR). Médica, começou a escrever depois dos 40 anos. Em 2002 lançou Artigo oitavo - poesia escrita, falada e cantada. Letrista de canções, em 2007 publicou Lyricas, a construção da canção, reunindo em songbook uma produção que tem sido gravada por importantes artistas da cena musical brasileira. Seu primeiro romance, O herói provisório é de 2017. Em 2019 participou de Mahadevi, a árvore da vida, poesia para a fotografia de Dani Leela. Premiada em certames de literatura, música e dramaturgia. Membro da Academia Paranaense de Letras.



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