DOS CORTELHÕES E DOS PLINGACHEIROS
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textos em vinho
Para quem sabe o quê quer e onde procurar, a internet é uma grande mina cultural. Você pode encontrar publicações raras e ou até aquelas que nem se estava procurando, como esta antologia da Poesia Popular dos Cortelhões e dos Plingacheiros, presente na edição nº 4 da ALCAFA on-line (2011)..., mas publicada originalmente em 1991, no nº 12 de Preservação, boletim informativo da Associação de Estudos do Alto Tejo, numa tiragem de 50 exemplares. Foi também mergulhando aleatoriamente nas nuvens, que me deparei, anos antes, com a não menos interessante antologia Contos Populares e Lendas dos Cortelhões e dos Plingacheiros (2013), na edição nº 6 da ALCAFA on-line (2013).
Ensaiei várias vezes publicar alguns contos aqui
no Falas ao Acaso, mas acabei me ocupando com outras postagens. Agora,
finalmente selecionei alguns poemas extraídos da antologia Poesia
Popular dos Cortelhões e dos Plingacheiros e trechos importantes
da apresentação e da introdução.
“Este documento é um simples reportório de poesia
popular, alguma da qual cantarolada, totalizando 642 peças. O registo desta
poesia foi efectuado na década de 80, do século XX, numa área correspondente a
Vila Velha de Ródão e a Proença-a-Nova, dois municípios vizinhos, situados no
interior-centro de Portugal Continental. A recolha foi demorada e beneficiou
dos testemunhos de inúmeros informantes, geralmente idosos, e hoje (ano de
2011) já desaparecidos do convívio dos vivos. A primeira divulgação deste
património cultural imaterial foi efectuada há cerca de 20 anos.”
Prefácio ou Nota Liminar
Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata
“Estar atento para preservar algo que integra um
passado (ou o que se vai tornar passado) que guarda uma parte da substância
identitária do homem é uma acção meritória, digna de elogio e reconhecimento
presente e vindouro. É o que se passa com a recolha de Poesia
Popular dos Cortelhões e Plingacheiros, trabalho de Francisco Henriques
e João Caninas, louvável pela ideia, pela acção, pela coordenação e
organização, com o apreço devido também aos seus colaboradores. (...) As palavras da poesia
popular, que se tornam vivas na voz do povo, da voz do povo foram colhidas, e
aqui estão, guardiãs de um testemunho, que funciona como pequena riqueza
sociológica, histórica, linguística, agasalhando ainda o sentir e o pensar ao
longo de um tempo. (...) O
que é colectivo, dito ou cantado por toda a gente quase desde bruma do tempo,
teve um autor individual que foi perdendo autoria, sendo esquecido esse autor,
todavia anonimamente avivado na boca de todos. (...) O criador inicial pode ser mais ou menos letrado, mas
prova-se que o povo se apropria daquilo de que gosta, do que lhe dá prazer em
encontros de amigos e conhecidos, em encontros de festa ou até no simples
trauteio que, por vezes, acompanha o trabalho diário. (...) A popularidade destas produções alimenta-se de
referências a bens materiais e espirituais, ligando-se ao ambiente em que se
vive, nomeando locais, falando de crenças e invocando Deus, a Virgem e santos
de devoção, apreendendo o quotidiano do trabalho e das relações humanas, a
riqueza e a pobreza, as estações do ano, o Natal e o Entrudo, a flora que
explode em flores (rosas, cravos, alecrim, rosmaninho, manjericos, violetas e
mais), em árvores e em frutos (dos mais notados está a azeitona, o limão, a
laranja), não esquecendo animais domésticos que partilham quotidianos do
homem.”
Introdução
Francisco Henriques e João Caninas
“(...) É
sobremaneira rica a alusão às relações humanas, emergindo simultaneamente
preconceitos, regras de convivência, valores, carreando também sentimentos e
emoções. Destaco apenas, para exemplificar, o posicionamento da mulher, a moça
bem falada ou mal falada, o jogo de sedução. (...) A crítica, com escárnio e maldizer, está muito presente
e vai definindo relações e contextos. (...) Apresenta-se
a voz do povo como uma voz de Deus, pela sabedoria, pela experiência, pela
distinção do Bem e do Mal, com função pedagógica, com marca sociológica,
participando numa história historicamente, com a força da língua num estilo
característico que plasma sentimentos, emoções, graças, numa semântica de
dureza ou doçura. (...) As
primeiras recolhas de poesia popular iniciaram-se nos finais de 1983, não
possuindo ainda, nessa altura, o carácter metódico que ganharam cerca de dois
anos mais tarde. A partir daí, a pouco e pouco, e sempre que as nossas
actividades profissionais, arqueológicas e outras o permitiam, íamos
engrossando esta colectânea. (...) Parte
significativa deste material foi recolhido junto de pessoas que ultrapassaram
já as seis, sete e mesmo oito décadas de vida. Outra parte, pequena por sinal,
junto de informantes mais novos, mas depois de terem “vivido duas vidas” – a
vivência quase medieval da sua aldeia de criança e adulto jovem e a vida dos
nossos dias com muito do que pode oferecer. (...) Nos trabalhos de campo, colaboraram directamente com os
subscritores os seguintes elementos: Maria dos Anjos M. Tavares Henriques,
Maria Albertina M. Tavares, Ricardo Jorge R. Henriques e João Paulo Duarte. Vem
ainda a propósito registar a informação de que há algumas dezenas de anos o Sr.
Padre Geada, responsável do Orfeão da Covilhã e conhecedor da riqueza do
cancioneiro da região de Perais, fez recolhas de cantares junto de um grupo de
mulheres desta aldeia, utilizando-os posteriormente no reportório do Orfeão de
que era responsável.”
POESIA POPULAR
DOS CORTELHÕES E DOS PLINGACHEIROS
Aqui te batizo meu menino
À beira deste ribeiro
Deus te faça um ladrãozinho
Com os pezinhos bem ligeiros
Esta
quadra é referida como a que o povo cigano utiliza
quando do
baptismo dos seus filhos.
Há outras
versões.
28.
Já fui cravo já fui rosa
Já fui raminho inteiro
Já te namorei de graça
Agora nem por dinheiro.
30.
Já comi e já bebi
Já molhei a minha garganta
Eu sou como o rouxinol
Quando bebe sempre canta.
33.
Toda a vida fui pastor
Toda a vida guardei gado
Tenho uma cova no peito
De me encostar ao cajado.
48.
Mandaste-me aqui vir
Meu amigo à tua festa
Quem tem fome não se ri
Corpo sem alma não presta.
Quadra que
se diz ter sido cantada por um tocador,
a quem
pediram para animar uma festa,
sem que
previamente lhe tenham dado de comer.
53.
Relógio que dás as onze
Te peço por caridade
Que dês as onze mais cedo
E a meia-noite mais tarde.
56.
Já vi um gato a ler
Uma galinha a passar escola
Nas costas de uma formiga
Jogando jogo de bola.
68.
Linda é a mocidade
Pena é vê-la fugir
Não é como a Primavera
Que se vai e torna a vir.
71.
Antes que o lume se apague
Na cinza fica o calor
Antes que o amor ausente
No coração fica a dor.
124.
Se eu soubera ler no mar
Como sei escrever na areia
Não me escapava no mundo
Mulher bonita nem feia.
125.
Minha avó morreu ontem
E o diabo foi com ela
Deixou-me a chave d’ adega
Mas o vinho bebeu-o ela.
143.
Os rapazes de agora
Matam os pais com trabalho
Nunca se levantam da cama
Sem ouvir um grande ralho.
Quadras (1
a 148) recolhidas junto de Maria do Carmo (Ribeiro),
de Montes
da Senhora (PN), nos anos de 1984 a 1989.
156.
Minha sogra morreu ontem
Enterrei-a no palheiro
Deixei-lhe os braços de fora
Para tocar o pandeiro.
159.
Amanhã por esta hora
Onde estarás tu meu corpo
Ou aqui ou noutro lado
Ou na sepultura morto.
168.
Se pensas que eu penso em ti
Penso que pensas mal
Nunca em ti pensei nem penso
Nem penso pensar em tal.
178.
Nas ondas do teu cabelo
Aprendi a navegar
É para que saibas amor
Que há ondas sem ser no mar.
Quadras
(167 a 185) recolhidas junto de Maria José Tomás
(Vila
Velha de Ródão) em Janeiro de 1984.
189.
Três coisas fazem o mundo
E eu tenho bem a certeza
É a gente e a terra
Com a ajuda da natureza.
190.
Os padres quando dizem missa
Ao inferno são chamados
Levam os filhos ao colo
E dizem que são afilhados.
Quadras
(187 a 190) recolhidas junto de Eusébio Henriques
(Gavião de
Ródão, VVR) em Fevereiro de 1984.
191.
Esta Vila não tem igreja
O povo pouco se importa
A tropa não tem espingarda
E o castelo não tem porta.
Quadra
(191) recolhida junto de António S. Pedro Tropa
(Vila
Ruivas, VVR) em Fevereiro de 1984.
240.
Já chove já quer chover
Já correm os barroquinhos
Estão os campos alegres
Já cantam os passarinhos.
249.
Chamaste aos meus cabelos
Poleiro dos passarinhos
Eu chamo à tua boca
Gaiola dos meus beijinhos.
257.
Semeei no meu quintal
A semente do repolho
Nasceu um velho careca
Com uma batata no olho.
Quadras
(198 a 259) recolhidas junto de Maria Helena Ribeiro
Henriques
(Gavião de Ródão, VVR) em 1984 e 1985.
277.
Vivo como posso
Ao sol e ao frio
A roer num osso
Como um cão vadio.
Quadras
(260 a 277) recolhidas junto de Maria da Conceição Ribeiro
(Montes da
Senhora, PN) em 1984.
291.
Mal me quer, bem me quer
Tenho eu no meu jardim
O bem me quer acabou
O mal me quer não tem fim.
295.
Casada não sou casada
Não sei se me casarei
Minha palavra está dada
Não sei se a cumprirei.
296.
Quando eu era pequenina
Usava fitas e laços
Agora que estou casada
Uso os meus filhos nos braços.
Quadras
(288 a 301) recolhidas junto de Adelina Pires Cunha
(Gavião de
Ródão, VVR) em Março 1984.
311.
Minha mãe pra me casar
Prometeu-me três ovelhas
Uma é coxa, outra é cega
Outra é musga das orelhas.
320.
Ó minha mãe dos trabalhos
Para quem trabalho eu
Trabalho mato o meu corpo
Não tenho nada de meu.
Quadras
(304 a 320) recolhidas junto de Maria da Piedade Bispa
(Gavião de
Ródão, VVR) em Março de 1984.
355.
Felicidade encontrada
Vela de noite na mão
Basta um ventinho de nada
E estamos na escuridão.
359.
Quando eu nasci chorava
Com pena de ter nascido
Eu parece que adivinhava
Que estava o mundo perdido.
363.
Algum tempo era eu
No teu prato a melhor sopa
Agora sou o veneno
Que caio na tua boca.
365.
A tinta com que escrevo
Tenho-a na palma da mão
O papel tiro-o do peito
A tinta do coração.
379.
Não sei ler nem escrever
Nem aprendi com ninguém
Trago escrito no sentido
O que à memória me vem.
381.
Quando abalei de casa
Aos meus pais pedi a bênção
Agora para cantar
Aos senhores peço licença.
383.
Algum dia era eu
Raminho na tua mão
Agora sou vassoura
Com que varres o chão.
403.
Não te ponhas em alturas
Olha que podes cair
Eu já vi um homem rico
Pelas portas a pedir.
411.
As vozes da minha harmônica
São de pau de laranjeira
Quanto mais toca mais retine
Quanto mais retine mais cheira.
426.
Rapazes quando eu morrer
Fazei-me um enterro à rica
Deixai-me o cu de fora
Pra cagar pra quem cá fica.
430.
Está o céu enevoado
Azado pra chover
As nuvens pra deitar
E o chão pra receber.
441.
Menina não se admire
Do meu gato fazer renda
Eu já vi uma galinha
De caixeira numa venda.
444.
Esta noite chove chove
Água notada aos pinguinhos
Vem o noivo leva a noiva
Aos abraços e beijinhos.
Quadras
(342 a 448) recolhidas junto de Maria Júlia Matos,
Joaquim
Martins e Maria Albertina Matos M. Tavares (Palhota, PN) em 1986.
467.
Os calos das tuas mãos
São mesmo as tuas medalhas
Se tens uma vida linda
É porque muito trabalhas.
470.
Ó Portugal, Portugal
Ainda num ficas assim
Quem pudesse ser eterno
Para ver teu triste fim.
476.
Rapazes quando eu morrer
Levai-me devagarinho
À porta do cemitério
Descansai um bocadinho.
477.
Tua boca é uma rosa
Teus dentes as folhinhas
As tuas faces mimosas
São duas lembranças minhas.
490.
Anda o mundo às avessas
Na maior galantaria
Quem há de valer num vale
Quem num vale tem valia.
491.
Maria tu és lima
O teu pai é o limão
Tua mãe é a laranja
Que bonita geração.
Quadras
(464 a 504) recolhidas junto de Maria Rosa Mota
(Gavião de
Ródão, VVR) em Março de 1986.
505.
Quando eu era galo novo
Pelas frangas era gabado
Agora que estou velho
Cai-me as penas do rabo.
506.
Nas ondas do teu cabelo
Aprendi a nadar
Agora que estás careca
Aprendo a patinar.
Quadras
(505 e 506) recolhidas junto de Maria dos Santos Belo
(Vila
Velha de Ródão) em Julho de 1988.
511.
Casa com um coxo
Com um coxo que te ama
Só a gracinha que tem
Ir aos pulinhos pra cama.
517.
Pus-me a cagar de joelhos
Pra não borrar o capote
Levantei-me dei três peidos
Vi-me nas ânsias da morte.
522.
Se canto chamam-me doida
Se sou séria tenho brio
Não sei como hei de andar
Neste mundo tão vadio.
524.
Quero cantar e bailar
A tristeza nada tem
Eu nunca vi a tristeza
Dar de comer a ninguém.
Quadras
(507 a 534) recolhidos junto de Maria Alice Gonçalves Duque
(Sarnadas de Ródão, VVR) em Março de 1990.