sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Poesia Popular dos Cortelhões e dos Plingacheiros


POESIA POPULAR

DOS CORTELHÕES E DOS PLINGACHEIROS

links: textos em vinho

 

Para quem sabe o quê quer e onde procurar, a internet é uma grande mina cultural. Você pode encontrar publicações raras e ou até aquelas que nem se estava procurando, como esta antologia da Poesia Popular dos Cortelhões e dos Plingacheiros, presente na edição nº 4 da ALCAFA on-line (2011)..., mas publicada originalmente em 1991, no nº 12 de Preservação, boletim informativo da Associação de Estudos do Alto Tejo, numa tiragem de 50 exemplares. Foi também mergulhando aleatoriamente nas nuvens, que me deparei, anos antes, com a não menos interessante antologia Contos Populares e Lendas dos Cortelhões e dos Plingacheiros (2013), na edição nº 6 da ALCAFA on-line (2013).  

Ensaiei várias vezes publicar alguns contos aqui no Falas ao Acaso, mas acabei me ocupando com outras postagens. Agora, finalmente selecionei alguns poemas extraídos da antologia Poesia Popular dos Cortelhões e dos Plingacheiros e trechos importantes da apresentação e da introdução.

 

“Este documento é um simples reportório de poesia popular, alguma da qual cantarolada, totalizando 642 peças. O registo desta poesia foi efectuado na década de 80, do século XX, numa área correspondente a Vila Velha de Ródão e a Proença-a-Nova, dois municípios vizinhos, situados no interior-centro de Portugal Continental. A recolha foi demorada e beneficiou dos testemunhos de inúmeros informantes, geralmente idosos, e hoje (ano de 2011) já desaparecidos do convívio dos vivos. A primeira divulgação deste património cultural imaterial foi efectuada há cerca de 20 anos.” 

 

Prefácio ou Nota Liminar

Maria de Lurdes Gouveia da Costa Barata

“Estar atento para preservar algo que integra um passado (ou o que se vai tornar passado) que guarda uma parte da substância identitária do homem é uma acção meritória, digna de elogio e reconhecimento presente e vindouro. É o que se passa com a recolha de Poesia Popular dos Cortelhões e Plingacheiros, trabalho de Francisco Henriques e João Caninas, louvável pela ideia, pela acção, pela coordenação e organização, com o apreço devido também aos seus colaboradores. (...) As palavras da poesia popular, que se tornam vivas na voz do povo, da voz do povo foram colhidas, e aqui estão, guardiãs de um testemunho, que funciona como pequena riqueza sociológica, histórica, linguística, agasalhando ainda o sentir e o pensar ao longo de um tempo. (...) O que é colectivo, dito ou cantado por toda a gente quase desde bruma do tempo, teve um autor individual que foi perdendo autoria, sendo esquecido esse autor, todavia anonimamente avivado na boca de todos. (...) O criador inicial pode ser mais ou menos letrado, mas prova-se que o povo se apropria daquilo de que gosta, do que lhe dá prazer em encontros de amigos e conhecidos, em encontros de festa ou até no simples trauteio que, por vezes, acompanha o trabalho diário. (...) A popularidade destas produções alimenta-se de referências a bens materiais e espirituais, ligando-se ao ambiente em que se vive, nomeando locais, falando de crenças e invocando Deus, a Virgem e santos de devoção, apreendendo o quotidiano do trabalho e das relações humanas, a riqueza e a pobreza, as estações do ano, o Natal e o Entrudo, a flora que explode em flores (rosas, cravos, alecrim, rosmaninho, manjericos, violetas e mais), em árvores e em frutos (dos mais notados está a azeitona, o limão, a laranja), não esquecendo animais domésticos que partilham quotidianos do homem.” 

 

Introdução

Francisco Henriques e João Caninas

(...) É sobremaneira rica a alusão às relações humanas, emergindo simultaneamente preconceitos, regras de convivência, valores, carreando também sentimentos e emoções. Destaco apenas, para exemplificar, o posicionamento da mulher, a moça bem falada ou mal falada, o jogo de sedução. (...) A crítica, com escárnio e maldizer, está muito presente e vai definindo relações e contextos. (...) Apresenta-se a voz do povo como uma voz de Deus, pela sabedoria, pela experiência, pela distinção do Bem e do Mal, com função pedagógica, com marca sociológica, participando numa história historicamente, com a força da língua num estilo característico que plasma sentimentos, emoções, graças, numa semântica de dureza ou doçura. (...) As primeiras recolhas de poesia popular iniciaram-se nos finais de 1983, não possuindo ainda, nessa altura, o carácter metódico que ganharam cerca de dois anos mais tarde. A partir daí, a pouco e pouco, e sempre que as nossas actividades profissionais, arqueológicas e outras o permitiam, íamos engrossando esta colectânea. (...) Parte significativa deste material foi recolhido junto de pessoas que ultrapassaram já as seis, sete e mesmo oito décadas de vida. Outra parte, pequena por sinal, junto de informantes mais novos, mas depois de terem “vivido duas vidas” – a vivência quase medieval da sua aldeia de criança e adulto jovem e a vida dos nossos dias com muito do que pode oferecer. (...) Nos trabalhos de campo, colaboraram directamente com os subscritores os seguintes elementos: Maria dos Anjos M. Tavares Henriques, Maria Albertina M. Tavares, Ricardo Jorge R. Henriques e João Paulo Duarte. Vem ainda a propósito registar a informação de que há algumas dezenas de anos o Sr. Padre Geada, responsável do Orfeão da Covilhã e conhecedor da riqueza do cancioneiro da região de Perais, fez recolhas de cantares junto de um grupo de mulheres desta aldeia, utilizando-os posteriormente no reportório do Orfeão de que era responsável.”

 

POESIA POPULAR

DOS CORTELHÕES E DOS PLINGACHEIROS

 


22.

Aqui te batizo meu menino

À beira deste ribeiro

Deus te faça um ladrãozinho

Com os pezinhos bem ligeiros

 

Esta quadra é referida como a que o povo cigano utiliza

quando do baptismo dos seus filhos.

Há outras versões.

 

28.

Já fui cravo já fui rosa

Já fui raminho inteiro

Já te namorei de graça

Agora nem por dinheiro.

 

30.

Já comi e já bebi

Já molhei a minha garganta

Eu sou como o rouxinol

Quando bebe sempre canta.

 

33.

Toda a vida fui pastor

Toda a vida guardei gado

Tenho uma cova no peito

De me encostar ao cajado.

 

48.

Mandaste-me aqui vir

Meu amigo à tua festa

Quem tem fome não se ri

Corpo sem alma não presta.

 

Quadra que se diz ter sido cantada por um tocador,

a quem pediram para animar uma festa,

sem que previamente lhe tenham dado de comer.

 

53.

Relógio que dás as onze

Te peço por caridade

Que dês as onze mais cedo

E a meia-noite mais tarde.

 

56.

Já vi um gato a ler

Uma galinha a passar escola

Nas costas de uma formiga

Jogando jogo de bola.

 

68.

Linda é a mocidade

Pena é vê-la fugir

Não é como a Primavera

Que se vai e torna a vir.

 

71.

Antes que o lume se apague

Na cinza fica o calor

Antes que o amor ausente

No coração fica a dor.

 

124.

Se eu soubera ler no mar

Como sei escrever na areia

Não me escapava no mundo

Mulher bonita nem feia.

 

125.

Minha avó morreu ontem

E o diabo foi com ela

Deixou-me a chave d’ adega

Mas o vinho bebeu-o ela.

 

143.

Os rapazes de agora

Matam os pais com trabalho

Nunca se levantam da cama

Sem ouvir um grande ralho.

 

Quadras (1 a 148) recolhidas junto de Maria do Carmo (Ribeiro),

de Montes da Senhora (PN), nos anos de 1984 a 1989.

 

156.

Minha sogra morreu ontem

Enterrei-a no palheiro

Deixei-lhe os braços de fora

Para tocar o pandeiro.

 

159.

Amanhã por esta hora

Onde estarás tu meu corpo

Ou aqui ou noutro lado

Ou na sepultura morto.

 

168.

Se pensas que eu penso em ti

Penso que pensas mal

Nunca em ti pensei nem penso

Nem penso pensar em tal.

 

178.

Nas ondas do teu cabelo

Aprendi a navegar

É para que saibas amor

Que há ondas sem ser no mar.

 

Quadras (167 a 185) recolhidas junto de Maria José Tomás

(Vila Velha de Ródão) em Janeiro de 1984.

 

189.

Três coisas fazem o mundo

E eu tenho bem a certeza

É a gente e a terra

Com a ajuda da natureza.

 

190.

Os padres quando dizem missa

Ao inferno são chamados

Levam os filhos ao colo

E dizem que são afilhados.

 

Quadras (187 a 190) recolhidas junto de Eusébio Henriques

(Gavião de Ródão, VVR) em Fevereiro de 1984.

 

191.

Esta Vila não tem igreja

O povo pouco se importa

A tropa não tem espingarda

E o castelo não tem porta.

 

Quadra (191) recolhida junto de António S. Pedro Tropa

(Vila Ruivas, VVR) em Fevereiro de 1984.

 

240.

Já chove já quer chover

Já correm os barroquinhos

Estão os campos alegres

Já cantam os passarinhos.

 

249.

Chamaste aos meus cabelos

Poleiro dos passarinhos

Eu chamo à tua boca

Gaiola dos meus beijinhos.

 

257.

Semeei no meu quintal

A semente do repolho

Nasceu um velho careca

Com uma batata no olho.

 

Quadras (198 a 259) recolhidas junto de Maria Helena Ribeiro

Henriques (Gavião de Ródão, VVR) em 1984 e 1985.

 

277.

Vivo como posso

Ao sol e ao frio

A roer num osso

Como um cão vadio.

 

Quadras (260 a 277) recolhidas junto de Maria da Conceição Ribeiro

(Montes da Senhora, PN) em 1984.

 

291.

Mal me quer, bem me quer

Tenho eu no meu jardim

O bem me quer acabou

O mal me quer não tem fim.

 

295.

Casada não sou casada

Não sei se me casarei

Minha palavra está dada

Não sei se a cumprirei.

 

296.

Quando eu era pequenina

Usava fitas e laços

Agora que estou casada

Uso os meus filhos nos braços.

 

Quadras (288 a 301) recolhidas junto de Adelina Pires Cunha

(Gavião de Ródão, VVR) em Março 1984.

 

311.

Minha mãe pra me casar

Prometeu-me três ovelhas

Uma é coxa, outra é cega

Outra é musga das orelhas.

 

320.

Ó minha mãe dos trabalhos

Para quem trabalho eu

Trabalho mato o meu corpo

Não tenho nada de meu.

 

Quadras (304 a 320) recolhidas junto de Maria da Piedade Bispa

(Gavião de Ródão, VVR) em Março de 1984.

 

355.

Felicidade encontrada

Vela de noite na mão

Basta um ventinho de nada

E estamos na escuridão.

 

359.

Quando eu nasci chorava

Com pena de ter nascido

Eu parece que adivinhava

Que estava o mundo perdido.

 

363.

Algum tempo era eu

No teu prato a melhor sopa

Agora sou o veneno

Que caio na tua boca.

 

365.

A tinta com que escrevo

Tenho-a na palma da mão

O papel tiro-o do peito

A tinta do coração.

 

379.

Não sei ler nem escrever

Nem aprendi com ninguém

Trago escrito no sentido

O que à memória me vem.

 

381.

Quando abalei de casa

Aos meus pais pedi a bênção

Agora para cantar

Aos senhores peço licença.

 

383.

Algum dia era eu

Raminho na tua mão

Agora sou vassoura

Com que varres o chão.

 

403.

Não te ponhas em alturas

Olha que podes cair

Eu já vi um homem rico

Pelas portas a pedir.

 

411.

As vozes da minha harmônica

São de pau de laranjeira

Quanto mais toca mais retine

Quanto mais retine mais cheira.

 

426.

Rapazes quando eu morrer

Fazei-me um enterro à rica

Deixai-me o cu de fora

Pra cagar pra quem cá fica.

 

430.

Está o céu enevoado

Azado pra chover

As nuvens pra deitar

E o chão pra receber.

 

441.

Menina não se admire

Do meu gato fazer renda

Eu já vi uma galinha

De caixeira numa venda.

 

444.

Esta noite chove chove

Água notada aos pinguinhos

Vem o noivo leva a noiva

Aos abraços e beijinhos.

 

Quadras (342 a 448) recolhidas junto de Maria Júlia Matos,

Joaquim Martins e Maria Albertina Matos M. Tavares (Palhota, PN) em 1986.

 

467.

Os calos das tuas mãos

São mesmo as tuas medalhas

Se tens uma vida linda

É porque muito trabalhas.

 

470.

Ó Portugal, Portugal

Ainda num ficas assim

Quem pudesse ser eterno

Para ver teu triste fim.

 

476.

Rapazes quando eu morrer

Levai-me devagarinho

À porta do cemitério

Descansai um bocadinho.

 

477.

Tua boca é uma rosa

Teus dentes as folhinhas

As tuas faces mimosas

São duas lembranças minhas.

 

490.

Anda o mundo às avessas

Na maior galantaria

Quem há de valer num vale

Quem num vale tem valia.

 

491.

Maria tu és lima

O teu pai é o limão

Tua mãe é a laranja

Que bonita geração.

 

Quadras (464 a 504) recolhidas junto de Maria Rosa Mota

(Gavião de Ródão, VVR) em Março de 1986.

 

505.

Quando eu era galo novo

Pelas frangas era gabado

Agora que estou velho

Cai-me as penas do rabo.

 

506.

Nas ondas do teu cabelo

Aprendi a nadar

Agora que estás careca

Aprendo a patinar.

 

Quadras (505 e 506) recolhidas junto de Maria dos Santos Belo

(Vila Velha de Ródão) em Julho de 1988.

 

511.

Casa com um coxo

Com um coxo que te ama

Só a gracinha que tem

Ir aos pulinhos pra cama.

 

517.

Pus-me a cagar de joelhos

Pra não borrar o capote

Levantei-me dei três peidos

Vi-me nas ânsias da morte.

 

522.

Se canto chamam-me doida

Se sou séria tenho brio

Não sei como hei de andar

Neste mundo tão vadio.

 

524.

Quero cantar e bailar

A tristeza nada tem

Eu nunca vi a tristeza

Dar de comer a ninguém.

 

Quadras (507 a 534) recolhidos junto de Maria Alice Gonçalves Duque

(Sarnadas de Ródão, VVR) em Março de 1990.

 

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