quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Joba Tridente: Balas



Balas

balas perdidas
(é) sal no açúcar
doidas feridas

balas encontradas
(é) pimenta nos olhos
imagens caladas

balas procuradas
(é) vontade proibida
vidas ceifadas

*
Ilustração de Joba Tridente – 2013



terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Joba Tridente: Se...




S E . . .
joba.tridente

Se o pior cego é aquele que não quer ver
Se o pior surdo é aquele que não quer ouvir
Se o pior mudo é aquele que não quer falar
...,
O pior informado é aquele que em tudo crê


Arte de Joba Tridente 
sobre webding - 2013/2021

Joba Tridente, um livre pensador livre. artesão de imagens e de palavras em Verso: 25 Poemas Experimentais (1999); Quase Hai-Kai (1997, 1998 e 2004); em Antologias: Hiperconexões: Realidade Expandida – Sangue e Titânio (2017); Hiperconexões: Realidade Expandida (2015); 101 Poetas Paranaenses (2014); Ipê Amarelo, 26 Haicais; Ce que je vois de ma fenêtre – O que eu vejo da minha janela (2014); Ebulição da Escrivatura – 13 Poetas Impossíveis (1978); em Prosa: Fragmentos da História Antropofágica e Estapafúrdia de Um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás (2000); Cidades Minguantes (2001); O Vazio no Olho do Dragão (2001). Contos, poemas e artigos culturais publicados em diversos veículos de comunicação: Correio Braziliense, Jornal Nicolau, Gazeta do Povo, Revista Planeta, Humanidades, entre outros.




domingo, 24 de fevereiro de 2013

Joba Tridente: Histórias de Sabiás - 3



Sabialar

não sabia
que sabia
sabialar
descobri por acaso
sabialando com sabiás

não sei o que sabialam
mas sabem o que penso sabialar
devem ser mais inteligentes
do que eu

*
Ilustração de Joba Tridente - 2013


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Murillo Araújo: Infância


Não conhecia Murillo Araujo (1894 - 1980). Descobri por acaso a sua obra poética. Infância não é necessariamente um poema infantil, mas é lúdico. Publicado em 1917, no livro Carrilhões (*), é um poema nostálgico para quem já foi criança e para quem um dia sentirá, também, saudade.

Infância

À noite (e lá por fora ia a tormenta...)
eu pedia à Mamãe: Conta uma história!
E ouvia... Cabecinha sonolenta,
via os reinos de fadas - via a Glória.

(Havia a ventania e a merencória
chuvarada, nas telhas, barulhenta.)
-"Era uma vez..." É incenso na memória
aquela voz embaladora e lenta!

Hoje (que diferente é cada idade!)
Mamãe foi ver as fadas... foi talvez
morar no Reino da Felicidade!

Hoje sou homem, sou, vejam vocês.
Ai! vindo a noite e vindo a tempestade
só da Saudade escuto ERA UMA VEZ!

*
Ilustração de Joba Tridente - 2013


Murillo Araujo (1894 -1980), advogado, jornalista, escritor e crítico literário. Um dos expoentes do modernismo, lançou o seu primeiro livro, Carrilhões, em 1917, cinco anos antes da Semana de Arte Moderna. Em poesia publicou: A galera (1920), Árias de muito longe (1921), A cidade de ouro (1927), A iluminação da vida (1927), A estrela azul (1940), As sete cores do céu (1941), A escadaria acesa (1941), O palhacinho quebrado, A luz perdida (1952), O candelabro eterno (1955) e, em prosa: A arte do poeta (1944), Ontem, ao luar (1951), Catulo da Paixão Cearense, Aconteceu em nossa terra (pequenos casos de grandes homens), Quadrantes do Modernismo Brasileiro (1958). Murillo traduziu o livro O inspetor geral, do escritor russo Nikolai Gogol (1809 - 1852). Fonte: Antonio Miranda e Murillo Araujo Vida e Obra.

(*) A versão digital de Carrilhões (link), de Murillo Araújo, está disponibilizada, gratuitamente, no Portal Domínio Público.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Solano Trindade: Tem Gente Com Fome


As lembranças das viagens de trem, na minha infância, são as melhores, delícia das delícias. Não estou falando de (trem) metrô ou de (trem) subúrbio..., falo de Trem de Ferro que me trazia de Oswaldo Cruz para Tupã, Marília, São Paulo. Em outubro de 2012, quando preparava material para uma Oficina de Poesia Aleatória, reencontrei o Trem viajando na diversidade poética de Manuel Bandeira: Trem de Ferro; de Ascenso Carneiro: Trem de Alagoas; de Solano Trindade: Tem Gente Com Fome (Trem da Leopoldina); e de António Jacinto: Castigo P’ro Comboio Malandro (Trem Angolano). As minhas viagens juvenis tinham a felicidade de Bandeira e de Carneiro..., não a angústia de Jacinto e Trindade.

Nesta 4ª. Estação, a parada é (ainda) do mais contundente dos trens brasileiros, no verbo ferino (porém terno e solidário) de Solano Trindade: Tem Gente Com Fome, publicado em Poemas de uma Vida Simples, livro que foi apreendido, em 1944, e levou o poeta para a prisão.


Tem Gente Com Fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu


Ilustração de Joba Tridente - 2013


Para Bruno Fernandes: “...o poema “Tem gente com Fome” é uma sátira ao célebre poema “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira. (...) O poema de Solano Trindade não apenas ironiza o de Bandeira, como por exemplo, faz o poeta angolano António Jacinto, com  “Castigo pro comboio Malandro”. Solano vai além dessa identificação, e realiza a própria antítese ao trabalho do autor de “Trem de Ferro”. Assim, enquanto Manuel Bandeira percorre as ruas da cidade mostrando a paisagem do interior, numa viagem de aventuras, Solano Trindade carrega em seu “trem sujo da Leopoldina” toda a angústia, pobreza, falta de afeto e injustiça a qual estão submetidos os infelizes passageiros do cotidiano, abafados pelo “autoritário apito do trem”.” - em Literatura e Identidade: poesia de representação em busca de uma cidadania negada - tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global - Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2011.

Solano Trindade (Recife, 1908 - Rio de Janeiro, 1974) foi um multiartista: folclorista, pintor, escritor, ator, teatrólogo, cineasta. Nos anos 1930 idealizou o I Congresso Afro-Brasileiro, no Recife, e fundou o Centro Cultural Afro-Brasileiro e a Frente Negra Pernambucana. Em 1945, com Abdias Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e o Teatro Experimental do Negro. Com Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico. Na década de 1950 criou o Teatro Popular Brasileiro e o grupo de dança brasileira Brasiliana. Trindade atuou em filmes como A Hora e a Vez de Augusto Matraga (de Roberto Santos, 1965) e O Santo Milagroso (de Carlos Coimbra, 1966) e foi o responsável pela formatação da Feira das Artes do Embu, em São Paulo. Admirado por Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Afonso Schmidt, Roger Bastides,  Darcy Ribeiro, Sérgio Milliet, o poeta Solano Trindade publicou Poemas Negros (1936); Poemas de uma Vida Simples (1944); Seis Tempos de Poesia (1958); Cantares ao Meu Povo (1961). Em 1975 o poema Tem Gente Com Fome, musicado por João Ricardo, não foi liberado pela censura para o disco do Secos & Molhados, mas foi gravado por Ney Matogrosso em 1979, no LP Seu Tipo. Solano foi tema da Escola de Samba Vai-Vai, em 1976.

Vídeos com interpretações de Tem Gente Com Fome: Raquel Trindade 1 e Raquel Trindade 2 ; Ney Matogrosso (incompleto); Juan Angel Italiano.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

António Jacinto: Castigo P’ro Comboio Malandro



Estou aproveitando a postagem anterior, Trem de Alagoas, para apresentar esta maravilha de Castigo Pró Comboio Malandro, do grande escritor e ativista angolano António Jacinto (1924-1991), que fala de um Trem de Angola que (também) transporta alegrias e tristezas, e foi publicada em Poemas (1961). A versão (gráfica) que estou postando é a do Boletim Mensagem, ano III, nº 3/4, da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa - Portugal, 1960. O genial compositor e cantor português Fausto Bordalo Dias musicou e gravou Castigo P’ro Comboio Malandro, com o título Comboio Malandro (link de vídeos abaixo), em seu álbum P’ró Que Der e Vier (1974).


Castigo P’ro Comboio Malandro

Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
                    ué ué ué
                    hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

                                o comboio malandro
                                passa

Nas janelas muita gente:
                    ai bô viaje
                    adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender

hii hii hii

aquele vagon de grades tem bois
                              múu múu múu

tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato.

Tem bois
que morre no viaje
mas preto não morre
canta como é criança,
           Mulonde iá Késsua uádibalé
            uádibalé uádibalé...
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
           passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo no trás
hii hii hii
      te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
o fogo que sai do corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
        Esse comboio malandro
        já queimou o meu milho,

Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
      - deixa! -
                     ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
muito fumo mesmo.
                Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos p'ra empurrar
eu vou
mas não empurro
                               - nem com chicote -
finjo só que faço força
               Comboio malandro
               você vai ver só o castigo
               vai dormir mesmo no meio do caminho.


Ilustração de Joba Tridente - 2013

  

António Jacinto do Amaral Martins (Luanda, 1924 – Lisboa, 1991) é um dos maiores nomes da literatura angolana e da Geração Mensagem (*). Publicou em Notícias do Bloqueio, Itinerário, O Brado Africano. Ativista político, foi preso em 1960 e, desterrado para Campo de Tarrafal, em Cabo Verde, cumpriu pena até 1972. Em 1973 se uniu à guerrilha MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola). Com a independência de Angola, foi co-fundador da notória União de Escritores Angolanos e Ministro da Cultura (1975 - 1978). Entre os prêmios mais importantes que recebeu, destacam-se: Prémio Noma, Prémio Lotus da Associação dos Escritores Afro-Asiáticos e Prémio Nacional de Literatura. António Jacinto é autor de: Poemas (1961 e 1982); Vovô Bartolomeu (1979); Em Kilunje do Golungo (1984); Sobreviver em Trrafal de Santiago (1985 e 1999); Prometeu (1987); Fábulas de Sanji (1988).

(*) “A Geração Mensagem (1950-53) da literatura angolana de expressão portuguesa formou-se na continuidade do movimento dos “Novos Intelectuais de Angola”, cujo lema - “Vamos Descobrir Angola” - operaria uma revolução decisiva na sociedade colonial dos fins da década de 40. Mensagem apresenta-se, assim, como órgão catalisador de um punhado de jovens angolanos dispostos assumirem uma atitude de combate frontal ao sistema sociocultural vigente na época. Foi sem dúvida, o mais forte contributo para a verdadeira busca de uma cultura, de uma literatura autêntica, social e, sobretudo, participada. Segundo os próprios mentores desta Geração, Mensagem pretendia ser o marco iniciador de uma cultura nova, de Angola e por Angola; fundamentalmente angolana. Cultura essa que se desejava que fosse forte, verdadeira, pujante e humana. Por estes motivos, Mensagem proclamava, bem alto, o slogan cultural e político de “redescobrir” Angola.” Texto (fragmento) extraído de Infopédia.

 

Descobri estes dois vídeos de Fausto Bordalo (o Cantor Maldito) ao pesquisar sobre António Jacinto. Veja e ouça Comboio Malandro 1 e 2..., e fique parado se for capaz. Ah, se quiser saber um pouco sobre o artista português, este é o do site Fausto - Cantor Maldito (link).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Ascenso Carneiro: Trem de Alagoas


Ascenso Carneiro pode não ser aquele autor de “ponta da língua” para muitos amantes da poesia, mas nos legou uma excelente obra. Em 1975, eu e milhares de outros telespectadores, que não tiveram acesso ao Festival Abertura, viram e ouviram pela TV, um desconhecido e enlouquecido Alceu Valença cantar Vou Danado pra Catende. Em 2013 soube que Alceu adaptou um trecho de Trem de Alagoas em sua famosa e arrebatadora Vou Danado pra Catende. Parceria perfeita! Inezita Barroso também musicou o poema de Ascenso.


Trem de Alagoas

O sino bate,
o condutor apita o apito,
Solta o trem de ferro um grito,
põe-se logo a caminhar…

          - Vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende
          com vontade de chegar...

Mergulham mocambos,
nos mangues molhados,
moleques, mulatos,
vêm vê-lo passar.

          - Adeus!
          - Adeus!

Mangueiras, coqueiros,
cajueiros em flor,
cajueiros com frutos
já bons de chupar...

          - Adeus morena do cabelo cacheado!

Mangabas maduras,
mamões amarelos,
mamões amarelos,
que amostram molengos
as mamas macias
pra a gente mamar

          - Vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende
          com vontade de chegar...

Na boca da mata
há furnas incríveis
que em coisas terríveis
nos fazem pensar:

          - Ali dorme o Pai-da-Mata!
          - Ali é a casa das caiporas!

          - Vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende
          vou danado pra Catende
          com vontade de chegar...

Meu Deus! Já deixamos
a praia tão longe…
No entanto avistamos
bem perto outro mar...

Danou-se! Se move,
se arqueia, faz onda...
Que nada! É um partido
já bom de cortar...

          - Vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende
          vou danado pra Catende
          com vontade de chegar...

Cana caiana,
cana roxa,
cana fita,
cada qual a mais bonita,
todas boas de chupar...

          - Adeus morena do cabelo cacheado!

          - Ali dorme o Pai-da-Mata!
          - Ali é a casa das caiporas!

          - Vou danado pra Catende,
          vou danado pra Catende
          vou danado pra Catende
          com vontade de chegar... 


Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira (1895 - 1965), escritor regionalista pernambucano, abolicionista, modernista, já em 1912 publicava seus versos em jornais. A sua poesia, além de ricamente visual, têm um ritmo contagiante. É autor de: Catimbó (1927); Cana Caiana (1939); Poemas (1951); Catimbó e Outros Poemas (1963); Poemas: Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém (1981); Eu Voltarei ao Sol da Primavera (1985). Há um bom material sobre Ascenso Carneiro no Portal Fundação Joaquim Nabuco em Pesquisa Escolar.

Ilustração de Joba Tridente - 2013

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Conto Indiano: A História do Primeiro Príncipe



Entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013 li O Mahabharata, de Vyasa, em uma ótima adaptação de Jean-Claude Carrière, (em tradução de Noêmia Arantes para a Brasiliense), O Ramayana, de Walkimi, numa razoável e velha edição (não lembro o tradutor e editora), e Maravilhas do Conto Indiano, organizado por Fernando Correia da Silva, para a Cultrix (2ª. Edição - 1964?), que traz entre os seus tradutores: o mestre José Paulo Paes (1926 - 1998). Em sua tradução para o capítulo: Dos Jatacas Budistas, destaco, em A História do Primeiro Príncipe, uma passagem do mais puro deslumbramento descritivo da figura feminina (p. 133) e que me deixou em estado de graça. Como não gostar de ler depois de tamanha belezura?


A História do Primeiro Príncipe (fragmento)

(...)
Ela me explicou a planta do palácio, e eu penetrei sorrateiramente nos aposentos da princesa. E lá, à luz de lâmpadas incrustadas de gemas, circundada pelas companheiras que dormiam a sono solto após a fadiga dos seus muitos jogos, vi a princesa. Dormia num divã de pernas de marfim, esculpidas com a forma de leões deitados e incrustadas de pedras preciosas; as almofadas e o divã eram estofados com penugem de cisnes, e pétalas de flores haviam sido espalhadas por sobre ele. O pé esquerdo da princesa estava curvado sob o calcanhar do pé direito. Flexionara os graciosos tornozelos. Os calcanhares estavam unidos e os delicados joelhos ligeiramente curvos. As coxas também. Um dos braços estava encantadoramente atravessado por sobre o quadril, enquanto o outro se encolhera para que a mão pudesse pousar, como flor, na sua face. A túnica de seda chinesa ajustava-se, com perfeição, à terna curva das suas ancas. O delgado abdômen estava ligeiramente arqueado, e os firmes seios adolescentes tremiam ao arfar da respiração profunda. O pescoço bem modelado, algo inclinado para o lado, deixava ver um colar de rubis presos entre si por elos de ouro. Um dos brincos estava oculto à vista, mas o outro deixava ver seu engaste de pedrarias, cujo brilho melhor destacava-lhe a beleza da cabeleira descuidosamente atada. Era tão alva a sua tez, que mal se notava o branco resplendor dos dentes por entre os róseos lábios entreabertos. A mão veludosa apoiada à face ocultava-lhe um dos brincos, e os reflexos da magnífica canópia floral que encimava o leito, focalizando o seu queixo semivoltado para cima, punham-lhe em relevo a formosura. Os olhos haviam-se cerrado como lótus noturnos, e os longos cílios sedosos estavam imóveis. Diminutas gotículas de transpiração, que a fadiga fizera assomar-lhe à fronte, perolavam a pinta de macia pasta de sândalo colocada entre os seus olhos. A hera dos seus cabelos como que forcejava por alcançar-lhe a face enluarada. Ela dormia confiadamente e, com o corpo coberto a meio pela colcha imaculadamente branca, repousando depois de longas e despreocupadas brincadeiras, semelhava o relâmpago dormitando no seio da derradeira nuvem de outono.

Vi, pela internet, que o livro Maravilhas do Conto Indiano pode ser encontrado baratinho nos sebos. Vale cada centavo porque, além da excelência dos míticos contos que remontam aos Vedas, Mahabharata, Ramayana, tem também alguns antológicos contos de autores modernos: Rabindranath Tagore tragicômico com O Abandonado; Babani Batacharia emocionante com o dramático Um Momento de Eternidade; Mulk Rajanand divertido com O Marajá e a Tartaruga; Yashpal falando da intolerância em Meu Deus, que Crianças Estas!; Ram Cumar cinematográfico em Tempestade de Poeira; Balwant Gargi tocante em Um Aperto de Mãos.

Ilustração de Joba Tridente – 2013

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Tradição Oral Africana: Coração-Sozinho



CORAÇÃO-SOZINHO

O Leão e a Leoa tiveram três filhos; um deu a si próprio o nome de Coração-Sozinho, o outro escolheu o de Coração-com-a-Mãe e o terceiro o de Coração-com-o-Pai.

Coração-Sozinho encontrou um porco e apanhou-o, mas não havia quem o ajudasse porque o seu nome era Coração-Sozinho. Coração-com-a-Mãe encontrou um porco, apanhou-o e sua mãe veio logo para o ajudar a matar o animal. Comeram-no ambos. Coração-com-o-Pai apanhou também um porco. O pai veio logo para o ajudar. Mataram o porco e comeram-no os dois.

Coração-Sozinho encontrou outro porco, apanhou-o mas não o conseguia matar. Ninguém foi em seu auxílio. Coração-Sozinho continuou nas suas caçadas, sem ajuda de ninguém. Começou a emagrecer, a emagrecer, até que um dia morreu.

Os outros continuaram cheios de saúde por não terem um coração sozinho.


A Oralidade Africana é muito rica. Muitos Contos, Causos e Lendas, que acreditamos brasileiros, vieram de lá. Em breve publicarei duas Histórias, conhecidas dos Contadores de Histórias, que aqui ganharam novas versões.

Ilustração de Joba Tridente - 2013


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Joba Tridente: A Dor Dura



Exercito Poemas Visuais e ou Concretos desde os anos 1970. Eram Exercícios moldados a ferro em brasa..., fruto do seu tempo, que ainda o é. Nos anos 1990 se tornaram mais brandos.


A Dor Dura

I

desfoco
descofo
o peixe intacto
apesar da boca

desforca
desforça
a cabeça intacta
apesar da dor

desmorte
destermo
o sexo intacto
apesar da vida

desnorte
desterno
a casa intacta
apesar da lógica


Joba Tridente in Novos Exercícios Visuais
Foto de Joba Tridente: 2010



sábado, 2 de fevereiro de 2013

Reflexão: Conselhos a uma Donzela



Ah, o tempo! Do tal Paraíso (cheio de proibições e pegadinhas) aos dias de hoje..., a mulher trilhou um árduo e longo, longo, longo caminho até a sua quase plena emancipação feminina. Alguns teóricos acreditam que o mundo já foi (um dia) e voltará a ser matriarcal (no futuro). É bem provável, já que na Terra há mais mulheres do que homens, já que as mulheres sobrevivem aos homens, já que nascem mais mulheres do que homens, já que... Bem, enquanto esse dia não chega, divirta-se com estes hilários Conselhos a uma Donzela, de autor desconhecido (pelo estilo devia ser membro da TFP - Tradição, Família e Patrimônio), publicado no Almanach de Porto Alegre de 1920.

Conselhos a uma Donzela

01 - Não ergas nunca os teus olhos, senão para olhar o céu.
02 - Sê dócil para com teus pais a tal extremo, que eles não tenham o incômodo de dizer-te com os lábios o que bastaria dizerem-te com os olhos.
03 - Não dês entrada ao orgulho na tua alma, porque o orgulho perde com mais segurança a mulher do que o homem, e a este perde-o sempre.
04 - Coloca-te todos os dias na presença de Deus, sob pena de te esqueceres de que vives nela.
05 - Sê caridosa com todos os pobres, com todas as misérias.
06 - Não feches nunca o teu coração à tua mãe: deixa-a ler nele como em livro aberto.
07 - Usa vestidos brancos para harmonizarem com a tua consciência e o teu coração.
08 - No mundo não há mulheres feias: o que ha é mulheres más e sem educação.
09 - Se tens talento, esconde-o e se o não tens, esconde-te.
10 - A mulher é formosa aos quinze anos; a bondade é-o aos quarenta.
11 - São as criadas que passam certidões de virtude das suas amas.
12 - A mulher que tem medo, nunca terá necessidade de valor.
13 - O matrimônio é uma cadeia, que pode ser de flores; mas inda que o seja, é cadeia.
14 - Se teu marido é bom, imita-o, e se o não é, faze com que ele te imite, sendo tu boa.
15 - Nunca tenhas amigas intimas.

Ilustração de Joba Tridente. 2013


Nota: A ficha completa do Almanach de Porto Alegre - 1920  pode ser acessada aqui. O site é Brasiliana USP. 


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