sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Joba Tridente: ouvivaldiando


ouvivaldiando

ouvindo Vivaldi
meteorologista troca
as quatro estações

(*)
Joba Tridente: Poema (2000) e Foto (2011)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vanessa Gomsant: São Paulo, amo você...

São Paulo, amo você... mas comemorar o quê?
Vanessa Gomsant


Em você me expresso e também me impressiono.
Vejo sacolas e pets banhadas de espumas flutuando à margem do seu rio...


... Passo por garis tirando das suas ruas lixos
que deveriam ser jogados em cestos...


... Sinto suas poluições visual e sonora encobertas por sua espessa cortina
de poluição atmosférica...


... Vivo num contraste de extrema desigualdade social,
poucos com muito e muitos sem nada!


São Paulo, amo você... mas comemorar o quê?


*
Homenagem por uma São Paulo ecologicamente correta,
socialmente justa e economicamente viável.
Assim seja a cidade, assim seja o Planeta!


(*)
fotos: Exposição Cidade (In)Sustentável


Vanessa Gomsant é arte-educadora e educadora ambiental brasileira em constante ebulição. Faz do meio o seu ambiente e do ambiente o seu verbo e do verbo a sua arte.

Cidades Minguantes: O Tocar

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Tocar
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

No interior, o cidadão integrado no seu cotidiano é o sujeito da sua realidade e não um espectador alheio. O ser tão carente na distância capital teme o verbo que chega de fora, quando não encontra uma forma de conjugá-lo com o seu verbo usual. Esta última crônica procura refletir sobre o toque das mãos no que parece minguante em busca do crescente.

Certa vez participei de um Salão de Humor, em Brasília, com o genial Henfil, e numa conversa informal ele disse que o mau humor no mundo estava relacionado com a falta de “relamento”, com o pavor que as pessoas tinham de relar (um quase tocar) umas nas outras, mesmo que distraidamente, e se sentirem comprometidas sexualmente. Para ele, as pessoas deveriam se relar mais, não apenas para se sentirem vivas, mas para se aproximarem, trocar energia, carinho, amizade. Infelizmente o pavor de um ser humano relar num outro ser humano, assim como se relam muitos animais, continua o mesmo. Lembrei disso ao coordenar uma Oficina de Arte-Postal no interior do Paraná.  Acostumado à formalidade dos grandes centros, quando me vi em cidades quase terminais, que nem hotel possuem, compreendi que era hora de rever os meus arcaicos conceitos.

Dependurar arte em varais, como se dependura roupa ao sol, sem a segurança da moldura, da parede, da distância máxima do corpo, traçada no chão, é comungar o toque e o relar sutil de amigos e de estranhos. O tocar na arte é bem mais que relar a própria alma. É mais que ouvir um cordel. O ser tão inocente e aparentemente frágil do interior a arte e procura se reconhecer nela. Admira o que conhece e ri do desconhecido. Toca-a para sabê-la real. Toca-se para saber-se vivo. A cumplicidade é sempre compartilhada pelos comuns. Na praça central, o olhar que registra o presente, pode compreender ou ignorar a desconstrução real de um tempo tocado pela máquina. Nas mesas repletas de revistas velhas, o olhar que desconstrói uma imagem impressa e constrói outra, num cartão, pode compreender ou ignorar a sua própria catarse tocada pelas mãos.

A síntese interior é muito maior que a autoexposição. E bem menor que a autocomiseração. O olhar que se derrama sobre a velha praça, recolhe-se em meditação ao ver-se exposto numa obra de leitura quase infantil. Quase, porque, não tendo medo, a criança que limpa a ramela, briga com a cola bastão e com a tesoura, na “brincadeira de colagem maluca”, acerta nos seus desejos, mesmo que inconscientes. O tapa, naquele que olha e a arte curiosamente feita com retalhos, com sobras de outras sobras, não é um toque de cumplicidade ou um quase relar distraído, mas a marca abrasiva que tatua na memória uma estranha sensação de culpa ou de medo pelo desconhecido ou pelo não feito.

Ir ao interior realmente não é se dar a ler, pois um texto que se quer capital, pode estar tão velho e ultrapassado que nem serve mais pra enrolar a carne no açougue ainda aberto.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Saborear

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Saborear
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

No interior o verdadeiro sentido de cada coisa está no jeito em que se olha, ouve, cheira, saboreia a paisagem que se desvela. Diz-se que, se o gosto interior do ser tão longe da capital não é frugal, também jamais será fugaz. Longe da capital, mesmo nas cidades que minguam a olhos nus, há que se ter tempo para apreciar o que a Natureza nos oferece. Esta quarta crônica fala do sabor da existência do todo e do nada.

Na vida interior ou capital tem-se fome de muita coisa. Nãoquem não a sinta ou que não precise satisfazê-la. Quando se viaja para dentro, tem-se fome da paisagem que se afigurava plena e deliciosa no horizonte e que agora se rabisca sobra fugaz em mera abstração. Tem-se fome do saboroso verbo caipira que parafraseava o verbo oficial. Tem-se fome da saborosa sonoridade sertaneja que dialogava com a sonoridade clássica. Nas cidades minguantes tem-se fome da gostosa fase crescente, interrompida bem antes da sobremesa.

Além dos grandes centros, ser tão arraigado à terra em que nasceu não é mais um prato que satisfaz. Quer se muito mais. Na mesa que se avizinha, o cidadão espera encontrar pratos que ainda não experimentou e que jamais degustará na casa que se esvazia. Assim como na antropofagia o verbo engole palavras, como a álgebra engole cálculos. Assim como na autofagia verbal o alfabeto tem fome de letras, como a matemática tem fome de números, a cidade do interior tem fome de capital.

Querer sentir o sabor do que não se tem, não é vergonha, é necessidade. Acolá a criança quer saborear o carinho de quem pegue na sua mão, a ensine os mistérios da palavra e ouça as suas histórias. A adolescente quer saciar a sua fome quase contida do que na TV com quem ama. A velha quer se deliciar com quem pegue na sua mão, a leve para passear na praça e ouça as suas memórias. A fome pode ser um ciclo vicioso e, se saciada, um vício gostoso. Como o dos vizinhos que, indiferentes à decadência da cidade, plantam em seus quintais as mesmas frutas, assim, na época da colheita, um experimenta a do outro, para descobrir se a fruta alheia é realmente a mais saborosa. Um olha a jabuticabeira do outro, beirando o muro, com seus troncos repletos de frutos, e suspira pela hora da troca. Qualquer fome, de arte-cultura ou não, é melhor saciada quando compartilhada. Longe da capital, os sabores urbanosmuito não se misturam aos rurais, por enjoo ou acidez dos paladares. Talvez a falta de jeito, com o cardápio que se apresenta, esteja no gesto ou na fala, esteja no ato ou na forma que se conjuga o verbo oferecer. Diz um ditado chinês que não se deve dar um peixe a um faminto mas ensiná-lo a pescar.

Quando se propõe ao ser tão capaz do interior um novo olhar sobre a arte-cultura de consumo ou de apreciação é preciso estar ciente que para saborear ele precisará tocá-la.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Cheirar

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Cheirar
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Ir ao interior é estar preparado para o novo que entorpece os sentidos. Ir ao interior é se deixar envolver pela luz, pelo som, pelo aroma de cada coisa desconhecida pela distância. Ir ao interior é se deixar ficar quieto, por um pouco, até que o coração reencontre o ritmo da tranquilidade. Ir ao interior é também se deparar com uma realidade que se quer ficção. Esta terceira crônica fala do aroma que resiste à face de qualquer cidade minguante.

Para se chegar ao interior é preciso vencer o vazio das estradas. O vazio das terras que servem apenas cana, trigo, soja, pasto. E também aqueles ponteados por uma árvore aqui e outra acolá. Ou por filas de eucaliptos e pinheiros para o corte, como os bois, mugindo no pasto onde se perdem a vista e os ouvidos. É na estrada que olfato urbano começa ser depurado com os aromas rurais: estrume, terra molhada, usina de cana, gado, queimada, mato.

As cidades minguantes têm cheiros próprios e seus mistérios. No banco da praça da igreja um velho conta, para um garoto curioso, que sabe cheirar o vento e pelo cheiro adivinhar se a chuva que se aproxima é leve, tempestade ou de pedra. O menino que sonha ir embora, antes que seja o último a apagar a luz da pequena cidade, não acredita. Diz que ninguém pode cheirar o vento. O senhor, que nunca saiu dali, apenas tira o chapéu, ajeita os ralos cabelos brancos e sorri. Para mim é pura magia cheirar o vento e saber da chuva. Para o velho é a lição do pai cego. Quem quiser sentir o aroma do que é simples basta andar sem medo, pois o medo embaralha os odores, recomenda o velho que fecha os olhos e sabe quem já foi embora e quem ainda resiste à sua conversa. A cidade guarda o perfume de cada habitante, mas a casa guarda a essência de cada morador, ensina. O velho de faro apurado, um cego às avessas, não precisa caminhar pela cidade para senti-la menor. Ele a cheira todos os dias e quando é preciso recorre à memória, para dizer a fragrância que falta. De cada coisa conhecida, gente, flor ou bicho este ser tão simples tem guardado o cheiro, menos o do futuro.

No interior em que quase todos querem ser meros passageiros para a capital, poucos sentem o aroma do incenso, do bálsamo, da erva aromática, do fruto maduro, e sabem de onde vem. Na distância, o preferível é negar o incômodo cheiro da miséria, do desprezo, da solidão, da infância interrompida ou da velhice inacabada. É mais confortável sentir apenas o perfume inebriante da dama-da-noite nos jardins ou nas calçadas. No cotidiano da vida minguante das pequenas cidades há quem não sente o cheiro da própria alma no interior. E quem prefere fazer plástica no nariz.

Num jogo de sensações é preciso estar sereno para perceber a fragrância de cada coisa e sentir o seu inesquecível sabor.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Ouvir

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Ouvir
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Viajando pelo interior, como Oficineiro Cultural, conheci lugares e gentes que realmente esperam queamanhã seja um novo dia”. Vi cidades quemuito beiram a ficção regional. Num futuro distraído é bem possível que algumas não passem de uma breve nota num livro de geografia. Nesta segunda crônica, sobre as cidades minguantes, vejo que fui longe para falar, querendo ensinar, e aprendi a ouvir para compreender o que via.

Ao chegar no interior, primeiro deve-se pousar o olhar sem pressa sobre todas as coisas, para não se sentir um estrangeiro antes da hora. Depois, é preciso reeducar os ouvidos aos sons desconhecidos: cantos e falas. A pressa ofusca-nos diante de tanta cor e também pode nos ensurdecer. Então, mais que dizer a que veio é preciso ouvir os que vêm contar os segredos inconfessáveis do lugar.

Uma velha senhora que, há vinte e oito anos, vai de casa em casa pra vender um famoso cosmético, não reclama da viuvez prematura ou dos filhos que partiram, mas da quantidade de vendedoras de beleza ali naquela lonjura. Talvez se fizesse doces pra fora a vida pudesse melhorar. Entre a vaidade e a gula, fica com a vaidade. A começar uma história nova num caderno velho, prefere continuar trabalhando na antiga. O vigilante sorridente, que faz a ronda numa  bicicleta, mais que saber sobre Curitiba, quer falar do filho que passa por um difícil tratamento de saúde na capital. Falar das viagens periódicas que faz pra visitar a criança, da sua vida, trabalho, sonhos, esperanças, como se fosse um velho conhecido. Quer parecer mais forte do que realmente é e antes que seus olhos marejem, dá um aperto de mão, sobe na bicicleta e some na primeira esquina. queria se fazer ouvir, desabafar, não se sentir sozinho naquela cidade onde parece apenas sair gente e nunca chegar.

No interior minguante ou ainda não, o cumprimento pode ser o convite pra uma conversa imprevisível. Enquanto umas crianças falam dos seus afazeres escolares ou comerciais, outras fofocam. Como se fosse importante saber o que não foi dito nem no confessionário para o padre, desvela-se na ingenuidade infantil a cara da cidade. Dedos apontam um e outro: relatam, delatam, condenam. Até mesmo os cães de ninguém latem para onde se apontam os dedos. Enquanto crianças inventam histórias para parecerem espertas e importantes, peões contam como caçam e matam animais silvestres e mostram o couro da cobra ou a gaiola onde aprisionam o bico-de-ferro, o cantor das madrugadas, que renderá míseros trocado.

Tantas e tontas coisas sabe-se ao viajar ao interior. Quando não se deixa trair por um escutar apressado é possível extasiar-se diante de sabiás e bem-te-vis que disputam, no canto e na garra, uma fonte luminosa, seca e abandonada, no meio da praça. Quando se tem a calma interior é possível ver, ouvir e cheirar as coisas de uma forma diferente.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Olhar

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Olhar
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Há seis anos viajo pelo interior do Paraná, como Oficineiro Cultural de literatura e arte, mas nunca tinha ido tão longe, como recentemente, e nem visto cidades murcharem. Num artigo anterior, de mesmo título, disse que viajar ao interior, mais que levar informação, é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo. Ao preparar esta série de crônicas, conjugando os cinco sentidos das cidades minguantes, compreendi que ir ao interior pode ser muito mais que força de expressão.

Viajar ao interior e conhecer este ser tão simples, que aos olhos viciados de capital parece ser tão outro, é preciso, antes de reler-se, acostumar-se com o avelhentado sentido do novo. É preciso deixar o olhar buscar o pouso. Sem pressa, que a pressa assusta os mandaruvás que se encasulam até mesmo nas calças do velho aposentado esquecendo-se sob a sibipiruna. O olhar apressado também assusta as douradas pétalas que o vento faz chover sobre ele, perfumando seu sono. Um olhar apressado cala os pássaros na balbúrdia habitual da colheita de grãos no asfalto. Um olhar apressado não se dá conta da lágrima que corre do olho do piá que recolhe mais um pardal atropelado na avenida e o coloca na sarjeta, junto a um montículo de flores de ipê roxo, para talvez ser carregado pela próxima chuva. Um olhar apressado não registra o engraxate amanhecendo no banco da praça, ofertado por uma antiga sapataria há muito falida, sonhando talvez como uma cidade crescente. A pressa cega-nos na simples cidade. Aí, a mão foge ligeira do besouro metalizado, o pé salta sobre a lacraia, mas a cabeça descontrolada é batizada pela rolinha.

Noutra cidade, algo familiar nem sempre está onde se espera. Excetuando a igreja, sempre plantada no meio de uma praça. O olhar capital, acostumado a catedrais, demora compreender a arquitetura interior. A alvenaria sustenta estranhas formas. A madeira apodrecida sustenta-se na fé. Crédulas ou não, as pombas dominam a frágil torre do sino, despensa farta para rapinantes noturnos. Dentro, o piso guarda as marcas dos fiéis em trilhas que rumam ao altar e ao confessionário. Sobre a pia batismal a estátua de um pombo, representando o Espírito Santo, parece olhar uma asa branca manchada de sangue, no chão ainda por varrer, bem no entreaberto da porta da torre do sino. Nessa manhã uma pomba não envelheceu.

Quando o olhar alcança enfim o pouso natural do ser tão interior é hora de se aperceber da luz que filtra o tempo. É hora do olhar se estender ao redor e conhecer a anatomia dos gestos quase imperceptíveis na sutileza. Um quase aceno da mulher. Um quase balbucio da filha. Um quase arqueio de sobrancelha do homem. Um quase tirar o chapéu do peão. Um quase sorriso do comerciante. Um quase gritar da criança. Um quase inexistente na esperança de cada um buscando respostas no olhar curioso que agora pousa querendo ouvir.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

domingo, 19 de janeiro de 2014

Joba Tridente: Cidades Minguantes

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

Ser tão estranho este do interior. Ser tão externo ao capital interior. Ser tão carente de afago e de afeto, este que mora quase no sertão paranaense. Ser tão curioso sobre o lado de fora da sua cidade que mingua a olhos vistos. Que mingua indiferente a todos os sentidos. Que mingua mesmo repovoando o território esquecido com centenas de Vítor. Talvez um deles seja o salvador da minguante cidade, aquele que trará de volta a fase crescente ao quase (de novo) vilarejo. Ou quem sabe a esperança de queAmanhã será um novo dia!” esteja nas mãos da linda menina, de boa fala, que vende produtos de beleza e se orgulha de ser chamada de Scarlet. Uma menina que ainda não chegou aos doze anos, que sonha ser advogada, mas que opina sobre moda, conforme aprende em programas de TV e revistas velhas, compradas em bancas de cidades que longe se avizinham. Ali, sabe-se de cada um a intimidade. Ali, sabe-se sobre as torres gêmeas americanas atacadas por terroristas, mas não sobre o mar ou o nome da árvore de flores douradas. Apenas um poeta, ignorado, velho e desdentado, um quase mendigo, se arrisca: “Sibipiruna!” Ah, se ouvissem o tal genioso poeta andarilho, saberiam dos poemas feitos para cada cidade em que passou!
 
Viajar pelo interior é deparar-se com o obsoletismo. É encontrar o que está fora de ordem, de lugar e de tempo: material humano ou não. É encarar a desmemória dos velhos cidadãos na praça anuviada com seus velhos bancos de granito em ruínas, lembrando tristes lápides do que outrora foram chiques ofertas de comerciantes e famílias ricas. É sentir o vazio. Ninguém para contar o ontem. Ninguém para ouvir o amanhã. Se a história está interrompida, os cemitérios esperam impacientes os vivos. Os velhos mofados hotéis, com banheiro coletivo, esperam os viajantes de uma noite . As velhas igrejas esperam parcos fiéis que esperam garantir, ao menos, os céus. Tudo parece estar por um fio religioso ou comercial. Nas casas antigas, a madeira velha, cinza, deixa-se tatuar abstrações por veios negros. Parecem estar em apenas por uma questão de vento. Nas casas novas, a imponência da fase crescente tropeça na impotência minguante. A capelinha de novena doméstica, que trazia uma imagem, virou um portarretrato, em forma de igreja, com a foto do santo, simplificando a . Olhando assim, somente os aparelhos de televisão preto e branco parecem combinar com lugar. Talvez pela falta de sintonia.

Na indiferença de quem chega ou sai, cães e gatos entrecruzam-se nas ruas. São de ninguém e, buscando comida, atendem a qualquer nome. Rolinhas e pardais aninham-se nas velhas árvores. Galos cantam na madrugada. Um peão, pedalando uma velha bicicleta, tange a boiada na estrada asfaltada, com um cabo de guarda-chuva...

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

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