Porém, há muitas letras de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, Belchior, entre outros contemporâneos, que são maravilhas literárias. Quem não se lembra do alvoroço quando o compositor e cantor Bob Dylan foi laureado com o Nobel de Literatura, em 2016 (por “Ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música americana.”)? E olha que, em 2008, o músico já havia recebido o Citações e Prêmios Especiais - Pulitzer Prize (por “Seu profundo impacto na música popular e na cultura americana, marcada por composições líricas de extraordinário poder poético.”). Não foi diferente com o Gilberto Gil, eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 2021. Nesse embate, que pode vir a ser saudável, alguns poemas têm mais força na oralidade, na declamação, do que se musicada e vice-versa. Assim é, desde que o leitor e/ou ouvinte tenha sensibilidade para tanto. Se não, nada feito.
“poemas para a posteridade”
fotos da internet: apenas esta com a xícara de café tem crédito: Ivan Klingen |
É desta prazerosa edição da Ocupação Cartola que selecionei os cinco poemas deste artista singular para esta
postagem: O Teu Pedido/O Meu Pedido; Obscuridade; Quero Mais Rugas
nas Faces; Remorso; Mangueira. Ilustrações: Joba Tridente (2022). Fotos: Internet.
C A R T O L A
um poeta além do samba
O TEU PEDIDO
CARTOLA
Em sonho fiz teu
samba, coisa louca
Senti tamanha emoção
em mim
Terminou rolando de
boca em boca
Humilhado em
gafieiras e botequins
E para tal não
acontecer
Resolvi teu samba
não escrever
Sabendo que és moça
e bem prendada
E de família pobre
mas honesta
Resolvi quebrar a
cabeça em algumas quadras
Dando-te depois de
prontas estas
Eu sei que são bem
pobres as minhas rimas
Infeliz de mim
tivesse mais cultivo
Rasgaria por
completo estas rimas
A ti escreveria um
grande livro
O MEU PEDIDO
CARTOLA
Bem vês que atendi o
teu pedido
E assim forçou-me a
fazer outro agora
Depois de leres,
gostes ou não gostes
Por favor, rasga e
põe fora.
Lidas na vertical de cima para baixo,
as letras iniciais dos versos deste acróstico formam o nome de uma mulher - Esther
Serdeira - com quem Cartola se envolveu nos anos 1930. O texto foi escrito a
pedido da moça, que já era comprometida.
O B S C U R I D A D E
CARTOLA
Passei pelo mundo
sem ser percebido,
Ouvindo a tudo
E a nada dando
ouvido.
Segui pelo caminho
que tinha à minha frente,
Mas não encontrei a
estrada
Desejada em minha
mente.
Nada fiz que aos
outros tivesse interessado.
Tudo que fiz, foi
por dever ou acovardado.
Por nada tive
paixão,
Mas nada fiz por
ódio,
Se ausência de
sentimentos
Não significa
maldade
Simplificando a
história:
Vivi na obscuridade.
QUERO MAIS RUGAS NAS FACES
CARTOLA
Raros os que não me chamam
De velho, velho baldado
Curvo a cabeça calado
Satisfeito com o que sou
Deixem que os dias se passem
Quero mais rugas nas faces
Quero que o corpo se incline
Com o peso de minha idade
Tive também mocidade
Mocidade de incertezas
Quantas vezes me faltaram
O pão sobre minha mesa
Há coisas que da memória
Não podem fugir jamais
Eram os tempos que os filhos
Dialogavam com os pais
Será senhor que é pecado
Ser velho assim como sou?
Será que esta juventude
Pensa que o tempo parou?
Oh poderosos, oh mestre
Iluminai as estradas
Para que cheguem ao final
Com a vida realizada.
R E M O R S O
CARTOLA
Se eu te encontrar um dia agonizante,
Morrendo em desespero de remorsos,
Pelo mal que me fazes a todo
instante,
Eu rezarei por ti um pai-nosso.
E se pensares o quanto me ultrajaste
E me pedires perdão, eu dar-te posso
Em louvor a algum bem que me causaste
Eu rezarei por ti um pai-nosso.
E no último suspiro está previsto,
Não terás coragem para ser sincero.
Negarás tudo. “Eu não disse isto”.
Se te faltar forças, amigo, eu posso
Levar-te a última morada
E rezar por ti um pai-nosso.
M A N G U E I R A
CARTOLA
Quando à tarde
O sol descamba
Vem a lua pro terreiro
Lua em forma de pandeiro
Ritmando prateada
Mais distante as estrelas
Pequeninas, quase nada
Tem-se a impressão que Mangueira
Seja um conto de fada.
foto colorida: Walter Firmo |
Saiba Mais: Wikipédia: Cartola; BDTD - Nilcemar Nogueira: De dentro da Cartola: a poética de Angenor de Oliveira; Antonio Miranda: Cartola - Angenor de Oliveira; Itaú Cultural: Ocupação Cartola; Multirio: Heróis e Heroínas do Rio - Cartola: samba e poesia em verde e rosa; Ronaldo Só Moutinho: A Obra de Cartola e o Novo da Rede; Carlos Drummond de Andrade: Cartola, no moinho do mundo; Esquina Cultural - Matheus Mans: As histórias por trás da vida e da música de Cartola; Jornalismo Júnior: Cartola, samba e lirismo; IMS - Pedro Paulo Malta: Cartola Inesquecível: Amigos relembram histórias do mestre nos 40 anos de sua morte; CemporcentoSamba - Fabio Silva: Cartola; Almanaque Folha UOL - Douglas Cometti: Cartola; Famosos Que Partiram: Cartola; Museu Afro Brasil: Cartola; Revista de História - Maurício Barros de Castro: Divino Cartola; Medium: Cartola - O gênio da Estação Primeira de Mangueira.