sábado, 26 de fevereiro de 2022

CARTOLA: Um poeta além do samba


Certa vez estava orientando a minha Oficina Literária Poesia Aleatória - Reciclando a Palavra Jogada Fora e uma oficinanda disse que não gostava de música e que não via poesia alguma nas letras de músicas. Foi o começo de uma boa discussão. Bem, obviamente nem toda letra de música é poética, principalmente hoje em dia, com as bobageiras “sertanejas” e outras tantas mediocridades impostas ao povão que se acostumou a consumir bagaça (de corno e de bebum) sem reclamar. 

Porém, há muitas letras de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Tom Jobim, Belchior, entre outros contemporâneos, que são maravilhas literárias. Quem não se lembra do alvoroço quando o compositor e cantor Bob Dylan foi laureado com o Nobel de Literatura, em 2016 (por “Ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música americana.”)? E olha que, em 2008, o músico já havia recebido o Citações e Prêmios Especiais - Pulitzer Prize (por “Seu profundo impacto na música popular e na cultura americana, marcada por composições líricas de extraordinário poder poético.”). Não foi diferente com o Gilberto Gil, eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 2021. Nesse embate, que pode vir a ser saudável, alguns poemas têm mais força na oralidade, na declamação, do que se musicada e vice-versa. Assim é, desde que o leitor e/ou ouvinte tenha sensibilidade para tanto. Se não, nada feito. 

“poemas para a posteridade” 

fotos da internet: apenas esta com a xícara de café tem crédito: Ivan Klingen

Essa conversa toda é para dizer que, há alguns anos, eu não sabia que Cartola, o grande Mestre do Samba, escrevia poemas além das suas magníficas letras musicadas. Casualmente li um extrato de sete poemas, do livro Cartola: Os Tempos Idos, de Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho (Funarte, 1983), que encontrei na internet, gostei e pensei em pesquisar futuramente. Recentemente me deparei com uma edição ebook, com dez poemas e dados biográficos do autor, lançada gratuitamente na Ocupação Cartola, do Itaú Cultural (2016), que informa: “Durante uma entrevista exibida em 1979 pelo programa Vox Populi, da TV Cultura, Cartola comentou sua produção de poemas - poemas feitos para o papel, não para os discos - e disse que gostaria de reuni-los em um livro. “Quando eu tiver mais uma dúzia deles vou fazer um sacrifício [...] para que eu possa editar um livrozinho e deixá-lo para a posteridade.” Os manuscritos e os datiloscritos aqui reproduzidos são os poemas criados por Cartola e guardados por Nilcemar Nogueira, neta do artista e diretora do Museu do Samba, centro de referência localizado no Morro da Mangueira - comunidade carioca cuja história é indissociável à de Cartola.” 

É desta prazerosa edição da Ocupação Cartola que selecionei os cinco poemas deste artista singular para esta postagem: O Teu Pedido/O Meu Pedido; Obscuridade; Quero Mais Rugas nas Faces; Remorso; Mangueira. Ilustrações: Joba Tridente (2022). Fotos: Internet.

 

C  A  R  T  O  L  A

um poeta além do samba

 

                          

O  TEU  PEDIDO

CARTOLA

 

Em sonho fiz teu samba, coisa louca

Senti tamanha emoção em mim

Terminou rolando de boca em boca

Humilhado em gafieiras e botequins

E para tal não acontecer

Resolvi teu samba não escrever

 

Sabendo que és moça e bem prendada

E de família pobre mas honesta

Resolvi quebrar a cabeça em algumas quadras

Dando-te depois de prontas estas

Eu sei que são bem pobres as minhas rimas

Infeliz de mim tivesse mais cultivo

Rasgaria por completo estas rimas

A ti escreveria um grande livro

 

O  MEU  PEDIDO

CARTOLA

 

Bem vês que atendi o teu pedido

E assim forçou-me a fazer outro agora

Depois de leres, gostes ou não gostes

Por favor, rasga e põe fora.

 

Lidas na vertical de cima para baixo, as letras iniciais dos versos deste acróstico formam o nome de uma mulher - Esther Serdeira - com quem Cartola se envolveu nos anos 1930. O texto foi escrito a pedido da moça, que já era comprometida.


 

    

O B S C U R I D A D E

CARTOLA

 

Passei pelo mundo sem ser percebido,

Ouvindo a tudo

E a nada dando ouvido.

Segui pelo caminho que tinha à minha frente,

Mas não encontrei a estrada

Desejada em minha mente.

Nada fiz que aos outros tivesse interessado.

Tudo que fiz, foi por dever ou acovardado.

Por nada tive paixão,

Mas nada fiz por ódio,

Se ausência de sentimentos

Não significa maldade

Simplificando a história:

Vivi na obscuridade.


 

                       


QUERO MAIS RUGAS NAS FACES

CARTOLA

 

Raros os que não me chamam

De velho, velho baldado

Curvo a cabeça calado

Satisfeito com o que sou

 

Deixem que os dias se passem

Quero mais rugas nas faces

Quero que o corpo se incline

Com o peso de minha idade

 

Tive também mocidade

Mocidade de incertezas

Quantas vezes me faltaram

O pão sobre minha mesa

 

Há coisas que da memória

Não podem fugir jamais

Eram os tempos que os filhos

Dialogavam com os pais

 

Será senhor que é pecado

Ser velho assim como sou?

Será que esta juventude

Pensa que o tempo parou?

 

Oh poderosos, oh mestre

Iluminai as estradas

Para que cheguem ao final

Com a vida realizada.

 


     


R E M O R S O

CARTOLA

 

Se eu te encontrar um dia agonizante,

Morrendo em desespero de remorsos,

Pelo mal que me fazes a todo instante,

Eu rezarei por ti um pai-nosso.

 

E se pensares o quanto me ultrajaste

E me pedires perdão, eu dar-te posso

Em louvor a algum bem que me causaste

Eu rezarei por ti um pai-nosso.

 

E no último suspiro está previsto,

Não terás coragem para ser sincero.

Negarás tudo. “Eu não disse isto”.

 

Se te faltar forças, amigo, eu posso

Levar-te a última morada

E rezar por ti um pai-nosso.


 

                                  


M A N G U E I R A

CARTOLA

 

Quando à tarde

O sol descamba

Vem a lua pro terreiro

Lua em forma de pandeiro

Ritmando prateada

Mais distante as estrelas

Pequeninas, quase nada

Tem-se a impressão que Mangueira

Seja um conto de fada. 



*********

foto colorida: Walter Firmo

CARTOLA - registrado Angenor de Oliveira (Rio de Janeiro-RJ: 11/10/1908 - Rio de Janeiro-RJ: 30/11/1980): compositor, cantor, poeta, violonista..., um dos mais importantes sambistas brasileiros e autor e/ou coautor de clássicos como As rosas não falam, O mundo é um moinho, Corra e olha o céu, O sol nascerá, Alvorada, Tive sim, Acontece, Disfarça e chora, Acontece, Ao amanhecer, Não quero mais amar ninguém, Amor Proibido, Cordas de Aço..., entre outras. Tomou gosto pela música e pelo samba ainda menino e aprendeu com o pai a tocar violão. Quando a sua família se mudou para o morro da Mangueira, conheceu e fez amizade com Carlos Cachaça e outros bambas. Aos 15 anos, após a morte de sua mãe, abandonou os estudos - tendo terminado apenas o primário. Arranjou emprego de servente de obra e passou a usar um chapéu-coco para se proteger do cimento que caía de cima, ganhou dos colegas de trabalho o apelido “Cartola”. Junto com um grupo de amigos sambistas do morro, Cartola criou o Bloco dos Arengueiros, cujo núcleo em 1928 fundou a Estação Primeira de Mangueira. Ele compôs também o primeiro samba para a escola de samba, Chega de Demanda. Os sambas de Cartola se popularizaram na década de 1930, em vozes ilustres como Araci de Almeida, Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis e Sílvio Caldas. Em 1974, aos 66 anos, Cartola gravou o primeiro de seus quatro discos-solo e sua carreira tomou impulso de novo com clássicos instantâneos como As Rosas não FalamO Mundo É um MoinhoAcontece. No final da década de 1970, mudou-se da Mangueira para uma casa em Jacarepaguá, onde morou até a morte, em 1980. Fonte Wikipédia.

Saiba Mais: Wikipédia: Cartola; BDTD - Nilcemar Nogueira: De dentro da Cartola: a poética de Angenor de Oliveira; Antonio Miranda: Cartola - Angenor de Oliveira; Itaú Cultural: Ocupação Cartola; Multirio: Heróis e Heroínas do Rio - Cartola: samba e poesia em verde e rosa; Ronaldo Só Moutinho: A Obra de Cartola e o Novo da Rede; Carlos Drummond de Andrade: Cartola, no moinho do mundo; Esquina Cultural - Matheus Mans: As histórias por trás da vida e da música de Cartola; Jornalismo Júnior: Cartola, samba e lirismo; IMS - Pedro Paulo Malta: Cartola Inesquecível: Amigos relembram histórias do mestre nos 40 anos de sua morte; CemporcentoSamba - Fabio Silva: Cartola; Almanaque Folha UOL - Douglas Cometti: Cartola; Famosos Que Partiram: Cartola; Museu Afro Brasil: Cartola; Revista de História - Maurício Barros de Castro: Divino Cartola; Medium: Cartola - O gênio da Estação Primeira de Mangueira. 


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