quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Marcílio Farias: (Diálogo visto de longe na Praça da Sé)

Marcílio Farias: Os poemas desta seleção, escritos num período de mais ou menos dez anos, em lugares e circunstâncias tão diferentes quanto as paisagens que evocam, foram agrupados em quatro partes, definidas em relação ao veio temático que exploram, e não à época em que foram escritos — a ordem é totalmente metacrônica. (...) Os temas e motivos entremeiam a minha visão de mundo com as múltiplas visões do homem que o mundo nos revela — evidenciadas no trato da linguagem. E o que seria a literatura se não o abrir universalizante de um particular, objetivado via linguagem? Acredito, como Baudrillard, que nosso tempo é um cipoal de falsos indicadores: indicadores de vida e de negação da vida, de uma civilização tecnofeita e endurecida por diretrizes rarefeitas, reificadas, que destroçam o veio sentimental e emotivo, sensual e prazenteiro, que deveria ser o traço característico dos seres humanos.












(Diálogo visto de longe na Praça da Sé)


Ele beija a mão dela,
Confere o contracheque
E pede abatimento.

Ela zomba,
Mexe as mãos para cima e para baixo,
Chega perto de seu ouvido direito e cochicha.

E ri
E arrota
Cerveja.

Ele - "Mesmo assim, você insiste nesse roteiro noturno,
Fabricando sonho, gonorreia e febres todas as
Noites nesse roteiro soturno
Deixa, deixa, deixa eu te alisar, deixa
Deixa eu fabricar meu sonho no seu roteiro noturno"

Ela – “No meu corpo só existe esquecimento.
Meu prazer se chama esquecimento
E não sinto nada quando você toca no meu seio
Só sinto a dor, o fogo da dor, e a chaga crescendo"


(*)
Ilustração de Joba Tridente: 2013


Marcílio Farias é formado e pós-graduado pela UnB em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Em 1989 emigrou para os Estados Unidos. Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA). Obras publicadas: Visual Field (poemas), 1996 - Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (poemas), 2007, e Rito para Ressuscitar um Elefante (poemas), 2010, ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Link: Currículo completo.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Marcílio Farias: (John)

Uma breve nota de Marcílio Farias, em O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa, lembra ao leitor que os poemas podem ser lidos/vistos linearmente como um só texto, ou em separado, como a vida. Assim o prefaciou Talvani Guedes da Fonseca: É dor, apenas dor, "O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (a.k.a. o livro de Gabriel)". Sem amargura, mágoa. Dor assumida. (...) Enfrentei, página por página, sabendo do que se tratava e o que li é verdadeiramente lindo, amor, olhar crístico e crítico sobre os que o condenam por ter nascido dono de desejos e sensibilidade diferentes que "afundam sem pressa, como num sonho, numa dor de cabeça"; e prossegui, porque meus ossos também sabem "da dor do desejo e do cheiro do delírio de corpos que se roçam no verão".

                        

(John)
fragmento

"Era uma vez um rei e sua amante fiel", diz a lenda...
"Um rei e uma amante fiel,
Bebendo os dois de um cálice de ouro
Cinzelado por anjos e demônios.
Do cálice extraiam juventude,
Dos anjos extraíam pecados
Dos demônios extraiam virtudes.
O cálice os mantinha atentos,
O vinho conservava o amor atento.
Eles não tinham videocassetes,
Nem CD Players, nem espadas, ou cavalos, ou guerreiros.
Mas havia o mar, e o horizonte parecia eterno.
Havia um terraço com pedaços de
Espelhos quebrados pelas ondas.
Um dia, o rei e sua amante
Aproximaram-se do mar;
O rei inclinou sua face pálida
A amante inclinou sua face pálida,
E nunca mais os viram
Beber do cálice de ouro cinzelado por
Anjos e demônios."


(*)
Ilustração de Joba Tridente: 2013


Marcílio Farias é formado e pós-graduado pela UnB em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Em 1989 emigrou para os Estados Unidos. Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA). Obras publicadas: Visual Field (poemas), 1996 - Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (poemas), 2007, e Rito para Ressuscitar um Elefante (poemas), 2010, ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Link: Currículo completo.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Marcílio Farias: Passado incômodo

Em Um poeta de versos adormecidos, na contracapa de Rito Para Ressuscitar um Elefante, Eduardo Alexandre, poeta e artista visual, escreve que: Marcílio é um pensador do seu tempo e traduz sua visão do mundo através de seus versos, fortes, contundentes, sem amaciantes verbais, com elegância de feitio, forma e sentimento. (...) Esse “Rito para Ressuscitar um Elefante” é como se fosse sua própria ressurreição como poeta imenso que é, paquidérmico em qualidade, mas escondido na humildade do quem, por não vestir mantos de vaidade, hesita em mostrar ao mundo o que tem. Finalmente, depois de insistentes apelos de amigos, Marcílio Farias, esse gigante das palavras manipuláveis, traz ao público brasileiro um pouco do que tem escrito. Um começo que espero se mostre paulatino na inteireza que merece e faz merecer o prazer de quem o lê.

                    










Passado incômodo


Nas aulas de História, compenetrados falastras
Falam sobre a mesa tecnicolor montada trinta anos
Atrás pelo time dos descompassados.

Cadáveres e mentiras pareiam-se felizes no desenho
Insuportável, cheirando a memorando e ofício,
Propina e chope, traçado dia por dia.

Nas origens do sangue dessas glebas sedimenta-se o
Verniz de terras confiscadas, mulheres mutiladas,
Fazendas invadidas, famílias reescritas.

Quando abro a janela perto das quatro da manhã,
Vejo ainda o estandarte do meu rei ser devorado pelos
Mortos enfatiotados no time dos descompassados.


(*)
Ilustração de Joba Tridente: 2013


Marcílio Farias é formado e pós-graduado pela UnB em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Em 1989 emigrou para os Estados Unidos. Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA). Obras publicadas: Visual Field (poemas), 1996 - Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (poemas), 2007, e Rito para Ressuscitar um Elefante (poemas), 2010, ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Link: Currículo completo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Marcílio Farias: Mandala

Em seu Prefácio – Cicatrizes insanas, Pedro Paulo Rezende diz: (...) Rito para Ressuscitar um Elefante, demonstra, sem qualquer sutileza, a brutal erudição do autor. Percebem-se influências de formação, transpostas numa poesia densa e permanente. (...) Ao mesmo tempo que reflete as marcas da cultura ocidental, no que tem de mais belo e perverso, como Baudelaire e Pound, a poesia de Marcílio é plena de referências à modernidade. Cruel e atual amplia as cicatrizes cotidianas da violência e das guerras. Numa época de obras descartáveis, é uma saudável volta à permanência da palavra.                     












Mandala

Reis e reinados, enxaqueca ou ressaca de segunda-feira.
Os poderosos e os artistas beijam-se serenos entre um
desfile e outro, 
Corpos e sorrisos de plástico encharcam as páginas das
revistas mais lidas .
Pelos pobres e miseráveis que sonham um dia repeti-los,
gesto por gesto.

País sem horizonte, esse. Países sem horizonte, esses que
o meu tenta imitar.
Cegos engolindo outros cegos como água de chuva em
dreno entupido.
Os reis e os reinados repetem-se como bonecos de plástico
vendidos nas
Páginas das revistas mais lidas por miseráveis e pobres,
gesto por gesto.

Na recepção do prefeito, artistas amorosos declaram
amores pelas
Ilusões que cultivam nas páginas amarelas de suas vidas
politizadas.
Entre um conchavo e outro, alisam-se mutuamente,
elogiam-se e embebedam-se
No fim das tardes ensolaradas, entre um desfile e outro.
Gesto por gesto, os políticos e os artistas sem horizonte,
dão-se as mãos como
Bêbados de ressaca na segunda-feira e engolem-se como
bonecos antropófagos nas
Páginas das revistas mais vendidas, entre beijos serenos e
plásticos, entre um desfile e outro.


(*)
Ilustração de Joba Tridente: 2013


Marcílio Farias é formado e pós-graduado pela UnB em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Em 1989 emigrou para os Estados Unidos. Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA). Obras publicadas: Visual Field (poemas), 1996 - Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (poemas), 2007, e Rito para Ressuscitar um Elefante (poemas), 2010, ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Link: Currículo completo.

sábado, 26 de outubro de 2013

Marcílio Farias: Moebius


..., conheci Marcílio Farias em meados dos anos 1970, na redação do Correio Braziliense, em Brasília. No final dos anos 1980 vim parar em Curitiba e ele nos EUA. A gente se reencontrou em uma rede social, frequentadas por outros grandes amigos que continuaram candangos e ou buscaram novos rumos, Brasil afora e adentro. Afiadíssimo no verbo e no verso, articulista sem teias nos dedos e muito menos papas na língua, ele lançou recentemente dois livros de poemas: O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (2007) e Rito para Ressuscitar um Elefante (2010), pela Scortecci Editora. Em um e em outro, poemas cosem poemas em uma perturbadora epopeia de resistência social, política..., e amorosa. Uma saga que vai muito além de sua “aldeia”. Com autorização de Marcílio publicarei cinco poemas no Falas ao Acaso. Os três primeiros são de Rito para Ressuscitar um Elefante e os dois últimos de O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa. Na postagem dos longos Moebius e (John) optei apenas por fragmentos. 
  

  








Moebius (2 fragmentos)

Essa minha língua afugenta, alarma e estarrece,
Irrefletindo a distância que separa
Um definido artigo que não escolho,
Do indefinido artigo que não intento.
Entre a voz e o silêncio da voz,
Onde se situam os outros,
E para quê?
Ruas vagas, rios morosos,
Dunas que disputam espaço com
Hotéis, pousadas e turistas –
Como enfeixar essa carga de
Escambos, legado civilizatório engessado nas regras do
Método histórico, como enfeixar tudo isso
Em palavras que
Eu sei que não são minhas, nem tuas, nem de ninguém?


(...)
Como página ensolarada por 230 lâmpadas,
Velas de vidro e filete que
Fazem da noite um pleno dia,
Os olhos se recusam ao sono, que cerca o
Quarto e a vida, a história dos homens,
E o cansaço que faz da noite
Um longo dia.
As costas suportam fardos e mosquitos,
Únicas vozes que cercam o
Quarto, vida, um cigarro depois do outro
Vela cortante que seca a paisagem,
Esturricada paisagem que
Contamina o verão dessas praias,
Áspera paisagem que sufoca e
Massacra visões de uma História feita
De sangue, destruição e enganos.
Muro alto esse, que não se pula.
No meio dessa madrugada, fantasmas antigos
Cercam a minha memória
Com imagens afogadas no fundo do açude.

Em minhas mãos, o desejo de tocar tuas mãos e
Esquecer por minutos o ranço dessa história sombria
Esquecida de todos os turistas que trafegam felizes por
Esse balneário requintado.

Como a minha história não mais existe,
Encharcada de sangue, receio e ignorância,
Pelos lideres de tantas novas repúblicas,
Só me resta o mar que pouco a pouco se dissolve em
Petróleo e fezes.
E 0 horizonte pontilhado de cargueiros levando para
Longe essa terra esturricada.

Nas paredes de casa as faces lindas de nós todos
Cem anos atrás e anteontem
Cem anos atrás ou anteontem
Riem e celebram o imóvel instante em que existiram.
Eu entre eles,
Eu entre os vivos e os mortos,
Saga sem o cheiro de suor e sangue daqueles
Vivos e de tantos outros mortos,
Seara sem fruto, beco sem saída,
Lendas sem heróis e castelos.


(*)
Ilustração de Joba Tridente: 2013


Marcílio Farias é formado e pós-graduado pela UnB em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Nos anos 70/80 trabalhou para a UNICEF/Brasil, USIS - Brasil e WHO, como consultor e assessor de assuntos públicos e culturais, respectivamente. Atuou como secretário particular do escultor Rubem Valentim, professor visitante da Universidade de Brasília e da Fundação Nacional de Teatro, editor assistente do Jornal de Brasília, colaborador do Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Última Hora, Jornal do Unicef e The Brazilians (NY). No ano de 74, integrou a equipe vencedora do Prêmio Esso para Melhor Contribuição à Edição Jornalística/Jornal de Brasília. No final da década de 80, escreveu e dirigiu o curta-metragem "Digitais" hors-concours em Lausanne e no Festival de Salvador, vetado pelo Concine logo em seguida.

Em 1989, emigrou legalmente para os Estados Unidos. Atuou como assessor cultural e adido cultural ad hoc do Consulado Geral do Brasil, em Boston, de 1993 a 2003. Professor visitante da Universidade de Massachusetts - Boston, conferencista convidado do David Rockefeller Center for Latin American Studies (Harvard University) e Sloan School of Management (MIT). Professor de Comunicação Impressa e de História da Cultura na Universidade de Phoenix, AZ, EUA. Membro Honorário da American Academy of Poets (Owing Mills, MD), da International Society of Poets (Washington, DC) e da Society of Friends of The Longfellow House (Cambridge, MA). Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA).

Obras publicadas: Visual Field (poemas), 1996 - Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (poemas), 2007, e Rito para Ressuscitar um Elefante (poemas), 2010, ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Os livros podem ser encontrados nas livrarias Cultura e Martins Fontes, em São Paulo, ou diretamente na editora Scortecci.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...