terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Joba Tridente: Paisagem

paisagem

a vida é que nem a noite
...e assim é com a semente no fruto
por mais que se faça escura
...e assim é com a semente na terra
sempre se chega à luz


(*)
Joba Tridente
poema (2007) e ilustração (2013)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Joba Tridente: Passagem

 
passagem

dia ante dia
mês ante mês
entre os dedos
o ano escorre

na dobra da noite
mão aconcha mão
acolhe o novo
dia ante dia


(*)
joba tridente
poema (2008) e foto (2004)

sábado, 21 de dezembro de 2013

Baptista Nunes: Não Sei!

Quem é Baptista Nunes? Não Sei! Onde encontrei o jocoso poema Não Sei!? No Almanach Popular para 1878. É só o que sei! Por que não atualizei o português? Ah, porque é muito mais divertido no original.


Não Sei!

Dize, sinhá, o que fizeste, hontem
da flor mimosa que te dei ?
- Guardei!
Se por acaso meu amor te desse,
tu guardarias como a flor?
- Não sei!

O que fizeste da pombinha rola,
que no jardim te confiei?
- Matei!
Pois tu mataste a pobresinha?! Então
eras capaz de me matar!
- Não sei!

Onde guardaste a poesia triste,
que ao teu piano, recitei?
- Rasguei!
E nem ao menos conservaste um verso,
para o author não olvidar!
- Não sei!

Ai! não me mates respondendo assim!
Deixa um momento de zombar commigo!
Dize se posso acalentar a esp'rança,
de ser amado por você.
- Não digo!

És muito ingrata! Pois terás coragem,
de ver a esp'rança que me resta, morta?
Queres a sorte da rolinha dar-me?
Queres que eu morra de paixão!
- Qu'importa ?

Pois bem eu juro me esquecer de ti,
Mas, dize ao menos porque assim me tratas!
Será porque teu coração tem dono?
- Não me aborreça, vá plantar batatas!


(*)
Ilustração de Joba Tridente – 2013

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Victor Champier: Uma locomotiva do século XVII

Adoro curiosidades de Almanaque. Na minha infância havia o delicioso Almanaque Fontoura. Há uns dois ou três anos descobri antigos Almanaques, em edições digitais da Brasiliana-USP, e fiquei encantado. Viajando pelas páginas do Almanach Popular para 1878, encontrei este delicioso artigo de Victor Champier: Uma locomotiva do século XVII, infelizmente sem a autoria do tradutor português. Acho que o meu encanto por este texto com ares de fantástico tem a ver com o fascinante gênero literário Steampunk, que estou conhecendo. Atualizei apenas a grafia.

 Uma locomotiva do século XVII
(Tradução para o Almanach Popular para 1878)

Não há nada de novo debaixo do sol; a natureza transforma-se, mas reaparecem sempre os mesmos elementos.
Existe ainda alguém que acredite no progresso?
Se tivessem lido o livro de Édouard Fournier, o Vieux Neuf, veriam estar demonstrado que os antigos egípcios, gregos, romanos - e outros, conheciam todas as grandes invenções que nós, modernos, nos atribuímos.
Este livro que se tornou raro, e cuja reimpressão nós podemos anunciar entre parêntesis, prova claramente que não ha uma só força mecânica que os gregos não pressentissem, uma só aplicação de química ou de física que não tenha sido empregada por eles.
O quê! direis vós, o vapor que data apenas de um século?
E então! que pensais? O vapor é velho como o mundo.
Hiren d'Alexandrie divertia-se há alguns centos de anos a fazer dançarem esferazinhas à extremidade do jato do vapor.
Era divertimento, na verdade, mas é, sem duvida, porque os antigos não queriam dar à água quente um papel mais nobre. Por um excesso de civilização eles recusavam-se a inventar os caminhos de ferro, causa permanente de acidentes e além disso instrumentos de perdição, como dizia o cura de certa aldeia.
E não só o vapor, mas também os balões lhes eram conhecidos. Inclina-te bravo Montgolfier!
Pelo menos, sabe-se que antes de Cyrano de Bergerac foram vistos ovos de galinha cheios de rocio flutuar nos ares como balões.
Aulu Gelle contou que tinha admirado um pombo mecânico que voava e agitava-se no espaço, devido a um ar sutil de que tinha o corpo cheio.
Não existe coisa alguma até aos milagres, cuja invenção não seja antiga.
Os sacerdotes das religiões antigas faziam-nos admiráveis, e a certos respeitos, superiores aos que se vêm agora.
No Egito os altares eram arranjados com a máxima habilidade. A água destinada às libações, nas cerimonias sagradas, achava-se no interior de uma cavidade, comunicando por um tubo com a taça colocada sobre o altar ou na mão do sacerdote; no momento de fazer o milagre, a taça estando ainda vazia, trazia-se um fogo ardente, sem o qual não era possível a cerimonia. Posto sobre o altar aquecia o ar interior que, dilatando-se, comprimia energicamente a superfície do liquido e o fazia subir pelo tubo até à taça. A libação tinha lugar assim e o povo acreditava no prodígio.
Vão se admirar, depois disto, quando dissermos que as locomotivas com que se sulca, neste momento, todos os boulevards de Paris, cuja invenção os ingleses tão altivamente se atribuem e das quais os americanos fazem tão grande uso há vinte anos, são simplesmente de origem francesa, que datam do século XVII, a menos que não remontem ao tempo dos Assírios ou que um semideus índio as tenha feito conhecer aos homens há milhares de anos!
Eis o caso. Há alguns meses, no palácio dos Campos Elyseos, o marechal de Mac-Mahon, presidente da republica, visitando as galerias da exposição da União Central, deteve-se ao pé da grande escada de honra e encaminhou-se, em seguida, para uma das elegantes lojas reservadas para livros. Achou-se diante dos livros editados por Morel e tomando um grande in-fólio, magnificamente impresso e cheio de belos desenhos, achou-lhe o seguinte título: Château de Marly-le-Roi, construit em 1676, détruit en 1798, par Aug.-Alex. Guillaumot.
O marechal examinava as gravuras com o descuido próprio de um personagem eminente. De repente levantou a cabeça e voltando-se para os seus ajudantes de campo, exclamou:
- Vede, é uma locomotiva!
Efetivamente, a gravura representava uma espécie de trenel rolando sobre trilhos, pelo meio do parque de Marly, tendo por viajantes as damas da corte e o rei Luiz XIV, em pessoa que, de pé à retaguarda, parecia presidir a carreira.
Sabe-se a predileção que este rei tinha por Marly e quantas prodigalidades tinha feito para construir neste país o magnífico castelo em que ele tanto gostava de dar festas.
No parque estavam dispostos grande quantidade de jogos destinados a fazer passar agradavelmente o tempo aos seus convidados.
Entre eles havia o da roulette, espécie de caminho de ferro posto em movimento à força de braços.
Era este jogo que estava gravado no volume que folheava o marechal de Mac-Mahon.
A locomotiva real, ornada à retaguarda, de quimeras douradas, rolava sobre pedrinhas de pequeno diâmetro, e os trilhos estavam solidamente arranjados.
O terreno conserva ainda neste lugar a inclinação que lhe deram para obter impulso, amortecido à chegada por um movimento inverso; o jogo dianteiro era armado de croquezinhos destinados a ajudá-la a subir quando a nobre companhia a abandonasse em meio do caminho.
É preciso ajuntar, para verificar o mérito da invenção com sua data, que lâminas girantes permitiam mudar a direção do veículo para a direita! Nós não temos ainda hoje nenhuma locomotiva munida deste precioso aparelho.
E agora, se me perguntarem o nome do inventor, serei obrigado a confessar que ignoro. Mas, que faz um nome?
Basta saber que o objeto existia: quod erat demonstrandum.


(*)
Victor Champier (1851-1929): historiador, editor e crítico de arte. Mais informações no OAC - Online Archive of California: Victor Champier e no Wikipédia: Victor Champier.

Édouard Fournier (1819 - 1880): escritor, dramaturgo, historiador, bibliógrafo e bibliotecário francês. Mais informação no Wikipédia: Édouard Fournier

Livro Vieux Neuf (1859) - o volume 2 (de 2): Vieux Neuf 

Ilustração: Locomotive Gilderfluke (American Journal Railway Gazette, 06 de dezembro de 1931), que encontrei em Some Fictional Locomotives. O site,  com suas loucas locomotivas ao estilo Steampunké muito bacana: Some Fictional Locomotives

domingo, 1 de dezembro de 2013

Joba Tridente: Hai-Kai Zumbi 2

A pedido do quadrinista e ilustrador Antonio Eder, criei dois Hai-Kais Zumbi para publicação no álbum Cidade Sorriso dos Mortos Vivos – Sangue e Pinhão Pra Todo Lado, editado por ele e Walkir Fernandes. O álbum com 351 páginas, lançado há duas semanas pelo Studio Dogzilla, traz inúmeras HQs, Contos, Passatempos, Cartuns, com um único tema: ZUMBI em Curitiba.

HAI-KAI ZUMBI 2



(*)

Para saber onde e como adquirir o álbum Cidade Sorriso dos Mortos Vivos, escreva para antonioeder@dogzilla.com.br

Joba Tridente: Hai-Kai Zumbi 1

A pedido do quadrinista e ilustrador Antonio Eder, criei dois Hai-Kais Zumbi para publicação no álbum Cidade Sorriso dos Mortos Vivos – Sangue e Pinhão Pra Todo Lado, editado por ele e Walkir Fernandes. O álbum, com 351 páginas, lançado há duas semanas pelo Studio Dogzilla, traz inúmeras HQs, Contos, Passatempos, Cartuns, com um único tema: ZUMBI em Curitiba.


HAI-KAI ZUMBI 1



(*)
Para saber onde e como adquirir o álbum Cidade Sorriso dos Mortos Vivos, escreva para antonioeder@dogzilla.com.br

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Teresa Vignoli: zen mistério

..., Teresa Vignoli é uma velha amiga. ..., do tempo em que eu candangava pelo cerrado do Planalto Central, cultuando Coisas da Terra na Ordem de um Universo muito particular. ..., a reencontrei em uma rede social. ..., seus poemas têm a delicadeza e o brilho dos seixos em águas cristalinas. ..., delicie-se, em três postagens, com três preciosidades.



zen mistério

 

o espírito está no ato
vento virando fato

ou
não me venham 
com gurus empanturrados de palavras.


(*)
Foto de Joba Tridente: Sargaço



Teresa Vignoli (ou simplesmente Teca) é psicoterapeuta e coordenadora de oficinas de escrita criativa em encontros de psicologia, educação e criatividade, e escritora. Teca é da geração mimeógrafo, que escancarou a poesia na década de 70. Além dos badalados recitais e encontros de arte e poesia, se fez presente nas coletâneas Pa lavra (RJ, 1973); Alambique (RJ, 1976), esta com os poetas Joel Macedo e Pedro Pellegrino; Pega Gente (SP, 1977), editada por Ulisses Tavares; Po rr etas (DF,1978 e 1980), com Nicolas Behr, Tetê Catalão e Cassiano Nunes. Em parceria com o artista Rômulo Pinto Andrade (projeto visual, capa e ilustrações) lançou Asa Verso (Brasília, 1986) e com a poeta Silma Coimbra Mendes, publicou pela editora Komedi, o livro Chama Verbo (1999). Entre os vários periódicos que colaborou poeticamente, destaca-se a revista Quaternio, editada pelo Grupo de Estudos Carl Gustav Jung e organizada por Nise da Silveira. Teca mora em Campinas, São Paulo.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Teresa Vignoli: de pousos e de pausas

..., Teresa Vignoli é uma velha amiga. ..., do tempo em que eu candangava pelo cerrado do Planalto Central, cultuando Coisas da Terra na Ordem de um Universo muito particular. ..., a reencontrei em uma rede social. ..., seus poemas têm a delicadeza e o brilho dos seixos em águas cristalinas. ..., delicie-se, em três postagens, com três preciosidades.




de pousos e de pausas

sentinelas
do vento,

atentos
como notas
em
partituras
verticais,

pássaros
pastoreiam
o silêncio.


(*)
Foto: Rosa Morena


Teresa Vignoli (ou simplesmente Teca) é psicoterapeuta e coordenadora de oficinas de escrita criativa em encontros de psicologia, educação e criatividade, e escritora. Teca é da geração mimeógrafo, que escancarou a poesia na década de 70. Além dos badalados recitais e encontros de arte e poesia, se fez presente nas coletâneas Pa lavra (RJ, 1973); Alambique (RJ, 1976), esta com os poetas Joel Macedo e Pedro Pellegrino; Pega Gente (SP, 1977), editada por Ulisses Tavares; Po rr etas (DF,1978 e 1980), com Nicolas Behr, Tetê Catalão e Cassiano Nunes. Em parceria com o artista Rômulo Pinto Andrade (projeto visual, capa e ilustrações) lançou Asa Verso (Brasília, 1986) e com a poeta Silma Coimbra Mendes, publicou pela editora Komedi, o livro Chama Verbo (1999). Entre os vários periódicos que colaborou poeticamente, destaca-se a revista Quaternio, editada pelo Grupo de Estudos Carl Gustav Jung e organizada por Nise da Silveira. Teca mora em Campinas, São Paulo.

Rosa Morena é assistente social (PUC-PR), com especialização em arteterapia (Unicamp), e artista plástica. Pesquisou a musicalidade da cerâmica e criou instrumentos percussivos, além de muitos botões, entre outros acessórios. Charlotte, uma Canon G12, seu grude, em caminhadas que pratica por aí, é a ferramenta que dispõe para um olhar atento a delicadas miudezas, às vezes escondidas, às vezes bem exibidas...

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Teresa Vignoli: Pitanga

..., Teresa Vignoli é uma velha amiga. ..., do tempo em que eu candangava pelo cerrado do Planalto Central, cultuando Coisas da Terra na Ordem de um Universo muito particular. ..., a reencontrei em uma rede social. ..., seus poemas têm a delicadeza e o brilho dos seixos em águas cristalinas. ..., delicie-se, em três postagens, com três preciosidades.




Pitanga

o sol na tua pele
cria espelhos.

vejo-me
no teu sabor vermelho.


(*)
Foto de Teresa Vignoli
em releitura de Joba Tridente



Teresa Vignoli (ou simplesmente Teca) é psicoterapeuta e coordenadora de oficinas de escrita criativa em encontros de psicologia, educação e criatividade, e escritora. Teca é da geração mimeógrafo, que escancarou a poesia na década de 70. Além dos badalados recitais e encontros de arte e poesia, se fez presente nas coletâneas Pa lavra (RJ, 1973); Alambique (RJ, 1976), esta com os poetas Joel Macedo e Pedro Pellegrino; Pega Gente (SP, 1977), editada por Ulisses Tavares; Po rr etas (DF,1978 e 1980), com Nicolas Behr, Tetê Catalão e Cassiano Nunes. Em parceria com o artista Rômulo Pinto Andrade (projeto visual, capa e ilustrações) lançou Asa Verso (Brasília, 1986) e com a poeta Silma Coimbra Mendes, publicou pela editora Komedi, o livro Chama Verbo (1999). Entre os vários periódicos que colaborou poeticamente, destaca-se a revista Quaternio, editada pelo Grupo de Estudos Carl Gustav Jung e organizada por Nise da Silveira. Teca mora em Campinas, São Paulo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Silvio Romero: A Proteção do Diabo

..., este conto recolhido por Silvio Romero, no Rio de Janeiro, é um dos mais singelos entre os publicados em Contos Populares do Brasil (1885). ..., gosto dele porque subverte conceitos religiosos. ..., e também porque me lembra o antológico conto O Demônio do Campo, de Hermann Hesse, publicado em O livro das Fábulas, editado no Brasil pela Civilização Brasileira, nos anos 1970.
  

A Proteção do Diabo

Houve um rei que tinha um filho; quando este chegou à idade de dezoito anos, sua mãe mandou ver a sua sina, e lhe responderam que seu filho tinha de morrer enforcado. Desde esse dia sua mãe não pôde ter mais alegria. 0 príncipe, logo que notou a tristeza de sua mãe, perguntou-lhe qual era o motivo. Sua mãe não lhe quis dizer; mas o moço incomodado por esse mistério, também caiu em tristeza. No segundo dia tornou a indagar da rainha, e nada dela lhe querer dizer; no terceiro dia o mesmo. Porém, tanto o príncipe insistiu, que ela se viu obrigada a declarar que a causa de sua tristeza era a triste sina dele ter de morrer enforcado. O príncipe não se atemorizou e disse à sua mãe que por isso não se incomodasse, porque morrer disto ou daquilo, de moléstia ou enforcado, tudo era morrer; e portanto lhe desse licença para ele ir correr mundo, para não morrer aonde tinha nascido e para evitar a seus pais maior dor. Com custo a rainha lhe concedeu licença, e o moço foi ter com o rei, que também a custo lhe quis dar.

O príncipe se aprontou para seguir, e, na despedida, seu pai lhe deu uma grande soma de dinheiro para sua viagem. Depois de ter o moço corrido algumas cidades e reinos, chegou a um lugar onde havia uma capela de São Miguel, com sua imagem e a figura do Diabo, tudo já muito arruinado. Ai parou o príncipe, a fim de mandar consertar a capela e as imagens.

Mandou chamar operários e se pôs à testa da obra. Depois que concluiu o trabalho, o pintor veio lhe dizer que tinha restado um pouco de tinta por não ter pintado o Diabo. O príncipe examinou a obra e ordenou que se pintasse também o Demônio, e, deixando tudo pronto, retirou-se. Depois de ter corrido outras terras, foi dar à casa de uma velha, pedindo-lhe licença para ai pernoitar. Depois que a velha lhe destinou um quarto, o príncipe pôs-se a contar o dinheiro que lhe restava. Vendo aquilo a velha foi dar parte à autoridade, dizendo que um ladrão a estava roubando a sua casa. A autoridade, com uma escolta, se dirigiu à casa da velha, prendeu ao príncipe e o conduziu para a cadeia, para ser processado, o que aconteceu, sendo ele condenado à pena última. Chegando o dia de cumprir, saiu o moço da prisão, no meio de uma escolta, para ser conduzido à forca. São Miguel, que estava na capela que o príncipe tinha mandado consertar, perguntou ao Demônio: “Então, tu agora não estás mais bonito?” Respondeu o Diabo que sim. “E não sabes quem consertou esta capela e nos enfeitou?” Respondeu que o príncipe, que tinha passado por ali. “Pois este príncipe, conduzido por uma escolta, está em caminho para ser enforcado e cumprir a sentença a que foi condenado injustamente. Deves ir defendê-lo.” 

O Diabo montou num fogoso cavalo, dirigiu-se à casa da velha, conduziu-a à justiça, onde ela declarou toda a maquinação que tinha feito para ficar com o dinheiro do príncipe. O rei, sabendo do ocorrido, por intermédio do Diabo, passou ordem para ser solto o príncipe e conduzido à sua presença, sendo o Diabo o portador da ordem. Partiu o Demônio no seu cavalo e apenas teve tempo de chegar, pois o príncipe já estava quase no ato de ser enforcado. Apresentou a ordem de soltura, e, livre o príncipe, o levou ao palácio do rei. Este interrogou ao príncipe para saber quem era e de onde vinha; ao que ele respondeu justamente quem era, e que tinha saído da terra de seus pais para não morrer enforcado perto deles, pois essa era a sina que tinha trazido. O rei obrigou a velha a restituir o dinheiro do príncipe, e mandou-a levar para a prisão até chegar o dia de ser sentenciada pelo crime que tinha cometido.

O príncipe, depois que se viu livre e embolsado de seu dinheiro, indo caminhando por uma estrada, encontrou-se com um fidalgo montado num fogoso cavalo. O fidalgo lhe perguntou para onde ia, ao que respondeu que andava em terra estranha e não sabia onde iria pernoitar. E foram andando-justamente pelo caminho que ia dar à capela que o príncipe tinha mandado consertar. Ele pelo caminho foi contando ao fidalgo o que lhe tinha acontecido, e como se tinha livrado daquela vez, mas que a sua sina era a de morrer enforcado. Então lhe disse o fidalgo: “Não sabeis quem vos defendeu?” Respondeu o príncipe que não. “Pois sabei que fui eu, que sou a figura do Diabo que estava na capela de São Miguel, que vós mandastes consertar e também pintar a mim. O santo me disse o aperto em que estavas, montei a cavalo, e ainda cheguei a tempo de vos salvar. Podeis voltar para vossa terra, porque a vossa sina está desmanchada, indo a velha ser enforcada em vosso lugar.”

Desapareceu o Diabo, que foi para a sua moradia na capela, onde também foi o príncipe fazer sua oração. Depois voltou para a sua pátria, onde seus pais o receberam com grande contentamento.


*
Ilustração de Joba Tridente (2013) 

Silvio Romero (Lagarto, 1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais.  Silvio Romero é, entre outras obras, autor de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A literatura brasileira e a crítica moderna (1880);  Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885); História da literatura brasileira, 2v. (1888); A poesia popular no Brasil (1880);  Compêndio da História da Literatura Brasileira (1906).

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Silvio Romero: O Homem Que Quis Laçar Deus

Já comentei em outra ocasião que muitas obras, principalmente literárias, me tocam antes pelo título..., como este conto, por exemplo: O Homem Que Quis Laçar Deus. Ele foi recolhido por Sílvio Romero e se encontra em Folclore Brasileiro: Cantos e Contos Populares do Brasil, v.3, da Livraria José Olympio Editora (1954).



O Homem Que Quis Laçar Deus

Havia um homem que era muito pobre e com muita família. No lugar em que morava, havia uma estrada muito grande e se dizia que por ali passava Deus e o mundo. Ouvindo dizer isto o homem, e querendo saber a razão por que Deus o tinha feito tão pobre, armou um laço e assentou-se na estrada à espera de Deus.

Levou assim muito tempo, e todos que passavam perguntavam o que estava ali fazendo. Ele respondia que queria pegar Deus. Afinal, estando desenganado de que nada fazia, ia para casa, quando apareceu-lhe um velhinho e deu-lhe quatro vinténs, dizendo que comprasse um objeto que custasse aqueles quatro vinténs. Nem mais barato, nem mais caro.

O homem foi para casa muito contente, imaginando no que havia de comprar com aquele dinheiro. Lembrou-se de um compadre negociante rico que tinha, o qual estava para fazer viagem a buscar sortimentos para sua loja. Dirigiu-se o compadre pobre para a casa do compadre rico e pediu-lhe que comprasse qualquer coisa que custasse aqueles quatro vinténs.

Fez o compadre a sua viagem e chegando na cidade não encontrou nada por aquele preço. Foi ao mercado e ainda nada. encontrava objetos por três vinténs, um tostão, meia pataca, dois mil réis, três, etc.

Ia para casa, quando ouviu um menino mercar: "Quem quer comprar um gato? Custa quatro vinténs." O homem ficou muito contente e comprou o gato. Era um animal raro naquele lugar. Chegando o negociante em casa do amigo onde estava hospedado, e que também era do comércio, este ficou desejoso de possuir aquele animal e pediu ao amigo para deixar o gato passar a noite na loja, onde havia muito rato, que lhe davam um grande prejuízo.

No outro dia quando abriram a casa, tinha uma quantidade tão grande de ratos mortos que causou admiração. o negociante dono da casa ofereceu uma grande soma de dinheiro ao amigo pelo gato.

Este recusou, dizendo ser o gato de um seu compadre muito pobre, que o tinha encarregado de comprar um objeto qualquer com quatro vinténs. Instou muito o negociante e afinal ofereceu tanto dinheiro que o amigo não pôde recusar e vendeu o gato. Voltou o compadre rico de sua viagem, mas chegando em casa teve tanta pena de dar o dinheiro ao compadre, que o enganou com uma peça de chita, muito ordinária, dizendo ter comprado aquilo com os quatro vinténs.

O compadre pobre ficou muito contente e, chegando em casa, a mulher desmanchou logo a fazenda em camisas para os filhos. Mas como Deus não quer nada mal feito, assim que o compadre saiu com a peça de chita, o rico caiu com uns ataques muito fortes e para morrer. A mulher o aconselhou a que se confessasse, que ele estava muito mal, e chegando o padre e sabendo do segredo, mandou-o restituir todo o dinheiro do compadre pobre. Este veio a chamado do rico, que logo melhorou, com a presença dele.

Mas o ricaço, não tendo coragem de entregar o dinheiro, ainda enganou o outro com outra peça de fazenda ordinária.

O pobre não cabia de si de contente, e mal tinha saído, o rico estava outra vez morre não morre. É chamado de novo a toda pressa o compadre pobre, sendo ainda uma vez enganado com outra peça de fazenda, mas desta vez o rico estava quase expirando, e não teve outro remédio senão declarar ao companheiro que aquelas barricas que ali estavam eram dele com todo o dinheiro que continham.

Ouvindo isto, o pobre quase que não se segurava em , tal foi o choque que sentiu, e como louco correu a dar novas à família, que não sabia como explicar tamanha felicidade. Houve oito dias de festas e o pobre ficou logo cercado de muitos amigos, entre eles o rico que ficou bom da moléstia esquisita, assim que entregou o dinheiro.


*
Ilustração de Joba Tridente (2013)


Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (Lagarto, 1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais.  Silvio Romero é, entre outras obras, autor de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A literatura brasileira e a crítica moderna (1880);  Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885); História da literatura brasileira, I e II (1888); A poesia popular no Brasil (1880);  Compêndio da História da Literatura Brasileira (1906). 

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