terça-feira, 5 de novembro de 2019

Jacinta Passos: Cantigas e Canções



CANTIGAS E CANÇÕES DE JACINTA PASSOS

Já comentei, em outra ocasião, que sempre que procuro uma coisa na internet, acabo encontrando outra que desconhecia. Seja cinema, teatro, ópera, dança, artes visuais, literatura... E a cada ano o labirinto de “novidades” nas nuvens só faz aumentar. É praticamente impossível abarcar a luz de tudo que nos interessa. Ao menos no meu caso, que ainda sou (?) humano e não autômato. Foi através do Doodle/Google, de 11 de outubro de 2019, que fiquei conhecendo a obra da escritora e abolicionista maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), autora de Úrsula, considerado o primeiro romance de uma escritora brasileira publicado no Brasil, que você pode baixar gratuitamente clicando no link/título do livro. Quanto a escritora, jornalista ativista baiana Jacinta Passos (1914-1973), autora, entre outros, de Poemas Políticos e Coluna, não me lembro mais como cheguei até à sua obra..., que mereceu uma edição completa (poesia e prosa, artigos jornalísticos, biografia e fortuna crítica): Jacinta Passos, coração militante, organizada por sua filha Janaína Amado, lançada em 2010.

Para esta postagem, e por seu alcance universal, selecionei quatro poemas de Jacinta Passos: Cantiga das Mães (Momentos de Poesia, 1942), Canção do Amor Livre (Canções Líricas), Diálogo na Sombra (Canção da Partida, 1945) e Chiquinha (Canção da Partida, 1945).



CANTIGA DAS MÃES
Jacinta Passos
(Para minha mãe)

Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
Foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
multiplicaram por cinco
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinho de mim,
berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida quem roubou.





CANÇÃO DO AMOR LIVRE
Jacinta Passos

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.





DIÁLOGO NA SOMBRA
Jacinta Passos

– Que dissestes, meu bem?

– Esse gosto.
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas, amor, do mar ou de mim?





CHIQUINHA
Jacinta Passos
(Para Matilde, Maria, Regina, Lourdes, Marcelina, Tomásia e Bernadete)
(são empregadas domésticas da família Passos, no Recôncavo e em Salvador)

Chiquinha
tão frágil,
magrinha.
Teu corpo miúdo
o tempo secou,
as formas redondas
o tempo gastou.
Pareces criança.
Chiquinha,
magrinha,
que doce esperança
te faz resistir?
Que doce esperança
mais forte que tudo,
mais forte que o tempo,
cansaço,
pobreza,
mais forte que o medo,
doença,
tristeza,
que doce esperança
mais forte que tudo,
à vida traz preso
teu corpo miúdo?

Chiquinha
Chiquinha
não lutas sozinha.
A doce esperança
te vem como herança
e a luta também,
do fundo dos séculos,
Chiquinha, te vem.
Teu corpo cansado
lutou no Egito,
as mãos, mãos escravas,
abanaram leques
e teu corpo nu,
teus seios morenos
e teus pés pequenos
dançaram lascivos,
ligeiros, airosos,
deleitando o tédio
de reis ociosos.
Chiquinha,
teu corpo,
teu corpo cansado,
foi corpo explorado
na Mesopotâmia,
na Pérsia e Turquia
– haréns de sultão –
foi pária na Índia,
na China e Japão.

Teu corpo explorado
foi mercadoria,
espada e cavalo
e vinho, foi orgia
na Arábia lendária,
de ardência e magia.
Já foi, na Judeia,
corpo apedrejado.
Na Grécia, teu corpo
vestido de túnica,
foi Vênus olímpica,
foi deusa na Arte,
foi serva na vida.
No Império Romano,
teu corpo serviu
a César, guerreiros,
fidalgos patrícios,
à flor da nobreza,
miséria e grandeza,
foi senhora-escrava,
matrona impoluta,
dama e prostituta.

Chiquinha
Chiquinha
durante dez séculos,
teu corpo fechado
nas torres feudais
de imensos castelos,
foi corpo arrancado
da terra, da vida,
corpo sem raiz,
feito puro espírito,
mistério e tabu,
teu corpo adorado
foi corpo explorado.

E quando as Nações,
nos tempos modernos,
abriram caminhos
ao mundo futuro,
caminhos no mar
em busca de terras,
riquezas, escravos,
teu corpo apanhado
nas selvas da África
chegou ao mercado
vendido e comprado,
teu corpo de negra,
teus braços de serva,
teu sexo de fêmea,
teu ventre fecundo
produtor de escravos
dos donos do mundo.
Teu corpo apanhado
nas selvas da África,
nas terras indígenas,
nas tribos nativas
das ilhas no mar,
teu corpo ajudou
Europa a crescer
e um mundo a nascer
nas terras da América.

Chiquinha
Chiquinha
não lutas sozinha.

Chiquinha
teu corpo
ainda não é teu.
Não é livre a vida.
Não é livre o amor.
Chiquinha
teu corpo
mudou de senhor.

Tu sabes
Chiquinha
que a máquina que move
o mundo moderno
te vem libertar?

Tu sabes
(isto sim, tu sabes)
a máquina tem dono
e tu tens apenas
teu corpo de carne
que pede comida
e roupa
e abrigo,
teu corpo de carne
agarrado à vida.

A máquina
precisa mover
dinheiro! dinheiro!
e tu
precisas viver.

O dono da máquina,
teu dono e senhor,
Chiquinha,
é teu comprador.
Tu vendes teus braços,
trabalho, energia,
tu vendes teu tempo,
descanso, alegria,
vigor, juventude,
beleza e saúde,
futuro dos filhos,
tu vendes, tu vendes,
Chiquinha, que dor!
tu vendes teu sexo,
desistes do amor.

A máquina
te vem libertar.
Dinheiro! Dinheiro!
A máquina
te vem devorar.

A máquina
é monstro de lenda,
é monstro-dragão,
devora teu corpo,
é bicho-papão,
é monstro danado
de muitas cabeças,
tem corpo-serpente,
rasteja no chão,
seu hálito arrasa
como um furacão,
tem língua de fogo
tem asas e voa,
ligeiro, ligeiro,
cuspindo dinheiro,
devora teu corpo,
devora teu povo,
seu sangue e suor.

A máquina
te vem devorar.
Chiquinha
Chiquinha
tu sabes que a máquina
te vem libertar?

A máquina
conquista
a terra
e o céu
e o mar,
a máquina,
Chiquinha,
te vem libertar.

A máquina
prolonga teus braços,
liberta teu corpo
de serva doméstica,
te arranca de casa,
derruba as paredes
limites, fronteiras
do lar, doce lar
– prisão milenar –
e faz do teu corpo,
cansado
explorado
e multiplicado
na luta, esse mundo
difícil, Chiquinha
teu reino será.

Chiquinha
tu sabes que a máquina
que move
o mundo moderno
te vem libertar?

Republicado em Poemas Políticos, versão aqui reproduzida.
A dedicatória só foi publicada na edição original.

*****
 ilustrações de Joba Tridente.2019


Jacinta Velloso Passos (Cruz das Almas/Recôncavo da Bahia: 30.11.1914 – Aracaju/Sergipe: 28 de fevereiro de 1973): escritora de prosa e verso, jornalista, feminista, militante. Jacinta ingressou no Partido Comunista Brasileiro em 1945 e nele permaneceu até morrer. Foi colaboradora dos jornais O Imparcial e O Momento e, entre 1942 e 1958, publicou os livros Nossos poemas (1942), Canção da partida (1945, ilustrado por Lasar Segall), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1957)..., que mereceram atenção crítica de Antonio Cândido,  Mário de Andrade, Gabriela Mistral (Prêmio Nobel de Literatura em 1945), Roger Bastide, Sérgio Milliet, Aníbal Machado, Paulo Dantas e José Paulo Paes. O recente Jacinta Passos, coração militante (2010), além de reunir toda a obra da escritora, traz análises inéditas de Angela Baptista, Fernando Paixão, Florisvaldo Mattos, Gerana Damulakis, Guido Guerra, Hélio Pólvora, Ildásio Tavares e Simone Lopes Tavares.
para saber mais: Templo Cultural Delfos: Jacinta Passos - serei poesia;  Rosângela Santos Oliveira: Jacinta Passos, Loucura ou Marginalização?; Escamandro: Jacinta Passos (1914-1973); Beatriz Azevedo da Silva: Jacinta, Passos de uma escritora à margem; Academia de Letras da Bahia: Presença do humanismo militante na poesia de Jacinta Passos; Site Oficial: Jacinta Passos.

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