segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Eduardo Galeano: Mulheres



M U L H E R E S
Eduardo Galeano

Em tempos obscuros e de incompreensível (?) retrocesso social e político, em grande parte do mundo, um toque literário e libertário do escritor uruguaio Eduardo Galeano pode fazer a diferença na reflexão diária de muitos leitores. Para tanto escolhi três textos (em português e em espanhol), do seu magnífico livro Mulheres (L&PM, 1997), traduzidos por Eric Nepomuceno: Pássaros Proibidos (Pájaros Prohibidos); A outra avó (La abuela) e A cultura do terror (La cultura del terror).



PÁSSAROS PROIBIDOS
Eduardo Galeano
tradução Eric Nepomuceno

Nos tempos da ditadura militar, os presos políticos uruguaios não podem falar sem licença, assoviar, sorrir, cantar, caminhar rápido nem cumprimentar outro preso. Tampouco podem desenhar nem receber desenhos de mulheres grávidas, casais, borboletas, estrelas ou pássaros.
Didaskó Pérez, professor, torturado e preso por ter idéias ideológicas, recebe num domingo a visita de sua filha Milay, de cinco anos. A filha traz para ele um desenho de pássaros. Os censores o rasgam na entrada da cadeia.
No domingo seguinte, Milay traz para o pai um desenho de árvores. As árvores não estão proibidas, e o desenho passa. Didaskó elogia a obra e pergunta à filha o que são os pequenos círculos coloridos que aparecem nas copas das árvores, muito pequenos círculos entre a ramagem:
São laranjas? Que frutas são?
A menina o faz calar:
Shhhh.
E em tom de segredo explica:
Bobo. Não está vendo que são olhos? Os olhos dos pássaros que eu trouxe escondidos para você.



PÁJAROS PROHIBIDOS
Eduardo Galeano

Los presos políticos uruguayos no pueden hablar sin permiso, silbar, sonreír, cantar, caminar rápido ni saludar a otro preso. Tampoco pueden dibujar ni recibir dibujos de mujeres embarazadas, parejas, mariposas, estrellas ni pájaros.
Didaskó Pérez, maestro de escuela, torturado y preso por tener ideas ideológicas, recibe un domingo la visita de su hija Milay, de cinco años. La hija le trae un dibujo de pájaros. Los censores se lo rompen a la entrada de la cárcel.
Al domingo siguiente, Milay le trae un dibujo de árboles. Los árboles no están prohibidos, y el dibujo pasa. Didaskó le elogia la obra y le pregunta por los circulitos de colores que aparecen en las copas de los árboles, muchos pequeños círculos entre las ramas:
¿Son naranjas? ¿Qué frutas son?
La niña lo hace callar:
Ssshhhh.
Y en secreto le explica:
Bobo. ¿No ves que son ojos? Los ojos de los pájaros que te traje a escondidas.




A OUTRA AVÓ
Eduardo Galeano
tradução Eric Nepomuceno

A avó de Bertha Jensen morreu amaldiçoando.
Ela tinha vivido a vida inteira na ponta dos pés, como se pedisse perdão por incomodar, consagrada ao serviço do marido e à sua prole de cinco filhos, esposa exemplar, mãe abnegada, silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixa saíra de seus lábios, e muito menos um palavrão.
Quando a doença derrubou-a, chamou o marido, sentou-o na frente da cama, e começou. Ninguém suspeitava que ela conhecesse aquele vocabulário de marinheiro bêbado. A agonia foi longa. Durante mais de um mês, a avó, da cama, vomitou um incessante jorro de insultos e blasfêmias baixíssimas. Até a sua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem bebido outra coisa além de água ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim, xingando, morreu; e foi um alívio geral na família e na vizinhança.
Morreu onde havia nascido, na aldeia de Dragor, na frente do mar, na Dinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma linda cara de cigana. Gostava de vestir-se de vermelho e de navegar ao sol.



LA ABUELA
Eduardo Galeano

La abuela de Bertha Jensen murió maldiciendo.
Ella había vivido toda su vida en puntas de pie, como pidiendo perdón por molestar, consagrada al servicio de su marido y de su prole de cinco hijos, esposa ejemplar, madre abnegada, silencioso ejemplo de virtud: jamás una queja había salido de sus labios, ni mucho menos una palabrota.
Cuando la enfermedad la derribó, llamó al marido, lo sentó ante la cama y empezó. Nadie sospechaba que ella conocía aquel vocabulario de marinero borracho. La agonía fue larga. Durante más de un mes, la abuela vomitó desde la cama un incesante chorro de insultos y blasfemias de los bajos fondos. Hasta la voz le había cambiado. Ella, que nunca había fumado ni bebido nada que no fuera agua o leche, puteaba con voz ronquita. Y así, puteando, murió; y hubo un alivio general en la familia y en el vecindario.
Murió donde había nacido, en el pueblo de Dragor, frente a la mar, en Dinamarca. Se llamaba Inge. Tenía una linda cara de gitana. Le gustaba vestir de rojo y navegar al sol.




A CULTURA DO TERROR
Eduardo Galeano
tradução Eric Nopomuceno

Pedro Algorta, advogado, mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido à faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu.
A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida.
Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos...
Alma Di Agosto era cega.
Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada:
Por quê? – perguntou o advogado.
Porque os jornais dizem.
Mas os jornais mentem – disse o advogado.
Mas o rádio também diz – explicaram os vizinhos. – E a televisão!



LA CULTURA DEL TERROR
Eduardo Galeano

Pedro Algorta, abogado, me mostró el gordo expediente del asesinato de dos mujeres. El doble crimen había sido a cuchillo, a fines de 1982, en un suburbio de Montevideo.
La acusada, Alma Di Agosto, había confesado. Llevaba presa más de un ańo; y parecía condenada a pudrirse de por vida en la cárcel. Según es costumbre, los policías la habían violado y la habían torturado. Al cabo de un mes de continuas palizas, le habían arrancado varias confesiones. Las confesiones de Alma Di Agosto no se parecían mucho entre sí, como si ella hubiera cometido el mismo asesinato de muy diversas maneras. En cada confesión había personajes diferentes, pintorescos fantasmas sin nombre ni domicilio, porque la picana eléctrica convierte a cualquiera em fecundo novelista; y en todos los casos la autora demostraba tener la agilidad de una atleta olímpica, los músculos de una fuerzuda de feria y la destreza de una matadora profesional. Pero lo que más sorprendía era el lujo de detalles: en cada confesión, la acusada describía con precisión milimétrica ropas, gestos, escenarios, situaciones, objetos...
Alma Di Agosto era ciega.
Sus vecinos, que la conocían y la querían, estaban convencidos de que ella era culpable:
Por qué? – preguntó el abogado.
Porque lo dicen los diarios.
Pero los diarios mienten – dijo el abogado.
Es que también lo dice la radio – explicaron los vecinos. – Y la tele!

*
Ilustrações de Joba Tridente.2019


Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu-Uruguai: 03.09.1940 - 13.04.2015): jornalista e escritor uruguaio, cujas obras fundem ficção, jornalismo, política e história. Galeano foi editor do semanário Marcha, que tinha colabores ilustres como Mario Vargas Lhosa e Mario Benedetti, do diário Época, da revista Crisis. Entre os anos 1973 e 1985, viveu exilado na Argentina e na Espanha. Na trilha do seu célebre livro As Veias Abertas da América Latina (1971), seguiram obra notáveis como a trilogia (da História das Américas) Memórias do Fogo: Os Nascimentos (1982), As Caras e as Máscaras (1984) e O Século do Vento (1986); Dias e Noites de Amor e Guerra (1975), ganhador do Prêmio Casa de Las Américas de 1978; O Livro dos Abraços (1989); Mulheres (1997); Espelhos – Uma História Quase Universal (2008); Os Filhos dos Dia (2012).  Além do Casa de Las Américas, Eduardo Galeano recebeu o prêmio Aloa (Dinamarca, 1993) e American Book Award (Washington University - EUA, 1989), entre outros. Fontes: Wikipédia e Info-Escola. Para saber mais: Wikipédia: Eduardo Galeano; Carta Maior: Eduardo Galeano – O Líder dos Indignados; Revista GIZ: O adeus a Eduardo Galeano; Opera MUndi: Livros Essenciais para entender Eduardo Galeano; documentário El siglo del viento: Foro RebeldeMule Na web há farto material sobre Eduardo Galeano.

Milton Eric Nepomuceno (Rio de Janeiro-RJ: 1948) é jornalista e premiado escritor e tradutor brasileiro. Escreveu para o Jornal da Tarde, Veja e revista Crisis. Publica artigos na Revista 247 e Cult. Traduziu Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel Garcia Marques, Eduardo Galeano. Eric Nepomuceno é autor de Memórias de um setembro na praça (1979); Quarenta dólares e outras histórias (1987); Hemingway na Espanha (1991); Coisas do Mundo (1994); A palavra nunca (1997); Quarta-feira (1998); O Massacre (2008); Bangladesh, talvez e outras histórias (2018). Para saber mais: Cândido: Eric Nepomuceno - A paisagem por dentro.

sábado, 7 de setembro de 2019

Joba Tridente: Bendegó



Na fatídica noite de 2 de setembro de 2018, um incêndio gigantesco consumiu grande parte da estrutura e do acervo do Museu Nacional, instalado na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Quando as chamas se acalmaram, o que chamou a atenção de todos os aflitos, que lamentavam a perda imensurável do valioso acervo composto nos últimos 200 anos, foi a visão do resistente Meteorito do Bendegó (cuja fascinante história pode ser pesquisada na web) surgindo feito uma Fênix em meio aos escombros e à fumaça quente. A foto acima é do Acervo do Museu Nacional.

Em 12 de novembro de 2018, o fotojornalista Marcos Santilli, autor de um vasto acervo documental sobre o Brasil e o povo brasileiro, postou em sua página no Facebook, uma foto de Bendegó-BA, da série Memória de Canudos - 1978. Não resisti e, assim como me intrometi poeticamente em suas instigantes fotos, postadas em 2013 no FB e em 2015 no Falas ao Acaso (Gato 1, 2 e 3; Madeira Mamoré; Mãe Paiter Surui; Esmo; Boleia; Biguás; Menina Ururam), acabei cometendo a breve prosa poética Bendegó (12.11.2018)..., que fala de um acaso e de uma tragédia.


Bendegó - Bahia - Brasil. 1978. Fotografia de Marcos Santilli©

B E N D E G Ó
 divagação poética de Joba Tridente
sobre uma foto da cidade de Bendegó, na Bahia,
do fotógrafo Marcos Santilli

: quando o mundo era preto e branco,
um meteorito luziu no céu de Bendegó.
: a pedra alienígena quedou n’água.
: o batismo doce apagou sua brasa
e abrandou o seu sal.
: um dia a pedra desceu ao Rio de Janeiro
e Bendegó se coloriu
ao mundo natural da história.
: noutro dia o meteorito incandesceu
entre destroços da história de um museu.
: a água salobra aquietou seu pesadelo
e ele lembrou saudoso dos dias d’água doce...,
quando Bendegó ainda não era sertão.

Joba Tridente, um livre pensador livre. artesão de imagens e de palavras em Verso: 25 Poemas Experimentais (1999); Quase Hai-Kai (1997, 1998 e 2004); em Antologias: Hiperconexões: Realidade Expandida – Sangue e Titânio (2017); Hiperconexões: Realidade Expandida (2015); 101 Poetas Paranaenses (2014); Ipê Amarelo, 26 Haicais; Ce que je vois de ma fenêtre – O que eu vejo da minha janela (2014); Ebulição da Escrivatura – 13 Poetas Impossíveis (1978); em Prosa: Fragmentos da História Antropofágica e Estapafúrdia de Um Índio Polaco da Tribo dos Stankienambás (2000); Cidades Minguantes (2001); O Vazio no Olho do Dragão (2001). Contos, poemas e artigos culturais publicados em diversos veículos de comunicação: Correio Braziliense, Jornal Nicolau, Gazeta do Povo, Revista Planeta, entre outros.

Marcos Santilli é fotojornalista desde 1970 e há 38 anos desenvolve o Projeto Nharamaã, que reúne documentação áudio-fotográfica sobre as transformações humanas e ambientais na Amazônia. Santilli fotografou para diversos jornais, revistas nacionais e internacionais e foi fundador e primeiro vice-presidente da União dos Fotógrafos do Estado de São Paulo e da União dos Fotógrafos de Brasília. Coordenou diversos cursos, palestras e oficinas no Brasil, Venezuela, Estados Unidos e Canadá. É membro fundador e foi coordenador geral do Nafoto – Núcleo dos Amigos da Fotografia, entidade que promove o Mês Internacional da Fotografia e o Seminário Internacional de Fotografia. Marcos Santilli dirigiu o Museu da Imagem e do Som, de São Paulo, de 1995 a 2003. Atualmente dirige a Memória Comunicações Ltda., que desenvolve projetos culturais nas áreas de fotografia, vídeo e artes gráficas. O fotojornalista publicou: Àre (Sver e Bocato Editores, SP, 1987); Madeira-Mamoré, Imagem e Memória (Memória Comunicações Ltda., SP, 1987) e Amazon, a Young Reader’s Look at the Last Frontier (Boyds Mills Press. Honesdale, EUA, 1991). O currículo integral pode ser conferido na Wikipédia.

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