sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Saint Germain: Eu Não Era Nada

Já há algum tempo estou querendo publicar esta tradução de Pietro Castellamare para o poema Eu Não Era Nada, de Saint Germain..., que acredito ser o místico Conde de Saint Germain. Pelo menos nas primeiras dez páginas do Google, além de nomes de diferentes estabelecimentos, time de futebol, fraternidades, bairro em Paris..., o único Saint Germain que encontrei e que se aproxima do que conhecemos como ser humano é o Conde. Atualizei rapidamente a grafia do poema, excetuando a palavra “anhelito”, por desconhecer (e não encontrar) o significado. Pode ser que a grafia correta seja “angelito”, truncada na composição tipográfica, já que antigamente quem cultuava anjos era conhecido como “angelita”.


                 

Eu Não Era Nada
Saint Germain

Eu não era nada! Simples gota de orvalho,
Que a noite derramou na pétala da flor;
Mas quando o sol ergueu-se, às flores dando vida,
Torrentes espargindo de luzes e fulgor,
Então ficaram pálidas, perante a pobre gota,
A pérola e a safira, a opala e a esmeralda...
Mas, se não fosse o sol, tu sabes, minha amada,
Eu não seria nada!

Eu não era nada! Pequeno insetozinho,
Que algum caminho busca na relva do jardim,
Mas inclinou-se a rosa um dia para o solo,
No cálice oloroso, cedeu guarida a mim!
N'um leito tão mimoso tomei mimosas cores.
De escura a minha pele tornou-se azul-dourada.
Mas se não fosse a rosa, tu sabes, minha amada,
Eu não seria nada!

Eu não era nada! Brinquedo de crianças,
O globo de sabão que ao ar se eleva e cai;
Um dia tu quiseste me erguer com o sopro brando:
Subi, subi... ao céu o lindo globo vai!...
Levava no meu seio teu hálito celeste,
Deixei-o lá, que ele era essência delicada,
Mas, se não fosse o anhelito, tu sabes, minha amada,
Eu não seria nada!

Eu não era nada! Salgueiro solitário,
Vivendo sobre um túmulo, por inflexível lei,
Mas, quando a virgem hera por sobre a minha coma
Lançou seus lindos braços, com ela me abracei!
Abraços tão ardentes trouxeram vida nova
À arvore funérea, já triste e amarelada,
Mas, se não fosse a hera, tu sabes, minha amada,
Eu não seria nada!

Eu não era nada! Uma alma em triste exílio,
Errante, desolada, gemendo na aflição;
Na borda do caminho caí, já moribundo,
E tu me deste o braço, ergueste-me do chão!'
Por ti reanimado, sentindo um doce beijo,
Vivi, e a minha lira cantou mais afinada...
Mas, se não fosse o beijo, tu sabes, minha amada,
Eu não seria nada!


*
Ilustração de Joba Tridente – 2014


Conde de Saint Germain (1696 – 1784) é considerado uma das personalidades mais misteriosas do século XVIII. Há quem acredita que ele nunca existiu. Há quem acredita que ele era um ser divino de passagem pela Terra. Há quem acredita que ele era: místico, alquimista, ourives, lapidador de diamantes, cortesão, aventureiro, cientista, músico etc. É atribuída a ele a autoria de algumas peças musicais e do livro Santíssima Trinosofia. Fonte: Wikipédia:  Conde de St. Germain

Pietro de Castellamare é um dos pseudônimos do jornalista, escritor, tradutor, dramaturgo, político Joaquim Serra (1838 - 1888). Patrono da Cadeira 21, da Academia Brasileira de Letras, publicou, entre outros: Quem tem bocca vai a Roma: opera comica em um acto (1863); Julieta e Cecília (1863); Mosaico: Poesias traduzidas (1865); O Salto de Leucade (1866); Um coração de mulher: poema romance (1867), Quadros (1873). Sob os pseudônimos de Pietro de Castellamare: Versos de Pietro de Castellamare (1868); Frei Bibiano: Fabio (1871); Amigo Ausente: A capangada: paródia muito seria (1872); Ignotus: Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no Maranhão 1820-1880 (1883). Fontes: Acervo Digital Brasiliana USP - Joaquim Serra e Academia Brasileira de Letras.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Olavo Bilac: O Soldado e a Trombeta

Nos últimos 100 anos muita coisa mudou na Literatura Infantil..., inclusive o conceito de Literatura Infantil. Já postei anteriormente alguns poemas de Olavo Bilac publicados em Poesias Infantis, editado em 1904 e 1929, pela Editora Francisco Alves. Retorno com mais três. Anteontem, a diversão com O Remédio. Ontem, a melancolia na Velhice. Hoje, a reflexão com O Soldado e a Trombeta, em uma fábula de Esopo.



O Soldado e a Trombeta
Esopo, na versão de Olavo Bilac

Um velho soldado
Um dia por terra
A espada atirou;
Da guerra cansado,
Com nojo da guerra.
As armas quebrou.

Entre elas estava
Trombeta esquecida:
Era ela que no ar
Os toques soltava,
E à luta renhida
Tocava a avançar.

E disse: “Meu dono,
É justo que a espada
Tu quebres assim!
Mas que, no abandono,
Fique eu sossegada!
Não quebres a mim!

Cantei tão somente...
Não sejas ingrato
Comigo também!
Eu sou inocente:
Não piso, não mato,
Não firo a ninguém...

Nas horas da luta
Alegre ficavas,
Ouvindo o meu som.
Atende-me! escuta!
Se então me estimavas,
Agora sê bom!”

E o velho guerreiro
Lhe disse: “Maldita!
Prepara-te! sús!
Teu som zombeteiro
As gentes excita,
À guerra conduz!”

Terrível, irado,
Jogou-a por terra,
Sem dó a quebrou...
E o velho soldado,
Cansado da guerra
Por fim repousou.

*
Ilustração de Joba Tridente - 2014


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Olavo Bilac: Velhice

Nos últimos 100 anos muita coisa mudou na Literatura Infantil..., inclusive o conceito de Literatura Infantil. Já postei anteriormente alguns poemas de Olavo Bilac publicados em Poesias Infantis, editado em 1904 e 1929, pela Editora Francisco Alves. Retorno com mais três. Ontem, a diversão com O Remédio. Hoje, a melancolia na Velhice. Amanhã, a reflexão com O Soldado e a Trombeta, em uma fábula de Esopo.



Velhice
Olavo Bilac

O neto:
Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?

Por que é branco o seu cabelo?
Por que se apoia a um bordão?
Vovó, porque, como o gelo,
É tão fria a sua mão?

Por que é tão triste o seu rosto?
Tão trêmula a sua voz?
Vovó, qual é seu desgosto?
Por que não ri como nós?

A Avó:
Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer...
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!

Os anos, que vão passando,
Vão nos matando sem dó:
Só tu consegues, falando,
Dar-me alegria, tu só!

O teu sorriso, criança,
Cai sobre os martírios meus,
Como um clarão de esperança,
Como uma benção de Deus!

*
              Foto e montagem de Joba Tridente - 2014


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

domingo, 19 de outubro de 2014

Olavo Bilac: O Remédio

Nos últimos 100 anos muita coisa mudou na Literatura Infantil..., inclusive o conceito de Literatura Infantil. Já postei anteriormente alguns poemas de Olavo Bilac publicados em Poesias Infantis, editado em 1904 e 1929, pela Editora Francisco Alves. Retorno com mais três. Hoje, a diversão com O Remédio. Amanhã, a melancolia na Velhice. Depois, a reflexão com O Soldado e a Trombeta, em uma fábula de Esopo.



O remédio
Olavo Bilac

A Amelinha está doente,
Chora, tem febre, delira;
Em casa, está toda gente
Aflita, e geme, e suspira.

Chega o médico e a examina.
Tocando a fronte abrasada,
E o pulso da pequenina,
Diz alegre: “Não é nada!

Vou lhe dar uma receita.
Amanhã, o mais tardar,
Já de saúde perfeita
Há de sorrir e brincar.”

Vem o remédio. Amelinha
grita, faz manha, esperneia:
“Não quero!
O pai se avizinha,
Mostrando-lhe a colher cheia:

“Toma o remédio, querida!
Dar-te-hei como recompensa,
uma boneca vestida
De seda e rendas, imensa...”

“— Não quero!”
Chega a titia:
“Amélia é boa, não é?
Se fosse boa, teria
Toda uma arca de Noé...”

“— Não quero!”
Prometem tudo:
Livros de figuras cheios,
Um vestido de veludo,
Brinquedos, joias, passeios...

Teima Amelinha, faz manha.
E diz o pai, já com tédio:
“— Menina! você apanha,
Se não toma este remédio!”

E nada! a menina grita,
Sem querer obedecer.
Mas nisto, a mamãe aflita,
Põe-se a gemer e a chorar.

Logo Amelinha, calada,
Mansa, acolher segurando,
Sem já se queixar de nada,
Vai o remédio tomando.

“—Então? mau gosto sentiste?”
Diz o pai... E ela, apressada:
“— Para não ver mamãe triste,
Não sinto mau gosto em nada!”

*
Ilustração de Joba Tridente - 2014


Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (16.12.1865 – 28.12.1918), jornalista, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras (1896), onde ocupou a cadeira 15, cujo patrono é o poeta Gonçalves Dias. É autor de Poesias Infantis (1904 ou 1929); Teatro Infantil (?); Contos Pátrios (1904); Antologia Poética (?); Crônicas e Novelas (1894); Tarde (1919); Crítica e Fantasia (1906); Tratado de Versificação (1910); Dicionário de Rimas (1913); Ironia e Piedade (1916); Conferências Literárias (1906).

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Livro: Hiperconexões: realidade expandida

                                               
           Será 
lançado neste sábado, 18 de Outubro de 2014, no Hussardos Clube Literário (*), a partir das 15h, Hiperconexões: realidade expandida, volume 2, a primeira antologia de poemas sobre o pós-humano da literatura brasileira, com organização: Luiz Bras.

A ciência e a tecnologia contemporâneas estão ensaiando um salto qualitativo sem precedentes na história da humanidade.
Do natural para o artificial, da carne para o silício.
Do humano para o pós-humano.
A antologia Hiperconexões: realidade expandida (volumes 1 e 2) é o relato poético desse salto imprevisível envolvendo pessoas e máquinas.
No segundo volume da antologia, sessenta e cinco poetas foram convidados a antecipar, de ma­neira luminosa ou sombria, utópica ou distópica, as próximas décadas de nossa civilização.
O primeiro volume, lançado no verão de 2013, reúne trinta poetas e pode ser lido também on-line: http://issuu.com/terezayamashita/docs/hiperconexoes_realidade_expandida

O volume 2, mais encorpado, sai agora pela Editora Patuá, com apresentação do professor Ramiro Giroldo, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e posfácio do poeta e editor Victor Del Franco.
  

       Eu estou presente na edição com TRÊS ORAÇÕES DE UM COTIDIANO. A primeira Oração publiquei aqui em 2012. Leia a segunda. A terceira, por enquanto, só no livro.



ORAÇÃO DE UM COTIDIANO - II
Joba Tridente

SMART nosso que estais no TABLET santificado seja o vosso SKYPE, venha a nós o vosso TWITTER, seja feita a vossa SELFIE assim no iPHONE como na CAM; a TI nossa de cada WEB nos daí hoje, perdoai as nossas REDES SOCIAIS assim como nós perdoamos as abusadas OPERADORAS e não nos deixeis ficar sem FACEBOOK, mas livrais-nos das TEMPESTADES SOLARES. Amém!


Hiperconexões: realidade expandida - Poetas convidados: Ademir Demarchi + Adriane Garcia + Adrienne Myrtes + Alberto Bresciani + Alexandre Guarnieri + Amarildo Anzolin + Ana Peluso + André Carneiro + André Luiz Pinto + Andréa Catrópa + Bernadete Reutman + Carlos Lineu + Ciberpajé [ Edgar Franco ] + Claudio Brites + Danilo Gusmão + Dennis Radünz + Elaine Valeria + Elisa Andrade Buzzo + Eloésio Paulo + Fabiano Calixto + Fabiano Fernandes Garcez + Fábio Fernandes + Fernando Koproski + Flávio Viegas Amoreira + Fred Vieira + Gilberto Mendes + Gilmar Barros + Guilherme Scalzilli + Isaias de Faria + Ivan Hegen + Jane Sprenger Bodnar + Joba Tridente + Jussara Salazar + Luci Collin + Madô Martins + Manoel Herzog + Marcelo Ariel + Marcelo Finholdt + Marcelo Maluf + Marcelo Sousa + Márcia Barbieri + Márcio Barreto + Márcio-André + Maria Balé + Mariana Ianelli + Mariana Teixeira + Marilia Kubota + Mário Martinez + Ninil Gonçalves + Patricia Chmielewski + Renato Rezende + Reynaldo Damazio + Ricardo Miyake + Rodrigo Garcia Lopes + Rodrigo Petronio + Ronaldo Cagiano + Silvana Guimarães + Sônia Barros + Tarso de Melo + Thiago Domingues + Valerio Oliveira + Victor Del Franco + Victor Paes + Virna Teixeira + Whisner Fraga.

                                                                          *
(*) Quem não puder comparecer ao lançamento de Hiperconexões: realidade expandida, no Hussardos Clube Literário – Rua Araújo, 154, 2º andar - República, São Paulo-SP e ainda, de bônus, apreciar um pocket show do Percutindo Mundos..., pode entrar em contato com a Editora Patuá: www.editorapatua.com.br ou editorapatua@gmail.com. Telefone fixo: 11 2911-8156 e Celular: 11 9-7492-8378.  O livro de 220 páginas (14 x 21 cm): custa apenas R$ 30,00 + frete.  

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Hans Christian Andersen: A Família Feliz

Hans Christian Andersen é sempre uma redescoberta de excelência. A Família Feliz é um conto gracioso e singelo. Esta versão encontra-se na edição portuguesa Contos de Andersen - Clássicos Infantojuvenis (*). Poderia enumerar as razões para a postagem, mas, para não induzir a leitura, fico apenas com uma delas: inocência.



A FAMÍLIA FELIZ
Hans Christian Andersen

A maior folha verde que existe aqui no país é, certamente, a folha da bardana. Se alguém pequenino a puser diante da barriguinha, é como um avental perfeito e, se a puser sobre a cabeça, em tempo de chuva, é quase tão boa como um guarda-chuva, porque é tremendamente grande. Uma bardana nunca cresce só. Não! Onde nasce uma, nascem muitas, são de uma grande beleza e toda essa beleza serve de comida aos caracóis.
Os grandes caracóis brancos — que as pessoas finas, em tempos antigos, mandavam preparar de fricassé — comiam as folhas e diziam «hum!, sabe tão bem!», pois acreditavam que as bardanas tinham um gosto delicioso porque eles viviam nas suas folhas e foi para ser a sua comida que estas tinham sido semeadas.
Havia então um velho solar onde já há muito não se comiam caracóis porque estavam completamente extintos. Mas as bardanas, essas, não estavam extintas, Cresciam e cresciam sobre todos os caminhos e canteiros. Já nada podia sustê-las. Era um imenso campo de bardanas. Aqui e acolá havia uma macieira e uma ameixeira e, se não fossem elas, nunca se pensaria que havia ali um pomar. Tudo era bardanas e ali viviam os dois últimos e velhíssimos caracóis.
Nem eles próprios sabiam quão velhos eram, mas lembravam-se de que haviam sido muitos, que eram de uma família provinda de um país estrangeiro e que, para eles e para os seus, fora plantado todo o campo de bardanas. Nunca tinham estado fora dele, mas sabiam que havia algo no mundo que se chamava solar. Aí, depois de cozinhado até ficar preto era-se posto em travessas de prata, mas o que acontecia a seguir não se sabia. Não eram capazes de imaginar como seria ser-se cozinhado e posto em bandeja de prata, mas devia ser algo belo e especialmente distinto. Nenhum escaravelho, sapo ou minhoca a quem tinham perguntado, podia dar a resposta. Nunca nenhum deles fora cozinhado ou posto em travessas de prata.
Os velhos caracóis brancos eram os mais distintos do mundo. O campo de bardanas estava ali por amor a eles e o solar existia para que pudessem ser cozinhados e postos em travessas de prata. Era disso que estavam convencidos.
Viviam muito sós, mas felizes. Como não tinham filhos, adotaram um caracolzinho vulgar que educaram como se fosse o seu próprio filho. Porém, o pequeno não crescia, pois era um caracol vulgar. Aos velhos, especialmente à mãe-caracol, parecia-lhe que ele se tornava maior e pediu ao pai, que já não tinha olhos que o pudessem ver, que pelo menos apalpasse a casinha do filho. Foi o que fez e achou que a mãe tinha razão.
Num dia caiu uma grande chuvada.
— Ouve como tamborila… rumpumpum, rumpumpum, nas bardanas — disse o pai-caracol.
— Também estão a cair pingos! — afirmou a mãe-caracol. — Até escorrem pelo caule! Vais ver, vai ficar tudo encharcado! Estou contente que tenhamos as nossas boas casas e que o pequeno também tenha a sua! Em boa verdade, fez-se mais por nós do que por todos os outros seres criados. Pode assim ver-se como somos de alta estirpe no mundo! Temos casa desde o nascimento e os campos de bardanas são semeados por amor de nós! Gostaria de saber até onde este mundo se estende e o que há para além dele!
— Não há nada para além! — proferiu o pai-caracol. — Melhor do que o nosso não pode ser nenhum outro lugar, lá nada há que eu deseje!
— Sim — concordou a mãe —, mas eu gostava muito de ir ao solar, ser cozinhada e posta numa travessa de prata. Todos os nossos antepassados o foram. Acredita que há algo de distinto nisso!
— O solar está possivelmente desmoronado — disse o pai-caracol — ou as bardanas cresceram por cima dele, de modo que os seres humanos não podem sair de lá. De resto, não há pressa, mas tu andas sempre numa correria terrível e o pequeno começa a fazer o mesmo. Não subiu o caule até lá acima em três dias? Até me sinto mal da cabeça quando o vejo lá no alto!
— Não deves ralhar-lhe — aconselhou a mãe-caracol. — Ele arrasta-se com tanta compostura… temos tanto prazer nele e para outra coisa não vivemos nós, velhotes! Mas já pensaste como vamos arranjar-lhe uma esposa? Não crês que lá para longe, no campo das bardanas, haja alguém da nossa raça? — Caracóis pretos creio que há bastantes — disse o velho.
— Caracóis pretos sem casa, mas são tão vulgares e têm tanta presunção! De resto podemos encarregar disso as formigas. Passam a vida a correr para trás e para a frente, como se tivessem sempre que fazer. Sabem, com certeza, de uma boa esposa para o nosso caracolzinho!
— Sei, de verdade, da mais bonita de todas! — disse uma das formigas. — Mas receio que não dê resultado porque é rainha.
— E que tem isso! — redarguiram os velhos.
— Ela tem casa? — Tem um palácio! — responderam as formigas. — O mais belo palácio de formiga com setecentas entradas.
— Obrigada — disse a mãe-caracol. — O nosso filho não vai entrar num formigueiro! Se não sabem de coisa melhor, vamos pedir aos mosquitos brancos. Voam à roda à chuva e ao Sol, conhecem o campo de bardanas por dentro e por fora.
— Temos uma esposa para ele! — informaram os mosquitos. A uns cem passos de homem há, num groselheiro, uma menina-caracol com casa, que está completamente só e com idade para se casar.
— Sim, ela que venha ter com ele! — disseram os velhos. — Ele tem um campo de bardanas, ela tem só um groselheiro!
E assim mandaram buscar a menina-caracol. Levou oito dias a chegar, mas foi muito apreciada, pois podia ver-se que era de raça.
Realizaram-se então as bodas. Seis pirilampos luziram o melhor que puderam; para além disso, tudo se passou calmamente, pois os caracóis velhos não podem suportar alvoroços e manifestações ruidosas. A mãe-caracol, contudo, fez um belo discurso. O pai, comovido, não conseguiu. Ambos deram aos noivos, em herança, todo o campo de bardanas e disseram o que sempre tinham dito: os campos de bardanas eram o melhor do mundo e se eles vivessem honesta e honradamente e se se multiplicassem, um dia todos haveriam de entrar no solar para serem cozinhados até ficarem pretos e serem postos em travessas de prata.
E depois do discurso feito, os velhos arrastaram-se para dentro das suas casas e nunca mais saíram; ficaram a dormir. O jovem casal de caracóis reinou no campo de bardanas e teve uma grande prole, mas nunca foram cozinhados e nunca foram postos em travessas de prata, pelo que concluíram que o solar se havia desmoronado e que todos os seres humanos estavam extintos. Como ninguém lhes dizia nada em contrário, era essa, portanto, a verdade.
E a chuva batia nas folhas de bardana para fazer música de tambores por amor deles, e o Sol brilhava para dar colorido ao campo de bardanas por amor a eles, e eram muito felizes, e toda a família era feliz.
Porque o era.

*
Ilustração de Joba Tridente


Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas Collin. Entre outras obras, publicou: O Improvisador (1835), Nada como um menestrel  (1837), Livro de Imagens sem Imagens  (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847). Ganhou renome com os contos (Histórias e Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há farto material na web sobre o grande mestre.


(*) Contos de Andersen – Coleção Clássicos Infantojuvenis. Edição do Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro, disponibilizada pela DGARQ (Direção-Geral de Arquivos – Secretaria de Estado da Cultura – Governo de Portugal).

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