quinta-feira, 24 de julho de 2014

Joba Tridente: hiato


hiato.
Joba Tridente

amor. tão perto nunca foi tão longe.
ódio. tão longe nunca foi tão perto.

*
JT - 2014










terça-feira, 22 de julho de 2014

Joba Tridente: sahleba

Recentemente ouvi falar do misterioso e preocupante desaparecimento de abelhas, inclusive no Brasil. Em 14 de dezembro de 2013, li o comovente Abelhezas, de Vera Catalão. Respondi ao seu poema com abelhas. Conclui o seu manifesto com sahleba.

sahleba
Joba Tridente

recolher
as abelhas perdidas

recolher
para que a flor
não seque no galho
imersa no próprio pólen

recolher
para que a flor
no galho siga o ciclo
e bendiga os frutos
e bendiga os toques
das abelhas
...................
vá, abelhas
sahleba, àv

*
JT: poema: 15.07.2-14
e fotomontagem: 22.07.2014

Joba Tridente: abelhas

Recentemente ouvi falar do misterioso e preocupante desaparecimento de abelhas, inclusive no Brasil. Em 14 de dezembro de 2013, li o comovente Abelhezas, de Vera Catalão. Respondi ao seu poema com abelhas. Conclui o seu manifesto com sahleba.



abelhas
Joba Tridente
para Vera Catalão


olhaasabelhas
olhasabelhasemcampondepousar
olhaasabelhasemcampondepolinizar
......................
olhasabelhas
olhasabelhasemcampo
olhasabelhas
......................

olhouenãouviu
asabelhasemanhã


*
JT - poema: 14.12.2013
e ilustração: 22.07.2014

Vera Catalão: Abelhezas

Recentemente ouvi falar do misterioso e preocupante desaparecimento de abelhas, inclusive no Brasil. Em 14 de dezembro de 2013, li o comovente Abelhezas, de Vera Catalão. Respondi ao seu poema com abelhas. Conclui o seu manifesto com sahleba.



Abelhezas
Vera Catalão

Salvem as abelhas ágeis mensageiras do código da Vida

Salvem as abelhas e o seu zumbido em volta de nós

Salvem as abelhas todas das Américas,  Europa, África, Ásia, Brasil

Salvem as abelhas, confiantes, sem ferrão
habitantes primevas do nosso Sertão.

Salvem as abelhas que se recusam a laborar
em campos  minados que fazem abortar
alimentos, floradas,   frutos, pássaros, gente e lugar

Salvem as abelhas da nossa insensatez – sanha de morte e ruptura
Para que a chama não se apague assim prematura
como morte anunciada do festim da alegria e da fartura.

Chamemos as abelhas com juras de amor
Chamemos o fluxo e sabor de água boa
Chamemos o solo fecundo que nutre e sustenta
Chamemos pelo nome certo inscrito dentro de nós
Chamemos 2014 na sintonia fina de ondas da vida.

Voltem as abelhezas.


*
foto de Joba Tridente: 2011

Vera Catalão é doutora em Educação Ambiental e tem práticas e pesquisas nos estudos da água como matriz eco-pedagógica. Atualmente integra o grupo conceitual que projeta o futuro Museu da Educação de Brasília, onde reside.

domingo, 13 de julho de 2014

Joba Tridente: GOLeiro

A Copa do Mundo no Brasil, em 2014, despertou o meu interesse em escrever algumas crônicas leigas sobre futebol. GOLeiro era para ser a primeira. Acabei me ocupando com um trabalho esportivo mais articulado. Sem tempo, comecei com dois poemas experimentais: Goool 1 (!) e Goool 2 (Grito). Depois, ensaiei com VAIA e O Brasil Chora?. Agora já era. Para não ficar apenas na memória do PC, resolvi postar apenas para cumprir tabela!



GOLeiro
Joba Tridente

Entendo nada de futebol. Nada! Por causa do gol. Do gol nas peladas de rua. Maldito gol! Goleiro nem jogador é. Sabe chutar, mas não é jogador. Sabe bater pênalti, mas não é jogador. Tem muito jogador que também não é jogador de tão mal que joga. Tem! Mas nem por isso é mandado pro gol. Malditas traves. Malditas latinhas. Malditas pedras. Malditas boladas. Malditos vizinhos donos da bola.

Entendo nada de futebol. Torcer assim é complicado. Sempre inventam novas regras. A do tal adiantamento da bola, quem entende? Ou será adiantamento do jogador? Sei quando é tiro de meta, por causa do triângulo na ponta do campo com aquela bandeirinha quadriculada para atrapalhar o chute. Mas não sei o que quer dizer “meta”. Presumo que “tiro” seja chute. Gostaria de saber o porquê da bandeirinha quadriculada naquele lugar impróprio. Escanteio, falta, pênalti..., tenho vaga ideia. Sei quanto é marcado gol, no entanto. O contra ainda tenho dúvidas. Bola no segundo pau? Nem me pergunte. É alguma mandinga para tirar o goleiro de ação?

Entendo nada de futebol. Por entender nada, fico de olho no uniforme dos times. Torço para os mais harmoniosos. Pode não ser ético, mas favorece o estético. Imagino o gramado como uma tela verde e os jogadores misturando suas cores corridas, feito pinceladas de Van Gogh. O goleiro me parece um respingo de tinta que não se mistura. Um goleiro só vira tela na hora da penalidade máxima. Aí, então, uma pintura cubista. Eu até gosto de pintura cubista. Mas odeio o gol.


P.S.: O gol bonito do menino Mario Götze, feito uma pintura de Albrecht Dürer, na grande final entre Alemanha (1) e Argentina (0),  só reafirma que goleiro só “ganha” jogo numa decisão por pênaltis. Fora isso, quem ganha jogo é jogador.

*
TJ: crônica e ilustração 2014

sábado, 12 de julho de 2014

Pablo Neruda: A Grande Alegria

Pablo Neruda nasceu há 110 anos e morreu há 41. Em sua homenagem, o belíssimo A Grande Alegria, do Canto XV - Eu Sou, publicado no livro Canto Geral, em tradução de Paulo Mendes Campos para a edição brasileira do Círculo do Livro..., e em espanhol.


                    
    
XX
A Grande Alegria

A sombra que indaguei já não me pertence.
Eu tenho a alegria duradoura do mastro,
a herança dos bosques, o vento do caminho
e um dia decidido sob a luz terrestre.

Não escrevo para que outros livros me aprisionem,
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para singelos habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.

Escrevo para o povo ainda que ele não possa
ler a minha poesia com seus olhos rurais.
Virá o instante em que uma linha, a aragem
que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,
então o labrego levantará os olhos,
o mineiro sorrirá quebrando pedras,
o caldeireiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
do aroma do sabão, olhará meus poemas,
e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.

Isso é bastante, essa é a coroa que quero.

Quero que à saída da fábrica e das minas
esteja a minha poesia aderida à terra,
ao ar, à vitória do homem maltratado.
Quero que um jovem ache na dureza
que construí, com lentidão e com metais,
como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,
e afundando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, na altura tempestuosa.












XX
La Gran Alegría

La sombra que indagué ya no me pertenece.
Yo tengo la alegría duradera del mástil,
la herencia de los bosques, el viento del camino
y un día decidido bajo la luz terrestre.
No escribo para que otros libros me aprisionen
ni para encarnizados aprendices de lirio,
sino para sencillos habitantes que piden
agua y luna, elementos del orden inmutable,
escuelas, pan y vino, guitarras y herramientas.

 Escribo para el pueblo aunque no pueda
 leer mi poesía con sus ovos rurales.
 Vendrá el instante en que una línea, el aire
 que removió mi vida, llegará a sus orejas,
 y entonces el labriego levantará los ojos,
 el minero sonreirá rompiendo piedras,
 el palanquero se limpiará la frente,
 el pescador verá mejor el brillo
 de un pez que palpitando le quemará las manos,
 el mecánico, limpio, recién lavado, lleno
 de aroma de jabón mirará mis poemas,
 y ellos dirán tal vez: «Fue un camarada.»

 Eso es bastante, ésa es la corona que quiero.

Quiero que a la salida de fábricas y minas
esté mi poesía adherida a la tierra,al aire,
a la victoria del hombre maltratado.
Quiero que un joven halle en la dureza
que construí, con lentitud y con metales,
como una caja, abriéndola, cara a cara, la vida,
y hundiendo el alma toque las ráfagas que hicieron
mi alegría, en la altura tempestuosa.

*
ilustração de Joba Tridente - 2014

Pablo Neruda (Parral, 12.07.1904  - Santiago, 23.09.1973). O mais importante escritor chileno nasceu Neftalí Ricardo Reyes Basoalto. O pseudônimo e posteriormente seu nome legal foi adotado na adolescência, em homenagem ao escritor tcheco Jan Neruda. Seus primeiros poemas foram publicados no jornal A Manhã, de Temuco. Neruda estudou pedagogia e iniciou na carreira diplomática em 1927. Publicou Crepuculário em 1923 e Vinte poemas de amor e uma canção desesperada em 1924. Da sua vasta obra destacam-se também: Canto Geral (1950); Cem Sonetos de Amor (1959) e o póstumo Confesso Que Vivi (1974).

Paulo Mendes Campos (1922 – 1991), escritor, tradutor, jornalista e cronista de Correio da Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Manchete. Entre outros, traduziu Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Shakespeare, Pablo Neruda. Seu primeiro livro de poesia, A Palavra Escrita, foi lançado em 1951 e o primeiro de crônicas, O Cego de Ipanema, em 1960. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Joba Tridente: O Brasil Chora?

O BRASIL CHORA?
Joba Tridente

I
Ontem, após o jogo da Copa (das Copas) do Mundo da FIFA, um indignado narrador, que também apresenta um telejornal numa das duas emissoras que monopolizam o esporte no “país do futebol”, falava da tristeza, do choro de 200 milhões de brasileiros com a derrota da seleção brasileira (1) de futebol para a seleção alemã (7). Ele não podia acreditar na humilhante falha da estatística que os arrogantes narradores, comentadores e congêneres, no alto da sua prepotência, vociferam segundo a segundo, durante uma partida, sobre o resultado de jogos passados, até em décadas anteriores, na previsão de resultado futuro. Desde quando estatística ganha jogo?

II
Como assim, o Brasil que tem o time dos sonhos de todos os países do mundo (!), perdeu para Alemanha (choramingam os milhões de torcedores), se bem antes dos primeiros jogos a única preocupação desses apresentadores e jogadores e equipe técnica era saber apenas com qual time o Brasil (dos sonhos!) iria jogar a final? Teriam eles, mais os 200 milhões (!?) de chorões brasileiros, sido enganados pela publicidade esportiva e ou patrocinadora e ou nacionalista? Foram todos “inocentemente” manipulados pela mídia publicitária e televisiva brasileira para acreditar que o “time dos pesadelos” era o mais que desejado “time dos sonhos”? Então a Copa não foi comprada? Que pegadinha mafiosa!

III
Entendo quase nada de futebol e se vejo algum fragmento do jogo, tiro o som da tv, só para não ouvir idiotices que vão se alternando durante os lances. A imbecilidade dos jogadores muda para genialidade dos jogadores em questão de segundo. Aliás, no esporte, tudo é uma questão de segundo, inclusive o lugar. Me incomoda o menosprezo do “time da casa” por qualquer outro time (com ou sem estatística de vitória) que não tenha tradição no futebol. Me incomoda o salto alto agulha que, quebrado, pode ferir o próprio pé. Me incomoda o time do eu sozinho que “se acha” acima de qualquer treino. Me incomoda..., mas como disse, entendo quase nada de futebol. Sei, entretanto, que ganhar e perder ou até empatar..., faz parte do jogo. As lotéricas que o digam!

IV
O brasileiro riu (com gosto e alívio) de outras seleções “potencialmente” competitivas que foram “precocemente” derrotadas por seleções que se (a)creditava apenas bola murcha ou pernas-de-pau na roda de bobos na arena dos grandes. Ora, na caixinha de surpresas do futebol de hoje não existe mais bobo de ontem. Mas ainda há muita surpresa! Os enfurecidos entendidos em futebol falaram pateticamente dos seis anos de treinamento da seleção alemã como se treinar fosse um crime. Acham que se a seleção (time dos sonhos) brasileira não treinou, as outras deviam seguir o (luxuoso) exemplo..., assim ficavam todas em chuteira de igualdade. Mas, espera, hoje em dia tem jogador que joga até com uma chuteira de cada cor. Acho que desviei geral...

V

Vitória para o “povo sofrido” (argh!) que não pode ir ao estádio cantar, à flor da pele, o “ouvirudum”? Sonho roubado!, falou um apresentador televisivo, hoje. Roubado por quem? Não foi um jogo legal da competência alemã contra a incompetência brasileira? Ara, Copa é quem nem eleição, a cada quatro anos ela está de volta..., e a euforia também logo passa, com a vitória e ou a derrota do candidato dos sonhos. Se o time (ou candidato) nunca convenceu e pouco ou nada treinou (fez), por que o chororô? Troca o time..., ou o candidato!

*
JT: crônica e ilustração - 2014

domingo, 6 de julho de 2014

Joba Tridente: COPAlegado


COPAlegado
de Joba Tridente

I
na reta
a final a
copa acopla a cozinha
prenuncia eleições
horários de promessas
vãs promessas nunca
cumpridas vãs
promessas compridas
vão nos reclames
prometer nos
reclames induzir
o voto de esperanças vãs
cozidas em fogo brando
...........................................
a memória afogada
na receita velha
de curral


II
na reta
afinal a
copa acopla a área
acumula desserviços
o coletor das sobras
do circo
o vaiado
do brioche
o cevado
do pão
o sovado
amanhã no lixo
.......................................
feito quarta-feira
cinza


III
na reta
o final da festa
de raça da raça
na memória
o que fica falha
o que falha fala
o que fala fica
.......................................
legado da copa
alegado
da copa relegado


IV
no final é
o que finca nó
..., cidadão!


*
JT: poema e ilustração - 2014 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Machado de Assis: O Espelho

Nas minhas considerações sobre o filme de terror O Espelho, que estreia nesta semana, cito o conto fantástico O Espelho, de Machado de Assis, publicado no livro Papéis Avulsos, em 1882. Para quem ainda não o conhece, eis a obra que, por vezes, apavora mais que o filme.

O ESPELHO
Esboço de uma nova teoria da alma humana

Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma
exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

- Não.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas
em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse.

- Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever! - For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.
Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...

- Diga.

- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

Ilustração de Joba Tridente 

Joaquim Maria Machado de Assis (RJ, 1839-1908), escritor, dramaturgo, jornalista, crítico literário, cofundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, onde se encontra farto material biográfico sobre o autor.

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