terça-feira, 13 de abril de 2010

Joba Tridente: O Pirulito Que Bate, Bate?


O Pirulito Que Bate, Bate?

o lado chulo da cantiga de roda

Já faz algum tempo que circula por aí (inclusive na Internet) um movimento (tolice?) de profissionais diversos querendo mudar as letras de todas as Cantigas de Roda contrárias à moral animal, humana, vegetal etc (com versos que incitam a violência, o medo, o racismo). Para quem busca um tema qualquer (pra defender) em troca de um valioso título de mestre ou de doutor..., aqui vai um que é um prato cheio de duplo sentido: Origem da (hoje) Cantiga de Roda Pirulito Que Bate, Bate.

Há cerca de três anos, pesquisando arquivos literários no Projeto Gutemberg, encontrei uma pérola raríssima: Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir, de autor anônimo, publicado em 1862. Este material, postado por Pedro Saborano, que também colabora com a Biblioteca Digital Camões, é um daqueles achados que faz a gente confirmar que um bom texto é atemporal. Desde então acelerei minhas buscas na rede e fora dela, atrás de outras fontes que enriquecem ainda mais o achado. Li muita coisa estranha e outras nem tanto.

O Álbum Chulo-Gaiato é um volume recheado de prosa e verso sarcásticos, irônicos, safados, metafóricos, eróticos, românticos, pornográficos, chulos ao extremo e divertidíssimos do primeiro ao último parágrafo ou verso. Uma Colleção de Receitas Para Fazer Rir, inacreditavelmente atual, 147 anos depois da sua publicação, e tão boa que poderia até mesmo ser um texto perdido de Gregório de Matos (1623-1696) ou de Bocage (1765-1805).

Entre tantas Receitas me chamou a atenção uma informação meio que perdida entre parágrafos, mas uma verdadeira bomba: o possível significado da “nossa” Cantiga de Roda Pirulito Que Bate, Bate. Todos conhecem a inocente cantiga que embala o bebê e acompanha a criança da creche ao fundamental: Pirulito, que bate, bate. Pirulito que já bateu. Quem gosta de mim é ela. Quem gosta dela sou eu. Mas, quem conhece a canção original?


É claro que a Cantiga de Roda conhecida como Pirulito (ou Pirolito), assim como tantas outras (que o diga a polêmica: Atirei o pau no gato) tem lá seus acréscimos Brasil afora e adentro. Como esta, apresentada no Livro do Aluno - v.1 - Projeto Nordeste - Fundescola -Secretaria de Ensino Fundamental - 2000: Pirulito que bate, bate/ Pirulito que já bateu/ Quem gosta de mim é ela/ Quem gosta dela sou eu./ Ora palma, palma, palma/ Ora pé, pé, pé/ Ora roda, roda, roda/ Caranguejo peixe é./ Pirulito que bate, bate/ Pirulito que já bateu/ Que importa a você que eu bata/ Se eu bato no que é meu.

Ou esta versão de marcha de carnaval composta em 1939 por João de Barro, o Braguinha (1907-2006), com Alberto Ribeiro (1902-1971) e gravada por Nilton Paz (1919): Ioiô dá o braço pra Iaiá/ Iaiá dá o braço pra Ioiô/ O tempo de criança já passou, ô!/ Pirulito que bate bate/ Pirulito que já bateu/ Quem gosta de mim é ela/ Quem gosta dela sou eu, hei!/ Agora é melhor/ A gente dançar/ Juntinhos assim/ Se tem mais prazer/ Quem não dança o Pi...ru...lito/ Que alegria pode ter? Na verdade, a popular cantiga (da infância de Braguinha) aparece aqui mais como uma citação oportuna dentro da marcha. João de Barro compôs a marcha e não a cantiga Pirulito.

Ou ainda esta, publicada na Revista Fatebinho para Crianças – Ano II – nº 2 – outubro de 2006 – da Fateb - Faculdade de Telêmaco Borba, informando apenas que “A música ‘Pirulito que bate, bate’ é de origem africana, mas muitos não sabem disso.” Pirulito: Pirulito que bate, bate/ Pirulito que já bateu/ Quem gosta de mim é ela/ Quem gosta dela sou eu./ Pirulito que bate, bate/ Pirulito que já bateu/ A menina que eu amava/ Coitadinha já morreu.

Em Breves Apontamentos Sobre as Formas Musicais Existentes em Cabo Verde, a escritora Margarida Brito diz que: "(...) Outro género cultivado em Cabo Verde com tendência para o esquecimento, diz respeito à geração infantil. Aqui encontramos as Cantigas de Roda e as Lenga-Lengas cantadas, ou em forma de jogos rítmicos, com percussão corporal. Quem não se lembra das lenga-lengas "Una duna trina catarina barimbau são dez..." ou de "Doll in dol fatatitiná..." ou ainda da cantiga de roda "A vida do marujinho" dramatizada por tantas crianças, e muitas outras mais, que as deleitavam nas noites de luar em que a televisão não fazia parte das suas vidas, nas ilhas? É verdade que muitos podem dizer, e têm dito, que elas não nos pertencem, porque são portuguesas e/ou de outra cultura. Porém acabaram por se tornar numa "coisa nossa". Foram adoptadas pelos nossos tetravós e bisavós e muitas delas foram recriadas como é o caso de "pirolito qui bate qui bate" à qual se acrescenta uma estrofe em crioulo.


Como se vê, procurando a gente encontra versões para todos os gostos. Mas, voltando ao Pirulito (ou Pirolito) que interessa, o que me chamou a atenção foi saber que a inocente (até então para mim) Cantiga de Roda não é tão inocente assim. Ou pelo menos não era, no século XIX, lá em Portugal (?), para o autor de Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir. Basta ler o que é dito (com a grafia original) em um trecho da hilária Pratica feita á missa do dia pelo muito reverendo prior de...:

(...) “Aqui não ha senão desordem e immoralidade. Immoralidade nos velhos, immoralidade nos moços, immoralidade nos grandes, immoralidade nos pequenos.
Digo immoralidade nos velhos, porque esses velhos, raça damnada de Caim, depois de haverem passado toda a vida... em patuscadas e pandigas, ainda mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se vão metter em logares suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes acabarão as furias carnaes e burriçaes?

Immoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas andam por essas ruas aos beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e immoraes; ainda eu hontem ouvi a filha do Thomaz da Horta e o filho do Ignacio do Dente a cantarem o Pirolito que bate que bate! Ora não ha maior pouca vergonha, uns fedelhos que ainda cheiram a coeiros e já sabem o que isto quer dizer!


Immoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas mocetonas que vão todos os dias para o matto, sob pretexto de que vão buscar lenha, e por fim fazem por lá couzas do arco da velha... Lenha no forno queriam ellas, malditas!

E quando vão aos figos! O que acontece?”


Será que este Pirolito que bate bate de 1862 é outro? Ou será que é uma versão mais sacana deste Pirolito – Cantiga das Ruas, publicado em 1893 no livro Cancioneiro de Musicas Populares, recolhidas (e escrupulosamente trasladada para canto e piano) por César A. das Neves e com prefácio do Dr. Theophilo Braga? Na partitura da cantiga há uma dedicatória: À Ex.ma Snr.a D. Maria Portella Sobral. No rodapé da página uma informação: Foi esta uma das musicas com que o Visconde de Castilho fez cantar, nas escolas primárias em 1850, o seu methodo repentino de leitura.

Esta é a versão mais antiga que encontrei: Tu dizes que não, que não,/ Inda has de vir a querer;/ Tanto dá a água na pedra/ Que a faz amollecer./ Pirolito que bate bate. Pirolito que já bateu;/ Quem gosta de mim é ella,/ Quem gosta d’ella sou eu./ Meu amor, quem cala vence,/ Mais vence que não diz nada;/ Em certa occasiões,/ Mais vale bocca calada./ Quem de mim te poz tão longe,/ não teve boa eleição;/ Quanto mais longe da vista,/ Mais perto do coração./ Muito padece quem ama,/ Mais padece quem adora, Mais padece quem não vê/ O seu amor a toda hora. / Eu hei de te amar, amar,/ Hei de te querer, querer;/ Hei de te tirar de casa/ Sem seu pae, nem mae saber.

Vou continuar pesquisando.
Talvez encontre uma versão em mandarim.

Joba Tridente - março de 2009
Ilustrações: fac-símiles de Cancioneiro e dings: WasWoodcuts, Little People

4 comentários:

  1. Muito interessante sua pesquisa. Estou diretor de um pequena escola pública no estado de Sergipe e, como se sabe, próxima semana comemoraremos a Semana do Folclore. Um dos temas de uma das turmas é santigas de roda. A professora de referida turma me solicitou uma pesquisa sobre a origem de algumas delas, dentre as quais a do Pirulito que Bate-bate. Fico-lhe muito grato e saiba que sua pesquisa foi e é de grande valia mesmo nos lugares mais remotos deste país-continente.

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  2. ..., olá, Richardson, gratíssimo pela visita.
    Fico contente que este artigo (quase crônica) tenha-lhe sido útil.
    Você pode encontrar, gratuitamente disponibilizados,
    os dois livros citados no Portal Projeto Gutemberg.

    Sugiro que assista, junto com professores e alunos, o excelente documentário Somos Todos Sacys:"A Confraria Produções apresenta o documentário que mostra a vida, paixão e morte do mito na tradição oral e suas re-significações nos dias atuais. Sendo este mito a alegoria de nossa cultura antropofágica, a relevância para o debate em torno do Sacy se faz pela motivação de pensar e redescobrir o Brasil."

    Eis o link: http://vimeo.com/11609651

    Abração!

    T+

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  3. Uma pérola da cultura brasileira esses achados/pesquisas! Valeu Joba!

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    Respostas
    1. ..., olá, Cabeto Rocker,
      as origens me fascinam!
      ..., espero hora dessas continuar a pesquisa!

      grande abraço.

      T+

      Joba

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