Dia desses, após a (re)leitura de Nefertiti, e os Mistérios Sagrados do Egito (1964), da escritora brasileira Chiang Sing (1924-2002), comecei a ler O Egípcio (1945), do escritor finlandês Mika Walkari (1908-1979). O Egípcio é um livro curioso e perturbador, profundamente crítico aos sistemas religiosos e políticos. Narra a saga de Sinuhe, médico do Faraó Akhenaton, em viagem pelo mundo antigo, buscando conhecimento medicinal, fortuna e oportunidade para exercer a profissão. Embora alguns diálogos tenham me parecido racistas, o que me chamou a atenção é a forma universal como Walkari trata da formação escolar de Sinuhe. Nas páginas iniciais da edição brasileira de 1985, publicada pela Editora Itatiaia, com tradução de José Geraldo Vieira, encontrei verdadeiras pérolas sobre educação escolar. Pela importância dos textos, que espero ser um incentivo à leitura do romance, selecionei sete belíssimos trechos:
(...) 3
Meu professor era o velho sacerdote Oneh que morava perto de nós e que dava aulas na sua varanda derrocada. Seus alunos eram filhos de artesões, mercadores, capatazes de docas e oficiais não comissionados cuja ambição se restringia a abrir uma carreira de escriba para os filhos. Oneh fora servente do Celestial MT do templo e era, por conseguinte bem capacitado para dar lições elementares de escrita a crianças que mais tarde teriam a seu cargo lojas de mercadorias, depósitos de cereais, cabeças de gado ou provisões para o exército. Havia centenas de escolinhas assim na grande idade de Tebas. A instrução não era cara; os alunos tinham apenas que sustentar o professor. O filho do vendedor de carvão se encarregava de lhe encher sempre o braseiro durante o inverno; o filho do tecelão fornecia-lhe tecidos; o filho do merceeiro não deixava que lhe faltassem cereais, e meu pai lhe tratava as muitas dores e pontadas e lhe dava ervas sedativas a serem tomadas com o vinho.
Dependendo tanto de nós, Oneh tinha por força que ser um inefável professor. Um garoto que adormecesse em cima da sua lousa jamais sofria puxões de orelhas; bastava que na manhã seguinte lhe trouxesse uma gulodice. As vezes o filho do cerealeiro trazia uma botija com cerveja. Em dias assim prestávamos atenção porque o velho Oneh ficava inspirado e nos contava estranhas histórias do outro mundo: da Celestial Mut, do Criador, de Ptah e de sexos de seus companheiros.
Ríamos, pensando que o havíamos distraído das nossas tarefas difíceis, principalmente de termos que escrever caracteres enfadonhos pelo resto do dia; foi bem mais tarde que averiguei que o velho Oneh era um professor bem mais sábio do que cuidávamos. Havia um propósito naquela sua mania de contar lendas a que a sua mente piedosa, ingênua, sabia dar vida. Através delas ficávamos sabendo as tradições do antigo Egito. Nelas nenhuma ação má ficava sem castigo. Cada coração humano era pesado ininterruptamente diante do alto trono de Osiris. Cada mortal cujas ações más fossem desvendadas sobre as balanças do deus de cabeça de Chacal era arremessado ao Devorador que era uma fusão de crocodilo e hipopótamo, mais aterrorizante do que qualquer deles isoladamente.
Falava também do sinistro Olho Voltado, o terrível barqueiro sem cuja ajuda ninguém conseguia chegar aos campos dos bem-aventurados; quando remava ia voltado para a popa, nunca para a proa como os barqueiros humanos do Nilo. Oneh nos fazia repetir de cor as frases que nos pudessem ser vantajosas e propícias. Ensinava-nos a copiá-las e a, em seguida, escreve-las de cor, corrigindo nossos erros com a gentil advertência de que o menor engano nos destruiria todos os ensejos de uma vida feliz no futuro.
Se acaso entregássemos ao Olho Voltado uma carta contendo um erro mesmo trivial seríamos forçados a vagar como sombras por toda a eternidade pelas margens daquelas águas sombrias; ou, pior ainda, nos engolfaríamos nos medonhos abismos dos reinos da morte.
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