domingo, 28 de agosto de 2011

Joba Tridente: A Literatura e a Educação - 3


Dia desses, após a (re)leitura de Nefertiti, e os Mistérios Sagrados do Egito (1964), da escritora brasileira Chiang Sing (1924-2002), comecei a ler O Egípcio (1945), do escritor finlandês Mika Walkari (1908-1979). O Egípcio é um livro curioso e perturbador, profundamente crítico aos sistemas religiosos e políticos. Narra a saga de Sinuhe, médico do Faraó Akhenaton, em viagem pelo mundo antigo, buscando conhecimento medicinal, fortuna e oportunidade para exercer a profissão. Embora alguns diálogos tenham me parecido racistas, o que me chamou a atenção é a forma universal como Walkari trata da formação escolar de Sinuhe. Nas páginas iniciais da edição brasileira de 1985, publicada pela Editora Itatiaia, com tradução de José Geraldo Vieira, encontrei verdadeiras pérolas sobre educação escolar. Pela importância dos textos, que espero ser um incentivo à leitura do romance, selecionei sete belíssimos trechos:

(...) 4
Frequentei a escola de Oneh durante alguns anos. O meu melhor amigo era Thothmes que era um ano e pouco mais velho do que eu e que desde criançola aprendera a lutar e a domar cavalos. Seu pai comandava um esquadrão de carros de guerra e manejava um chicote trançado com fio de cobre; confiava em que o filho chegasse a ser um dia um oficial superior e por tal motivo desejava que ele aprendesse a ler. Mas não havia nada profético quanto ao nome depois ilustre de Thothmes, não obstante as ambições paternas, pois assim que o rapaz começou a frequentar a escola deixou de se incomodar com o arremesso de dardos e a condução de carros. Aprendeu os caracteres com muita facilidade e enquanto os demais alunos lutavam em comum, ele desenhava cenas na sua lousa; cenas de carros, de cavalos empinados, de soldado sem luta. Trazia argila para a escola e enquanto o suco levedado contava histórias pela boca de Oneh, ele modelava uma imagenzinha cômica do Devorador despedaçando com rudes mandíbulas um velhote calvo cujo dorso curvo e cujo ventre de tonel não podiam pertencer a ninguém senão a Oneh. Este, porém, não se zangava. Ninguém podia se zangar com Thothmes. Tinha um rosto largo e curto, pernas grossas de lavrador, mas os olhos possuíam um brilho jubiloso que empolgava e os pássaros e animais formados de argila por suas mãos habilidosas, nos deliciavam. Tomei-me de amizade por ele, inicialmente, por causa do seu feitio marcial; mas a amizade persistiu depois que cessou de mostrar quaisquer traços de ambição guerreira.

(...) 5
Aconteceu um prodígio durante a minha temporada escolar e aconteceu tão repentinamente que ainda considero tal hora como uma hora de revelação. Foi num bonito dia de amena primavera, quando o ar estava repleto de cantos de pássaros e as cegonhas recompunham seus velhos ninhos nos telhados dos casebres de barro. As águas haviam descido e novos rebentos verdes emergiam do chão. Em todos os jardins que tinham recebido sementes plantas brotavam. Era um dia que convidava à aventura, e era impossível permanecermos sentados quietos na velha varanda raquítica de Oneh onde os tijolos se desmantelavam ao menor contato. Eu estava riscando um desses símbolos perpétuos, letras a serem cortadas em pedra e traçando ao lado deles os sinais abreviados usados para serem escritos em cima de papel, quando de repente certa palavra esquecida de Oneh, determinado fulgor estranho dentro de mim, falou e deu vida àqueles caracteres.
Os desenhos se tornaram uma palavra, a palavra uma sílaba e a sílaba uma letra. Quando juntei desenhos a desenhos novas palavras irromperam - palavras vivas, inteiramente distintas dos símbolos. Qualquer rústico pode compreender um desenho; mas dois juntos só tem sentido para o literato. Creio que quem quer que haja aprendido a escrever e a ler sabe que é que estou querendo dizer. Para mim tal experiência se tornou mais fascinante do que arrebatar uma romã do cesto de um vendedor de frutas; mais doce do que uma tâmara seca; tão deliciosa como para o sedento um bom gole d'água.
De então em diante não precisei mais de instigação, mas me embebi nos ensinamentos de Oneh como a terra seca se embebe com o extravasar das águas do Nilo e depressa aprendi a escrever. Não tardou que começasse a ler o que os outros tinham escrito, e no terceiro ano de aula eu já sabia soletrar sozinho trechos de rolos esfarrapados, ler alto para os outros cabulas instrutivas e escreve-las.

 (...) 6
Então Thothmes e eu fomos apanhar as nossas lousas de escrita. O real cirurgião de crânios, olhando abstratamente para os ramos mais altos do sicomoro, ditou um pequeno poema de que ainda me lembro. Dizia assim:
Rejubila-te enquanto és jovem
Pois a velhice engole cinzas  
E qualquer corpo embalsamado  
Não ri na escuridão da tumba.
Tratei de caprichar, escrevendo primeiro em sinais comuns e depois em desenhos. Por fim escrevi as palavras "velhice”, "corpo" e "tumba" de todas as maneiras em que podiam ser escritas com referencia a sílabas e letras. Mostrei-lhe a minha lousa. Não achou nenhum erro e notei que meu pai se sentiu orgulhoso de mim.

(...) 7
Todavia eu era cego e surdo, e assim permaneci, até ao dia em que despertei deveras tal qual sucedera na infância quando desenhos, palavras e letras se transformaram irrompendo em vida. Mais uma vez os meus olhos se abriram e acordei como se emergisse de um sonho; o meu espírito se inundou de alegria porque perguntava a mim mesmo a respeito de tudo:
"Por que?" A formidável chave de todo o conhecimento verdadeiro é "Por que?" É mais poderosa do que o junco de Thoth, mais poderosa do que as inscrições na pedra. 

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