Houve um tempo em que as minhas viagens ao
interior eram mais intensas. Conheci todo tipo de hotel, até os de beira de
estrada. Conheci todo tipo de gente, até os que valem nada. Houve um tempo
anterior...
1
Ela
gostava de girassóis, como poderia gostar de rosas, margaridas
ou jasmins.
Ou também
de flor de laranjeira,
abóbora ou
algodão. E ainda
da flor roxa
do maracujá. Mas
amava tão somente
os girassóis. Desde criança.
Desenhava, pintava e bordava a planta comprida e estranha
em tudo
quanto botava as mãos.
Adorava passear no campo,
para ver a plantação. Às vezes
levava uma amiga. De outras ia só. No interior
daquele tempo o perigo
passava ao longe. O namorado
conheceu assim, passeando fora da cidade.
Antes que
falassem de amor ela
falou de girassóis. Não sabia explicar a sua paixão. Talvez
a luminosidade do amarelo.
Ou o tamanho
das pétalas. E ainda
o girar contínuo.
Ele era
bom ouvinte
e bom amante.
Mas não
sabia de que planta
gostar. Seria bom
se tivesse uma preferida, mas não conhecia coisas
de jardim. Tinha
um pequeno
armazém e sonhava com
um hotel.
Achava bonito gente
estranha chegando e partindo. Às vezes trocando causos
e até mesmo
ficando amigo. Mas
nunca pensou em
partir. Gostava de saber
do mundo assim,
através das pessoas.
Fazia parecer que
o mundo era
um grande
livro cheio
de histórias sem
fim.
2
Ela que gostava dos girassóis se casou com ele que gostava de hotéis. Então,
as pinturas e bordados
viraram quadros que
o marido mandou emoldurar
e dependurar nas paredes
do pequeno Hotel
dos Girassóis. Os filhos chegaram,
cresceram, estudaram e partiram. Apenas
uma, que não
se importava com girassóis, mas com cosméticos, ficou para cuidar dos velhos e
do hotel, que
também precisava de cuidados.
A que ficou achava tudo
muito antigo.
Queria novidades mesmo
ali, naquela lonjura.
Via seções de
decoração em revistas
femininas e programas de televisão. Gostava do que
lhe parecia moderno,
no interior.
3
A mãe que pintava girassóis e o pai que
construíra o hotel viam nos desejos da filha
um orvalho
adoçando a terra na manhã.
Não compreenderam a tormenta
que chegou ali
atropelando os canteiros cultivados outrora com tanta dedicação.
Numa manhã a velha
escada de madeira
foi atropelada por uma de ferro retorcido. No outro
o piso de antigos
ladrilhos ganhou carpete
de madeira. Na sequência os quadros sumiram das paredes.
Não combina com
nada disse a decoradora para a filha que
respondeu a lengalenga para os pais.
Assim, num passe
de mágica fajuta,
o dourado sumiu do entre
andares, da sala
de espera e dos corredores.
Ali os vários
quadros forrados de girassóis eram a luz faltante do inverno.
Neles alguns viajantes
deixavam-se vagar até
o aconchego da casa
longe. Perdiam o temor
da noite que
caía rapidamente num lugar em que não tinham mais
que laços
comerciais, que
nem sempre
eram desatados. Não se preocupavam com a aurora que os punha de
novo na estrada.
Também procuravam os girassóis de óleo, acrílico,
lã, algumas abelhas
cansadas ou mesmo
sem rumo
e beija-flores distraídos.
Agora, não
mais a luz
dourada irradiando pelos
cômodos. Não
mais.
4
A mãe que bordava
girassóis cegou o nó na garganta, ao saber que em canto algum
caberia um girassol,
nem em
arranjo artificial.
O pai que
aprendeu a amar os girassóis, como
amava a mulher, sugeriu uma pequena faixa
da flor no papel
de parede do restaurante.
A resposta cortou feito
navalha. Ali
era um
lugar frequentado por
hóspedes e, em sua
maioria, machos.
Para a decoradora, o homem,
se macho, ou
aproximado, não gosta
do que lhe
parece singelo. Gosta
é do que lhe
parece rústico e bruto.
Delicadeza não
é coisa de homem.
Difícil saber
quem a figura
da caricatura em
objeto.
5
Mãe e pai, hóspedes antigos, olham o amarelo
envelhecido da parede e pisam no amarelo desbotado do carpete
de madeira, nem
de longe o tom
do girassol. A faixa
de madeira entre
a tinta e o papel
na sala do café,
amanhece apenas madeira
nua. O pai não
tem certeza da nova
casa sem
passado, sem
as lembranças de cada
um. A mãe
apenas queda triste a cada dia de não mais isso ou aquilo.
6
Ela, que adorava girassóis, talvez
continue pintando e bordando a flor, mesmo com os olhos cansados e os dedos
reumáticos. O pai
talvez continue mandando emoldurar
tudo como
antigamente, mesmo
que o destino
seja o quarto de velharias,
junto com
os outros. A mãe,
feito uma Penélope, talvez
continue inventando arte para
aplicar seus
girassóis, como tecer
um tapete,
uma passadeira, repleta
de girassóis, que jamais
irá para o chão
do hotel, mas
que poderá lhe
servir de mortalha.
O pai, feito
um Ulisses, repleto
de memórias, talvez
continue olhando para as entranhas
do seu hotel
onde agora
tudo combina fria
e estranhamente. Ambos
trocarão olhares escondidos da filha, buscando lembranças
anteriores aos sonhos.
Temem que quando
as encontrarem seja tarde demais.
7
Hoje já é quase amanhã e isso é
muito mais
que ontem.
Joba Tridente.06.07.2000
Foto de Joba Tridente.30.10.2011
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