sábado, 29 de outubro de 2011

Joba Tridente: Vida, Morte e Ressurreição em O Etrusco


Recentemente postei sete trechos relacionados à formação escolar, extraídos do excepcional romance O Egípcio, de Mika Waltari (1908-1979). Agora, em homenagem ao Dia de Todos os Mortos, estou postando um fragmento de beleza impressionante, extraído do excelente romance histórico O Etrusco, também de Mika Waltari, publicado na edição brasileira de 1984, da Editora Itatiaia, com tradução de Olívia Krähenbühl. Tudo é uma questão do ponto que se avista!


Na própria cidade vi outro cenário que me comoveu estranhamente. Junto a uma parede havia uma fileira de bancas, a maioria das quais vendia, aos pobres, baratas urnas funerárias de cor vermelha. Em Caere, os mortos não eram enterrados como em Roma, mas eram cremados e suas cinzas enterradas em uma urna redonda que podia ser de dispendioso bronze decorado com belos desenhos, ou de simples barro vermelho, tal como a usavam os pobres. Somente a tampa trazia como asa alguma imagem canhestra.

Estava eu olhando para as urnas vermelhas, quando um pobre casal camponês, o homem e a mulher de mãos enlaçadas, chegou para escolher um lugar de repouso para sua falecida filha. Escolheram uma urna, cuja tampa trazia um galo cocoricando. Quando o viram, sorriram de alegria, e o homem tirou depressa da sacola uma moeda estampada, de cobre. Comprou sem regatear.

- Não é uma pechincha? — perguntou o oleiro, surpreendido.
O homem sacudiu a cabeça.
- A gente não regateia coisas sagradas, ó estrangeiro.
- Mas essa urna não é sagrada — insisti eu — É puro barro.
Pacientemente, o homem explicou:
- Não é sagrada quando sai do forno do oleiro, nem é sagrada enquanto se encontra nesta mesa. Mas quando as cinzas da filha desse pobre casal forem deitadas dentro dela e a tampa se fechar, a urna será sagrada. Essa a razão de seu preço modesto e fixo.

Esse modo de vender era antigrego e inteiramente novo para mim. Apontando o galo que cocoricava na tampa da urna, perguntei ao casal:
- Por que escolhestes justamente o galo? Não seria essa a imagem mais apropriada para um casamento?
Olharam-me atônitos, apontaram para o galo e disseram em uníssono:
- Mas ele está cantando!
- E por que canta? — perguntei.
A despeito da mágoa, ambos mutuamente se fitaram e sorriram misteriosamente. O homem pôs o braço em torno da cintura da mulher e disse-me como se o fizesse à mais estúpida das criaturas:
- O galo está anunciando a ressurreição.

Puseram de parte a urna e, com lágrimas nos olhos, fiquei olhando-os se afastarem. De que maneira comovedora e com que estranha penetração tais palavras me trespassaram o coração! É isto que Caere me faz lembrar. Nem eu podia com maior eficiência descrever a enorme diferença entre os mundos grego e etrusco, do que lembrando que, para os gregos, o galo é o símbolo da luxúria, e para os etruscos, da ressurreição.

capa da edição brasileira: Branca de Castro

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