Recentemente postei sete trechos relacionados à formação escolar, extraídos do excepcional romance O Egípcio, de Mika Waltari (1908-1979). Agora, em homenagem ao Dia de Todos os Mortos, estou postando um fragmento de beleza impressionante, extraído do excelente romance histórico O Etrusco, também de Mika Waltari, publicado na edição brasileira de 1984, da Editora Itatiaia, com tradução de Olívia Krähenbühl. Tudo é uma questão do ponto que se avista!
Na
própria cidade vi outro cenário que me comoveu estranhamente. Junto a uma
parede havia uma fileira de bancas, a maioria das quais vendia, aos pobres,
baratas urnas funerárias de cor vermelha. Em Caere, os mortos não eram
enterrados como em Roma, mas eram cremados e suas cinzas enterradas em uma urna
redonda que podia ser de dispendioso bronze decorado com belos desenhos, ou de
simples barro vermelho, tal como a usavam os pobres. Somente a tampa trazia como
asa alguma imagem canhestra.
Estava
eu olhando para as urnas vermelhas, quando um pobre casal camponês, o homem e a
mulher de mãos enlaçadas, chegou para escolher um lugar de repouso para sua
falecida filha. Escolheram uma urna, cuja tampa trazia um galo cocoricando.
Quando o viram, sorriram de alegria, e o homem tirou depressa da sacola uma
moeda estampada, de cobre. Comprou sem regatear.
- Não é
uma pechincha? — perguntou o oleiro, surpreendido.
O homem
sacudiu a cabeça.
- A
gente não regateia coisas sagradas, ó estrangeiro.
- Mas
essa urna não é sagrada — insisti eu — É puro barro.
Pacientemente,
o homem explicou:
- Não é
sagrada quando sai do forno do oleiro, nem é sagrada enquanto se encontra nesta
mesa. Mas quando as cinzas da filha desse pobre casal forem deitadas dentro
dela e a tampa se fechar, a urna será sagrada. Essa a razão de seu preço
modesto e fixo.
Esse
modo de vender era antigrego e inteiramente novo para mim. Apontando o galo que
cocoricava na tampa da urna, perguntei ao casal:
- Por
que escolhestes justamente o galo? Não seria essa a imagem mais apropriada para
um casamento?
Olharam-me
atônitos, apontaram para o galo e disseram em uníssono:
- Mas
ele está cantando!
- E por
que canta? — perguntei.
A
despeito da mágoa, ambos mutuamente se fitaram e sorriram misteriosamente. O
homem pôs o braço em torno da cintura da mulher e disse-me como se o fizesse à
mais estúpida das criaturas:
- O
galo está anunciando a ressurreição.
Puseram
de parte a urna e, com lágrimas nos olhos, fiquei olhando-os se afastarem. De
que maneira comovedora e com que estranha penetração tais palavras me
trespassaram o coração! É isto que Caere me faz lembrar. Nem eu podia com maior
eficiência descrever a enorme diferença entre os mundos grego e etrusco, do que
lembrando que, para os gregos, o galo é o símbolo da luxúria, e para os
etruscos, da ressurreição.
capa da edição brasileira: Branca de
Castro
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