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Carta Aberta ao MEC - livro Negrinha,
de Monteiro Lobato
CARTA
ABERTA à Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC),
especialmente à COGEAM e às demais pessoas e instituições envolvidas no
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):
Sou professora de Literatura Brasileira
da Universidade Federal do Paraná, tenho atividade docente e produção
bibliográfica na área de formação de leitores, dentre as quais alguns materiais
didáticos produzidos para o MEC: sou coautora do livro Histórias e
histórias: Guia do usuário do Programa Nacional Biblioteca da Escola (SEB/MEC,
2001), do fascículo Organização e uso da biblioteca escolar e das salas de
leitura (MEC, 2005) e do artigo “Experiências de leitura no contexto
escolar”, da coleção Explorando o Ensino (Literatura: Ensino
Fundamental, SEB/MEC, 2010). E, também, sou autora e orientadora de
pesquisas relevantes sobre a obra de Monteiro Lobato.
Considero da maior importância cultural e
social os programas para formação de leitores e de acervos desenvolvidos pelo
MEC e só posso esperar que programas desse gênero tenham continuidade, força
política e crédito social.
Escrevo esta carta aberta porque estou
consternada com a representação recentemente apresentada contra o livro Negrinha,
de Monteiro Lobato, livro que não é racista, nem tampouco sexista. O conto que
dá nome ao livro desperta um sentimento de angústia diante do sofrimento vivido
por Negrinha, e desperta também uma forte reação contra práticas racistas,
discriminatórias e violentas. Hoje dei duas entrevistas a esse respeito na
mídia. Mas as condições de debate na mídia não têm sido as mais adequadas para
desenvolvimento aprofundado de ideias.
Peço licença para apresentar algumas
considerações sobre um pequeno trecho do edital do PNBE (citado pelos senhores
Costa Neto, Domingues e Santos Júnior), que a meu ver mereceria uma discussão
interna na SEB com vistas à sua reescrita. E, dada a repercussão na mídia,
creio que mereceria também uma manifestação pública. O trecho a que me refiro é
este, que copio do edital do PNBE-2013: “Não serão selecionadas obras que apresentem
moralismos, preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer
ordem.” (Destaquei palavras que pretendo comentar.) Creio, pela minha
experiência docente, especialmente no trabalho com formação de leitores, que a
compreensão dessa frase pelos que estão envolvidos com o PNBE é diferente da
sua compreensão pelos senhores que assinaram a representação.
Permitam-me dizer o que pode ser óbvio: a
construção de personagens em obras ficcionais se faz muitas vezes por meio de
estereótipos. Arrisco dizer que toda obra cômica faz isso. E também que boa
parte dos personagens secundários, de obras boas e ruins, são construídos por
meio de estereótipos, porque são personagens planos, sem densidade,
apresentados por meio de poucos elementos, de traços rápidos. Estereótipos não
são um elemento negativo de uma obra. São, sim, elemento constitutivo da
produção ficcional. Creio que os responsáveis pelo PNBE também pensem assim e
por isso tenham selecionado (nas diferentes edições do programa) obras que
contêm, sim, personagens construídas por meio de estereótipos, sem que isso
signifique demérito para as obras, nem tampouco flexibilidade no julgamento da
equipe que seleciona os livros.
Além disso, obras literárias de alta
qualidade podem apresentar (e em geral apresentam) moralismos,
preconceito e discriminação. As obras são filhas de seu tempo, são impregnadas
pela ideologia e pelos valores da época em que foram escritas, e carregam esses
valores de maneira explícita e implícita. Apresentam moralismos,
preconceito e discriminação sob a forma de ideias de personagens, sobretudo. Apresentam,
isto é, trazem em seu corpo, ideias diferentes das de hoje. Discutem essas
ideias, solicitam do leitor um posicionamento, instigam o leitor a refletir. E
refletir é o papel principal do leitor diante de um texto. Apresentar uma
ideologia não significa (na minha compreensão do texto do edital) plantá-la
como verdade nas mentes dos seus leitores. Significa trazê-la no texto,
impregnada no modo como o narrador ou as personagens concebem o mundo, e, dessa
forma, trazê-la para discussão, debate, reflexão. Uma obra apresenta moralismos
quando coloca no diálogo entre personagens uma discussão sobre valores morais,
ou religiosos, ou políticos. Suponho que o MEC não tenha sugerido que não
fossem adotadas obras que discutissem ideias, mesmo quando elas fossem
contrárias ao senso comum e aos valores de hoje. Suponho, isso sim, que o
edital tenha tentado excluir do programa obras que fossem dogmáticas, que
tivessem como primeiro objetivo a expressão de valores (morais, políticos,
religiosos) e que apresentassem discussão desses valores por meio de uma trama
ficcional ou de uma estrutura poética insustentáveis. Não me parece que tenha
sido essa a compreensão dos senhores que assinaram a representação. Além de
outros problemas de leitura (que me fazem supor que eles não tenham lido o
conto inteiro, mas tenham pinçado pedaços que, fora do texto, podem
parecer adequados aos seus propósitos), eles julgam que o conto “Negrinha”
apresenta preconceito, e isso só é verdade no seguinte sentido: a personagem
Inácia é preconceituosa. Para além disso, o conto não dissemina preconceito.
Pelo contrário: ele denuncia a discriminação, os maus-tratos, a
violência, a conivência da igreja, e luta contra tudo isso, ao estimular a
identificação e o envolvimento emocional do leitor com a personagem principal.
Inácia, por sua vez, é ridicularizada, clara e ostensivamente. Suas atitudes e
suas ideias são desmerecidas também de maneira clara e ostensiva.
Uma certa leitura do edital (a que
fizeram os reclamantes) entende que não poderia ser adquirida pelo programa
nenhuma obra que contivesse qualquer moralismo ou estereótipo, ou que
apresentasse, em sua trama, qualquer ideia racista, preconceituosa, qualquer
violência, qualquer forma de discriminação. Por essa leitura, estariam
excluídos todos os contos de fadas, por serem violentos e moralistas. Todas as
fábulas: moralistas e dogmáticas. As cartas de viajantes e sermões de jesuítas: dogmáticos,
política e religiosamente interessados. Estariam excluídas todas as obras
realistas, porque, para denunciarem problemas sociais (dentre os quais
diferentes formas de discriminação), elas antes os apresentam. Estariam
excluídas todas as obras românticas, por apresentarem “estereótipos saturados”
(outro termo do mesmo edital). Gregório de Matos, José de Alencar, Visconde de
Taunay, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha, Lima Barreto,
Mário de Andrade, Erico Verissimo, Antônio Callado, Rubem Fonseca, a lista é
extensa. Não sei se ficaria um autor em pé. Infelizmente, parece-me que a
compreensão estrita do edital permite essa interpretação.
Sugiro, por isso, que esse trecho seja
reescrito, não para dirigir o trabalho dos especialistas, não para mudar as
diretrizes do MEC, mas a fim de evitar ações que, fundadas numa compreensão
equivocada dos efeitos da literatura sobre os leitores, ajam como censoras do
que pode ou não pode ser integrado ao acervo das bibliotecas escolares,
pretendendo inclusive substituir-se à avaliação de uma equipe da mais alta
qualidade. Não creio, porém, que com a revisão do edital o MEC acabará com a
celeuma, dentre outros motivos porque celeuma dá visibilidade, populariza os
nomes das pessoas. Mas creio que tiraria das mãos dos reclamantes um texto
legal que eles começaram a usar como argumento para sua ação. Talvez eu esteja
dando valor demais para um ato de menor importância. Tomara que seja isso.
Tenho esperança de que nós, professores,
teremos liberdade e acervo suficiente para continuarmos a discutir nas escolas
e na sociedade obras literárias de qualidade, por meio das quais
compreenderemos melhor nossa identidade, nossas contradições, nossos problemas
históricos. Compreender problemas é condição para superá-los.
Atenciosamente,
Milena Ribeiro Martins
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