quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Humor Negro: Criança de Neve

Esta é uma pérola do Almanach de Porto Alegre 1920, edição digital Brasiliana USP. Atualizei a grafia.


Criança de Neve

Em uma reunião elegante, ha dois ou três dias, uma senhora distintíssima, hoje viúva, apresentou-me a sua filhinha mais nova.
- Chama-se... ? - perguntei.
E a pequena:
- Branca!
Esse nome fez-me sorrir e eu me lembrei, então, daquela famosa historia do Bianchino, ocorrida há muitos anos em uma aldeia italiana das proximidades dos Alpes. Em certa região alpina da Itália, havia um casal de gente simples e honrada, em que o marido andava constantemente longe do lar, acompanhando viajantes ou apascentando rebanhos. Certa vez, ao voltar à casa, encontrou ele, com surpresa, a mulher com uma criancinha nos braços.
- Que é isso? - indagou, espantado.
A esposa, que o supunha um toleirão, explicou-lhe, atirando-se lhe ao pescoço:
- Não te lembras daquela tempestade de neve que caiu o ano passado? Pois, olha; nesse tempo, eu fui me divertir com as bolas de neve, e, meses depois, me vi surpreendida com esta criança!
E, entre o espanto do marido, acrescentou:
- Não estás vendo como é branca, branca, branca? É porque nasceu da neve, na tua ausência!
O pastor, que era louco pela mulher, dissimulou as suas suspeitas de coração, e, concordando que o pequeno tomaria o nome de Bianchino, por ter a alvura da neve, partiu para outra viagem demorada.
Tempos depois, voltou. A criança, crescida e forte, parecia-se enormemente com o professor do lugar, mas bastava olhar-lhe a cor inconfundível da pele, para ver que se tratava, realmente, de uma criança de neve. Ao regressar dessa vilegiatura, vinha, porém, mais esclarecido sobre a origem das crianças. E como não fosse tolo, chamou no dia seguinte o pequeno para irem juntos á caça.
- Bianchino - gritou - vamos às lebres?
Ao regressar, vinha, porém, sozinho.
- Bianchino, onde está Bianchino, Gennaro? - implorou a esposa.
O marido fez uma cara de choro e confessou, doloroso:
- Bianchino? Bianchino... derreteu-se, filha!
A mulher tombou com um terrível ataque de nervos, mas ficou sabendo, nesse dia, que os maridos têm o direito de derreter, sempre que as encontrem em casa, as crianças nascidas da neve.


*

Ilustração de Joba Tridente. 2013

A ficha completa do Almanach de Porto Alegre - 1920 pode ser acessada aqui. 

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