..., este
conto recolhido por Silvio Romero,
no Rio de Janeiro, é um dos mais singelos entre os publicados em Contos Populares do Brasil (1885). ...,
gosto dele porque subverte conceitos religiosos. ..., e também porque me lembra
o antológico conto O Demônio do Campo,
de Hermann Hesse, publicado em O livro das Fábulas, editado no Brasil
pela Civilização Brasileira, nos anos 1970.
A Proteção
do Diabo
Houve um rei que tinha um filho; quando este
chegou à idade de dezoito anos, sua mãe mandou ver a sua sina, e lhe
responderam que seu filho tinha de morrer enforcado. Desde esse dia sua mãe não
pôde ter mais alegria. 0 príncipe, logo que notou a tristeza de sua mãe,
perguntou-lhe qual era o motivo. Sua mãe não lhe quis dizer; mas o moço incomodado
por esse mistério, também caiu em tristeza. No segundo dia tornou a indagar da
rainha, e nada dela lhe querer dizer; no terceiro dia o mesmo. Porém, tanto o
príncipe insistiu, que ela se viu obrigada a declarar que a causa de sua
tristeza era a triste sina dele ter de morrer enforcado. O príncipe não se
atemorizou e disse à sua mãe que por isso não se incomodasse, porque morrer disto
ou daquilo, de moléstia ou enforcado, tudo era morrer; e portanto lhe desse
licença para ele ir correr mundo, para não morrer aonde tinha nascido e para
evitar a seus pais maior dor. Com custo a rainha lhe concedeu licença, e o moço
foi ter com o rei, que também a custo lhe quis dar.
O príncipe se aprontou para seguir, e, na
despedida, seu pai lhe deu uma grande soma de dinheiro para sua viagem. Depois
de ter o moço corrido algumas cidades e reinos, chegou a um lugar onde havia
uma capela de São Miguel, com sua imagem e a figura do Diabo, tudo já muito
arruinado. Ai parou o príncipe, a fim de mandar consertar a capela e as
imagens.
Mandou chamar operários e se pôs à testa da
obra. Depois que concluiu o trabalho, o pintor veio lhe dizer que tinha restado
um pouco de tinta por não ter pintado o Diabo. O príncipe examinou a obra e
ordenou que se pintasse também o Demônio, e, deixando tudo pronto, retirou-se.
Depois de ter corrido outras terras, foi dar à casa de uma velha, pedindo-lhe
licença para ai pernoitar. Depois que a velha lhe destinou um quarto, o
príncipe pôs-se a contar o dinheiro que lhe restava. Vendo aquilo a velha foi
dar parte à autoridade, dizendo que um ladrão a estava roubando a sua casa. A
autoridade, com uma escolta, se dirigiu à casa da velha, prendeu ao príncipe e
o conduziu para a cadeia, para ser processado, o que aconteceu, sendo ele condenado
à pena última. Chegando o dia de cumprir, saiu o moço da prisão, no meio de uma
escolta, para ser conduzido à forca. São Miguel, que estava na capela que o príncipe
tinha mandado consertar, perguntou ao Demônio: “Então, tu agora não estás mais bonito?” Respondeu o Diabo que sim.
“E não sabes quem consertou esta capela e
nos enfeitou?” Respondeu que o príncipe, que tinha passado por ali. “Pois este príncipe, conduzido por uma
escolta, está em caminho para ser enforcado e cumprir a sentença a que foi
condenado injustamente. Deves ir defendê-lo.”
O Diabo montou num fogoso
cavalo, dirigiu-se à casa da velha, conduziu-a à justiça, onde ela declarou
toda a maquinação que tinha feito para ficar com o dinheiro do príncipe. O rei,
sabendo do ocorrido, por intermédio do Diabo, passou ordem para ser solto o príncipe
e conduzido à sua presença, sendo o Diabo o portador da ordem. Partiu o Demônio
no seu cavalo e apenas teve tempo de chegar, pois o príncipe já estava quase no
ato de ser enforcado. Apresentou a ordem de soltura, e, livre o príncipe, o
levou ao palácio do rei. Este interrogou ao príncipe para saber quem era e de
onde vinha; ao que ele respondeu justamente quem era, e que tinha saído da
terra de seus pais para não morrer enforcado perto deles, pois essa era a sina
que tinha trazido. O rei obrigou a velha a restituir o dinheiro do príncipe, e
mandou-a levar para a prisão até chegar o dia de ser sentenciada pelo crime que
tinha cometido.
O príncipe, depois que se viu livre e embolsado
de seu dinheiro, indo caminhando por uma estrada, encontrou-se com um fidalgo
montado num fogoso cavalo. O fidalgo lhe perguntou para onde ia, ao que
respondeu que andava em terra estranha e não sabia onde iria pernoitar. E foram
andando-justamente pelo caminho que ia dar à capela que o príncipe tinha
mandado consertar. Ele pelo caminho foi contando ao fidalgo o que lhe tinha
acontecido, e como se tinha livrado daquela vez, mas que a sua sina era a de
morrer enforcado. Então lhe disse o fidalgo: “Não sabeis quem vos defendeu?” Respondeu o príncipe que não. “Pois sabei que fui eu, que sou a figura do Diabo
que estava na capela de São Miguel, que vós mandastes consertar e também pintar
a mim. O santo me disse o aperto em que estavas, montei a cavalo, e ainda
cheguei a tempo de vos salvar. Podeis voltar para vossa terra, porque a vossa
sina está desmanchada, indo a velha ser enforcada em vosso lugar.”
Desapareceu o Diabo, que foi para a sua moradia na
capela, onde também foi o príncipe fazer sua oração. Depois voltou para a sua
pátria, onde seus pais o receberam com grande contentamento.
*
Ilustração
de Joba Tridente (2013)
Silvio Romero (Lagarto, 1851 - 1914): escritor,
ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores
da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais. Silvio Romero é, entre outras obras, autor
de: A poesia contemporânea e a sua
intuição naturalista (1869); Contos
do fim do século (1878); A
filosofia no Brasil (1878); A
literatura brasileira e a crítica moderna (1880); Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883);
Contos Populares do Brasil (1885);
História da literatura brasileira, 2v.
(1888); A poesia popular no Brasil
(1880); Compêndio da História da
Literatura Brasileira (1906).
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