sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Silvio Romero: A Proteção do Diabo

..., este conto recolhido por Silvio Romero, no Rio de Janeiro, é um dos mais singelos entre os publicados em Contos Populares do Brasil (1885). ..., gosto dele porque subverte conceitos religiosos. ..., e também porque me lembra o antológico conto O Demônio do Campo, de Hermann Hesse, publicado em O livro das Fábulas, editado no Brasil pela Civilização Brasileira, nos anos 1970.
  

A Proteção do Diabo

Houve um rei que tinha um filho; quando este chegou à idade de dezoito anos, sua mãe mandou ver a sua sina, e lhe responderam que seu filho tinha de morrer enforcado. Desde esse dia sua mãe não pôde ter mais alegria. 0 príncipe, logo que notou a tristeza de sua mãe, perguntou-lhe qual era o motivo. Sua mãe não lhe quis dizer; mas o moço incomodado por esse mistério, também caiu em tristeza. No segundo dia tornou a indagar da rainha, e nada dela lhe querer dizer; no terceiro dia o mesmo. Porém, tanto o príncipe insistiu, que ela se viu obrigada a declarar que a causa de sua tristeza era a triste sina dele ter de morrer enforcado. O príncipe não se atemorizou e disse à sua mãe que por isso não se incomodasse, porque morrer disto ou daquilo, de moléstia ou enforcado, tudo era morrer; e portanto lhe desse licença para ele ir correr mundo, para não morrer aonde tinha nascido e para evitar a seus pais maior dor. Com custo a rainha lhe concedeu licença, e o moço foi ter com o rei, que também a custo lhe quis dar.

O príncipe se aprontou para seguir, e, na despedida, seu pai lhe deu uma grande soma de dinheiro para sua viagem. Depois de ter o moço corrido algumas cidades e reinos, chegou a um lugar onde havia uma capela de São Miguel, com sua imagem e a figura do Diabo, tudo já muito arruinado. Ai parou o príncipe, a fim de mandar consertar a capela e as imagens.

Mandou chamar operários e se pôs à testa da obra. Depois que concluiu o trabalho, o pintor veio lhe dizer que tinha restado um pouco de tinta por não ter pintado o Diabo. O príncipe examinou a obra e ordenou que se pintasse também o Demônio, e, deixando tudo pronto, retirou-se. Depois de ter corrido outras terras, foi dar à casa de uma velha, pedindo-lhe licença para ai pernoitar. Depois que a velha lhe destinou um quarto, o príncipe pôs-se a contar o dinheiro que lhe restava. Vendo aquilo a velha foi dar parte à autoridade, dizendo que um ladrão a estava roubando a sua casa. A autoridade, com uma escolta, se dirigiu à casa da velha, prendeu ao príncipe e o conduziu para a cadeia, para ser processado, o que aconteceu, sendo ele condenado à pena última. Chegando o dia de cumprir, saiu o moço da prisão, no meio de uma escolta, para ser conduzido à forca. São Miguel, que estava na capela que o príncipe tinha mandado consertar, perguntou ao Demônio: “Então, tu agora não estás mais bonito?” Respondeu o Diabo que sim. “E não sabes quem consertou esta capela e nos enfeitou?” Respondeu que o príncipe, que tinha passado por ali. “Pois este príncipe, conduzido por uma escolta, está em caminho para ser enforcado e cumprir a sentença a que foi condenado injustamente. Deves ir defendê-lo.” 

O Diabo montou num fogoso cavalo, dirigiu-se à casa da velha, conduziu-a à justiça, onde ela declarou toda a maquinação que tinha feito para ficar com o dinheiro do príncipe. O rei, sabendo do ocorrido, por intermédio do Diabo, passou ordem para ser solto o príncipe e conduzido à sua presença, sendo o Diabo o portador da ordem. Partiu o Demônio no seu cavalo e apenas teve tempo de chegar, pois o príncipe já estava quase no ato de ser enforcado. Apresentou a ordem de soltura, e, livre o príncipe, o levou ao palácio do rei. Este interrogou ao príncipe para saber quem era e de onde vinha; ao que ele respondeu justamente quem era, e que tinha saído da terra de seus pais para não morrer enforcado perto deles, pois essa era a sina que tinha trazido. O rei obrigou a velha a restituir o dinheiro do príncipe, e mandou-a levar para a prisão até chegar o dia de ser sentenciada pelo crime que tinha cometido.

O príncipe, depois que se viu livre e embolsado de seu dinheiro, indo caminhando por uma estrada, encontrou-se com um fidalgo montado num fogoso cavalo. O fidalgo lhe perguntou para onde ia, ao que respondeu que andava em terra estranha e não sabia onde iria pernoitar. E foram andando-justamente pelo caminho que ia dar à capela que o príncipe tinha mandado consertar. Ele pelo caminho foi contando ao fidalgo o que lhe tinha acontecido, e como se tinha livrado daquela vez, mas que a sua sina era a de morrer enforcado. Então lhe disse o fidalgo: “Não sabeis quem vos defendeu?” Respondeu o príncipe que não. “Pois sabei que fui eu, que sou a figura do Diabo que estava na capela de São Miguel, que vós mandastes consertar e também pintar a mim. O santo me disse o aperto em que estavas, montei a cavalo, e ainda cheguei a tempo de vos salvar. Podeis voltar para vossa terra, porque a vossa sina está desmanchada, indo a velha ser enforcada em vosso lugar.”

Desapareceu o Diabo, que foi para a sua moradia na capela, onde também foi o príncipe fazer sua oração. Depois voltou para a sua pátria, onde seus pais o receberam com grande contentamento.


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Ilustração de Joba Tridente (2013) 

Silvio Romero (Lagarto, 1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais.  Silvio Romero é, entre outras obras, autor de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A literatura brasileira e a crítica moderna (1880);  Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885); História da literatura brasileira, 2v. (1888); A poesia popular no Brasil (1880);  Compêndio da História da Literatura Brasileira (1906).

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