Adoro curiosidades de Almanaque. Na minha
infância havia o delicioso Almanaque
Fontoura. Há uns dois ou três anos descobri antigos Almanaques, em edições
digitais da Brasiliana-USP, e fiquei encantado. Viajando pelas páginas do Almanach Popular para 1878, encontrei
este delicioso artigo de Victor Champier:
Uma locomotiva do século XVII, infelizmente sem a autoria do tradutor
português. Acho que o meu encanto por este texto com ares de fantástico tem a
ver com o fascinante gênero literário Steampunk,
que estou conhecendo. Atualizei apenas a grafia.
Uma
locomotiva do século XVII
(Tradução
para o Almanach Popular para 1878)
Não há
nada de novo debaixo do sol; a natureza transforma-se, mas reaparecem sempre os
mesmos elementos.
Existe ainda alguém que
acredite no progresso?
Se tivessem lido o livro de Édouard
Fournier, o Vieux Neuf, veriam estar demonstrado
que os antigos egípcios, gregos, romanos - e outros, conheciam todas as grandes
invenções que nós, modernos, nos atribuímos.
Este livro que se tornou raro,
e cuja reimpressão nós podemos anunciar entre parêntesis, prova claramente que
não ha uma só força mecânica que os gregos não pressentissem, uma só aplicação
de química ou de física que não tenha sido empregada por eles.
O quê! direis vós, o vapor que
data apenas de um século?
E então! que pensais? O vapor é
velho como o mundo.
Hiren d'Alexandrie divertia-se
há alguns centos de anos a fazer dançarem esferazinhas à extremidade do jato do
vapor.
Era divertimento, na verdade,
mas é, sem duvida, porque os antigos não queriam dar à água quente um papel
mais nobre. Por um excesso de civilização eles recusavam-se a inventar os
caminhos de ferro, causa permanente de acidentes e além disso instrumentos de
perdição, como dizia o cura de certa aldeia.
E não só o vapor, mas também os
balões lhes eram conhecidos. Inclina-te bravo Montgolfier!
Pelo menos, sabe-se que antes
de Cyrano de Bergerac foram vistos ovos de galinha cheios de rocio flutuar nos ares
como balões.
Aulu Gelle contou que tinha
admirado um pombo mecânico que voava e agitava-se no espaço, devido a um ar
sutil de que tinha o corpo cheio.
Não existe coisa alguma até aos
milagres, cuja invenção não seja antiga.
Os sacerdotes das religiões
antigas faziam-nos admiráveis, e a certos respeitos, superiores aos que se vêm
agora.
No Egito os altares eram
arranjados com a máxima habilidade. A água destinada às libações, nas
cerimonias sagradas, achava-se no interior de uma cavidade, comunicando por um
tubo com a taça colocada sobre o altar ou na mão do sacerdote; no momento de
fazer o milagre, a taça estando ainda vazia, trazia-se um fogo ardente, sem o
qual não era possível a cerimonia. Posto sobre o altar aquecia o ar interior
que, dilatando-se, comprimia energicamente a superfície do liquido e o fazia
subir pelo tubo até à taça. A libação tinha lugar assim e o povo acreditava no
prodígio.
Vão se admirar, depois disto,
quando dissermos que as locomotivas com que se sulca, neste momento, todos os boulevards
de Paris, cuja invenção os ingleses tão altivamente se atribuem e das quais os
americanos fazem tão grande uso há vinte anos, são simplesmente de origem
francesa, que datam do século XVII, a menos que não remontem ao tempo dos Assírios
ou que um semideus índio as tenha feito conhecer aos homens há milhares de
anos!
Eis o caso. Há alguns meses, no
palácio dos Campos Elyseos, o marechal de Mac-Mahon, presidente da republica, visitando
as galerias da exposição da União Central, deteve-se ao pé da grande escada de
honra e encaminhou-se, em seguida, para uma das elegantes lojas reservadas para
livros. Achou-se diante dos livros editados por Morel e tomando um grande in-fólio,
magnificamente impresso e cheio de belos desenhos, achou-lhe o seguinte título:
Château de Marly-le-Roi, construit em
1676, détruit en 1798, par Aug.-Alex. Guillaumot.
O marechal examinava as gravuras
com o descuido próprio de um personagem eminente. De repente levantou a cabeça
e voltando-se para os seus ajudantes de campo, exclamou:
- Vede, é uma locomotiva!
Efetivamente, a gravura
representava uma espécie de trenel rolando sobre trilhos, pelo meio do parque de
Marly, tendo por viajantes as damas da corte e o rei Luiz XIV, em pessoa que,
de pé à retaguarda, parecia presidir a carreira.
Sabe-se a predileção que este
rei tinha por Marly e quantas prodigalidades tinha feito para construir neste
país o magnífico castelo em que ele tanto gostava de dar festas.
No parque estavam dispostos
grande quantidade de jogos destinados a fazer passar agradavelmente o tempo aos
seus convidados.
Entre eles havia o da roulette, espécie de caminho de ferro
posto em movimento à força de braços.
Era este jogo que estava
gravado no volume que folheava o marechal de Mac-Mahon.
A locomotiva real, ornada à
retaguarda, de quimeras douradas, rolava sobre pedrinhas de pequeno diâmetro, e
os trilhos estavam solidamente arranjados.
O terreno conserva ainda neste
lugar a inclinação que lhe deram para obter impulso, amortecido à chegada por um
movimento inverso; o jogo dianteiro era armado de croquezinhos destinados a ajudá-la
a subir quando a nobre companhia a abandonasse em meio do caminho.
É preciso ajuntar, para
verificar o mérito da invenção com sua data, que lâminas girantes permitiam
mudar a direção do veículo para a direita! Nós não temos ainda hoje nenhuma locomotiva
munida deste precioso aparelho.
E agora, se me perguntarem o
nome do inventor, serei obrigado a confessar que ignoro. Mas, que faz um nome?
Basta saber que o objeto
existia: quod erat demonstrandum.
(*)
Victor Champier (1851-1929): historiador, editor e
crítico de arte. Mais informações no OAC - Online Archive of California: Victor Champier e no Wikipédia: Victor Champier.
Édouard Fournier (1819 - 1880): escritor,
dramaturgo, historiador, bibliógrafo e bibliotecário francês. Mais informação
no Wikipédia: Édouard Fournier
Ilustração: Locomotive Gilderfluke (American
Journal Railway Gazette, 06 de dezembro de 1931), que encontrei em Some
Fictional Locomotives. O site, com suas loucas locomotivas ao estilo Steampunk, é muito bacana: Some
Fictional Locomotives.
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