Há muito que venho aguardando o dia propício para a publicação deste divertidíssimo ABC Gestaltiano, (que, em 1964, virou Alfabeto Concreto, fac-símile abaixo) do genial escritor Millôr Fernandes, no Falas ao Acaso. Mas, aí, enquanto artista que se vira daqui e dacolá, vou me ocupando com outras artes e negligenciado outras e os blogs vão claudicando. Hoje, 27 de março de 2021..., num país desgovernado e em polvorosa com a pandemia negada..., dia que marca nove anos da morte deste que foi um dos mais notáveis intelectuais brasileiros, acho que é o momento propício para aliviar as tensões.
Esta composição gestaltiana levou anos, literalmente, para ser feita. Foi melhorando na medida em que o tempo – os anos, Deus meu! – foram passando. Publicada a primeira vez em 1958, na revista O Cruzeiro, foi reescrita para várias publicações. Não se consegue fazer esse tipo de coisa, numa sentada só. Tem que ser um pouco chinês. Millôr Fernandes.
Millôr Fernandes
O A é uma letra com sótão.
Chove sempre um pouco sobre o à craseado. O B é um l que se
apaixonou pelo 3.
O b minúsculo é uma letra grávida. Ao C só lhe
resta uma saída. O Ç cedilha, esse jamais tira a
gravata. O D é um berimbau bíblico. O e minúsculo
é uma letra esteatopigia (esteatopigia, ensino aos mais atrasadinhos, é uma
pessoa que tem certa parte do corpo, que fica atrás e embaixo, muito feia). O E ri-se eternamente das outras
letras. O F, com seu
chapéu desabado sobre os olhos, é um gangster à espera de oportunidade. O f minúsculo
é um poste antigo. A pontinha do G é que lhe dá esse ar desdenhoso. O g minúsculo
é uma serpente de faquir. O H é uma letra duplex. A parte de
cima é muda. Serve também como escada para as outras letras galgarem sentido. O h minúsculo
é um dinossauro. O I maiúsculo guarda, em seu porte de
letra, um pouco do número I romano. O i minúsculo
é um bilboquê. O J, com seu
gancho de pirata, rouba às vezes o lugar do g. O j minúsculo
é uma foca brincando com sua bolinha. Vê-se nitidamente; o K é uma
letra inacabada. Por enquanto só tem os andaimes. Parece que vão fazer um R. Junto
com o k minúsculo o K maiúsculo
treina passo-de-ganso. O L maiúsculo parece um l que extraíram com raiz e tudo. Mas
o l minúsculo não consegue disfarçar
que é um número (1) romano espionando o número arábico. O M maiúsculo
é um gráfico de uma firma instável. O m minúsculo é uma cadeia de
montanhas. O N é um M perneta.
No n minúsculo pode-se jogar críquete
com a bolinha do o. O O maiúsculo
boceja largamente diante da chatice das outras letras. O o minúsculo
é um buraquinho no alfabeto. O p é um d plantando
bananeira. Ou o q, vindo de
volta. O Q maiúsculo anda sempre com o laço
do sapato solto. O q minúsculo é um p se olhando
de costas ao espelho. O R ficou assim de tanto praticar
halterofilismo. Sente-se que o s é um
cifrão fracassado. O S maiúsculo é um cisne orgulhoso. Na
balança do T se faz jusTiça. O U é a
ferradura do alfabeto, protegendo o galope das ideias. O u minúsculo
é um n com as patinhas pro ar. O V é uma ponta de lança. O W são vês
siameses. O X é uma encruzilhada. O Y é a taça
onde bebem as outras letras. Desapareceu do alfabeto porque se entregou covardemente,
de braços pra cima. O Z é o caminho mais curto entre dois
bares. O z minúsculo é um s cubista.
*Ilustrações: 1. Fotomontagem de JT.2021, com foto de Millôr Fernandes/Wikipédia e assinatura de Millôr Fernandes/Acervo IMS. 2. Assinatura de Millôr Fernandes/Acervo IMS.
Millôr
Fernandes (Rio de Janeiro/RJ: 16.08.1923 - Rio de Janeiro/RJ:
27.03.2012): desenhista, humorista, cartunista, artista-plástico, dramaturgo,
escritor, tradutor e jornalista brasileiro. Perspicaz e sarcástico, dono de uma
linguagem única, num país a cada dia mais anafabestado, Millôr ganhou fama com
suas colunas e páginas de humor irônico (ainda hoje pertinentes) publicadas nas
revistas A Cigarra, O Cruzeiro, Pif-Paf, Veja, IstoÉ,
e nos jornais, O Jornal, O Pasquim, Jornal do Brasil, O
Estado de S.Paulo, O Dia, Correio Brasiliense, Folha de
S.Paulo.
Saber
mais: Wikipédia: Millôr
Fernandes; Instituto Moreira Salles: Acervo de
Millôr Fernandes; TV Cultura de São Paulo/Roda Viva: Millôr Fernandes
(03.04.1989); TV Cultura de São Paulo/Vitrine: Entrevista
com Millôr Fernandes; Piaui: Zillôr:
Um Nome a Melar; Dissertação/Eduardo Coleone: Millôr Fernandes: análise
do estilo de um escritor sem estilo através de suas fabulosas fábulas;
Dissertação/Ana Angélica Alves de Mello Santos: Duas
crônicas verbo-visuais de Millôr Fernandes: uma análise bakhtiniana;
Dissertação/Alessandro Ribeiro e Catarina Santos Calado: Formação
de palavras em textos de Millôr Fernandes; Tese/ Odilia Carreirão
Ortiga: O riso e
o risível em Millôr Fernandes: o cômico, o satírico e o humor; Outras
análises da obra de Millôr Fernandes: aqui.
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