domingo, 12 de dezembro de 2021

Flávio Viegas Amoreira: Flaubert – 200 anos

 

FLAUBERT – 200 ANOS

Flávio Viegas Amoreira

 

À amiga poeta Sonia Morel

Nunca me preocupei tão loucamente em Flaubert com ‘le mote juste’ ou na celebrada precisão narrativa. Claro que para nós soa fácil deparar com os preceitos do realismo celebrado pelos temas, abordagens, o perfeccionismo obsessivo, mas calculo impacto de sua obra em meio tanta verborragia e dispersão. Claro que os aspectos estilísticos me calam fundo e nunca também me preocupei em seguir seus passos nesses dias transmodernos de difícil sondagem. Nem com lupa nem com lente de aumento somos capazes de tornear personagens, captar o espírito do tempo ainda que Flaubert também tenha vivido e escrito (em seu caso dá na mesma) em meio mutação de eras e comportamentos. A Revolução Industrial e seus impactos nos meios, mídias, modos deve ter impactado Gustave quanto a internet entre escritores de minha geração ‘sanduíche’ entre o analógico e digital triunfante. É a cumplicidade ‘davinciana’ com seu ofício que me toca, motiva, nos alivia de nossa pequenez com a grandiosidade de alguém que renuncia sem drama a vida por uma lauda bem composta. Tentativa, erro, molde refeito, correções infindáveis, ao contrário de Leonardo o mestre de Rouen implementava loucamente e concluía claro que numa dimensão mais exígua do que o italiano renascentista. Flaubert sem entrar no mérito das patologias clínicas era um ansioso contido pela palavra e um polímata que variava sem perder noção de suas possibilidades todas contidas na literatura onde assim ousava mudando de tom e pano de fundo a cada romance ou conto. A sintaxe flaubertiana numa dimensão ampliada realmente impressiona, mas nem de longe me chacoalha tanto quanta a argúcia psicológica de personagens e situações. Clarividência teu nome é Flaubert e sutilmente clarividente... Quando li o estupendo e leve! “Seis propostas para o próximo milênio” de Ítalo Calvino percebi que ali continha todo um escólio subreptício da arquitetura flaubertiana sem precisar enfrentar todo catatau “O idiota da família” de Sartre que ainda lerei inteiro eu me prometo... Quando discorre sobre exatidão o escritor supremo que é Calvino nos diz: “Às vezes procuro concentrar-me na história que gostaria de escrever e me dou conta de que aquilo que me interessa é uma outra coisa diferente, ou seja, não uma coisa determinada mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatê-la, procuro limitar o campo do que pretendo dizer, depois dividi-lo em campos ainda mais limitados, depois subdividir também estes, e assim por diante. Uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como me dispersava no infinitamente vasto.”  Depois desse roteiro de criação, uma oficina criativa em compota ele cita o dístico de Flaubert mais conhecido: “Le bon Dieu est dans le détail.” Aí me vêem à cabeça esse Flaubert de filigranas sobrepostas e distribuição à altura da Catedral de Chartres nos retratos forjados. O resultado dos romances é sempre maior que a soma da partes.  Parece saído das equações de Valéry em seu “Introdução ao método de Leonardo Da Vinci.” Calvino tem a dimensão da luta do francês  para abraçar o mundo: “Assim como me fascina pensar que Flaubert, que em 16 de janeiro de 1852 havia escrito a Louise Colet: ce que jê voudrais faire, c’est un livre sur rien [o que gostaria de fazer era um livro sobre nada] tenha dedicado seus últimos anos de vida ao mais enciclopédico romance que já foi escrito, “Bouvard et Pécuchet”. Este o romance que mais me divertiu, eu que tenho um humor super-exigente tenho-o como a ambição desmesurada alcançada pelo genial normando ainda que em projeto compactado de “romance Google”. Quanto Borges parece dever a esse intento eterno. “Madame Bovary” sob sua tessitura esquadrinhada passo-a-passo me provocou ambivalência quando jovem sabia ler com prazer de folhetim e ter que desdobrar-me na ‘anamnese’ de intenções e perspectivas. Ali o poder de condensação que tateava em outros romancistas difusos para dissecar o que logo seria toda psicologia ao menos em literatura, a gênese dos estudos da alienação burguesa e suas variações e sendo mais ousado o ‘start’ da modernidade. Existe conto mais revelador da alma humana, de nossa sozinhes num mundo estilhaçado e dessacralizado que “Um coração simples”? Felicité a dulcíssima criatura somos todos nós garantindo nosso espaço de proteção ante o esmagamento pelas coisas e fatos sufocantes. Felicité recôndito texto é para mim o ponto de convergência de toda obra do mestre amado; o ‘coup de gracê’ de nossas ilusões além do nosso quarto... lembrai Pascal sobre sair de casa; falando nisso quanto ‘jansenismo’ em Gustave... O que aprendi com Flaubert muito nitidamente foi que escrever é desnudar-se, se ele era Bovary também foi Frederick e por que não Felicité? Numa carta a Louise Colet, creio eu, porque neste domingo em que comemoro 200 anos do gênio aqui nos trópicos que ele não conheceu além do Magreb, ele nos revela: “Como é delicioso escrever, como é gratificante não ser mais eu, mas poder me movimentar por todo o universo sobre o qual estou falando. Veja o que me aconteceu hoje, por exemplo: eu era homem e mulher, dois amantes ao mesmo tempo; cavalguei por uma floresta em uma tarde de outono, sob as folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que e ela falavam, e o sol inclemente, que castigava suas pálpebras semicerradas, já carregadas de paixão.” É isso então! meu querido Gustave meu íntimo todo instante, quero me sentir também um pouquinho você....

 

FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA é escritor (de verso e prosa), dramaturgo, crítico literário e de cinema e jornalista. Nascido em Santos, em 1965, atua como agitador cultural em São Paulo, Rio de Janeiro e Litoral Paulista, em projetos de discussão de temas ligados a artes de vanguarda, saraus poéticos e oficinas de criação literária. Já lançou 14 livros entre eles: Maralto (poesia, 2002,); A Biblioteca Submergida (poesia, 2003); Contogramas (contos, 2004); Escorbuto, Cantos da Costa (poesia, 2005); Edoardo, o Ele de Nós (romance, 2007) - todos editados pela prestigiada 7 Letras Editora, do Rio de Janeiro, além de Oceano Cais, pelo selo Dulcinéia Catadora, de São Paulo, Desaforismos, pelo selo Edições Caiçaras, Pessoa doutra margem, pela Imaginário Coletivo. Participou de diversas antologias brasileiras e internacionais de poesia e conto, como a Geração Zero Zero, que reuniu os mais inquietos e inovadores autores lançados na primeira década do século XXI, organizada pelo crítico literário Nelson de Oliveira e editada pela Língua Geral, em 2001, marcando um encontro de escritores brasileiros destacados por sua forma ousada e temáticas cosmopolitas.  Em 2019 lançou  o livro Walt Whitman, meu brother,  pela Editora Imaginário Coletivo e, em 2020, Gilberto Mendes - Notas Biográficas, seu mais recente livro, que traz a biografia do compositor e maestro santista Gilberto Mendes, seu parceiro estético em adaptações de poemas para canto coral e sinfonias. Saiba mais: aqui. Contato: flavioamoreira@uol.com.br

*Ilustração: Joba Tridente.2021


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