domingo, 7 de março de 2010

Joba Tridente: Mulher de Segunda

Arte de Joba Tridente sobre Dins - 2010 - Mulher de Segunda

Mulher de Segunda

Há 11 anos escrevi esta crônica
para reflexão e alguma comemoração
no Dia Internacional da Mulher: 08/03/1999.
Infelizmente ela continua atual.


O ônibus é grande. Trem sobre rodas, dizem. Meio devagar. Articulado. Certas horas do dia, lotado. Alternando as estações a voz da moça, presa no alto-falante, repete a mensagem, a ouvidos praticamente surdos: “Dê preferência às pessoas idosas, gestantes e deficientes”. Fala para uma geração recente de dez, vinte e até trinta anos, que já nasceu podre. Mulheres e homens. Gente louca para entrar no veículo e se sentar antes do outro. À mensagem da voz, aos apelos da voz, aos desejos da voz se fazem de cegos.

Arte sobre Dings - Mulher de Segunda - 2010: Joba Tridente

Manhã. Itinerário: centro. Ônibus razoavelmente cheio. Todos os lugares tomados principalmente por gente jovem. No último banco uma menina de uns 10 anos, confortavelmente sentada ao lado de uma senhora, de uns trinta anos, olhando curiosa, em pé, ali perto delas, entre outras, uma velha senhora de uns 60 anos, gorda e exausta com o calor. Ela sabe que aquela mulher é idosa e em atenção à recomendação da voz, questiona a sua mãe:

Mãe, uma mulher idosa pode ter filho? De onde você tirou essa idéia maluca? Da moça do alto-falante? Que moça? Essa que tá falando pra dá preferência às pessoas idosas gestantes. Não é idosas gestantes é idosas e gestantes. Ah! Mas mulher idosa pode ter filhos? Não é recomendado? Por que? Porque ela é muito velha, não resistiria ao parto. E não pode fazer cesariana? Ela continua muito velha. Só por isso? Não! Se ela é muito velha como é que vai poder brincar e educar o seu filho? Mas a vó é velha e brinca com a gente, ensina a gente. Ora, a sua vó é a minha mãe. Mas a mãe do pai também é legal com a gente. É porque ela é parente. Ah! Mas e se... Jaquelaine Elizabetchi, você não acha que é nova demais pra ficar falando sobre isso, não? Toma, leia uma revista, pra passar o tempo. Veja a seção de regimes, pra você se cuidar e não ficar igual a essa senhora, que nem aguenta ficar em pé, de tão gorda. E se você não se cuidar agora que é criança... Mãe. O que é, agora? Eu devo dar o meu lugar pra essa mulher idosa e gorda? É claro que não, você pagou a passagem. Mas no alto-falante... É bobagem! Ninguém liga. Eu duvido que se ela estivesse sentada ela dava o lugar dela pra você. Além do que ela é muito gorda e eu vou ficar muito apertada. Ah!

Arte sobre Dings - Mulher de Segunda: Joba Tridente - 2010

Tarde. Itinerário: bairro. Ônibus razoavelmente cheio. Todos os lugares tomados principalmente por gente jovem. No banco reservado a idosos ou deficientes uma jovem de uns 20 anos, confortavelmente sentada e ouvindo a todo volume, com fone no ouvido, uma radio brega qualquer. Em pé, ao lado, uma senhora, de uns quarenta e cinco anos, com uma perna engessada, e os olhos tomados pela catarata. A jovem olha curiosa para senhora em pé, ali perto dela, mas é como se não a visse ou como se não desse a mínima. Um homem de uns cinquenta e poucos anos, cabelos brancos, se aproxima da moça e fala alguma coisa com ela que, é claro, não escuta, com a altura da música. O senhor, então, arranca-lhe os fones de ouvido e antes que ela reaja, pega a cabeça dela e sem violência, mas com firmeza, gira-a de frente para a mulher. Ergue e abaixa a cabeça da jovem para que ela olhe e veja o estado da senhora e depois gira-a para a janela, onde está o selo de reserva. A jovem, vociferando, dá um inesperado chute no velho. Outros passageiros alheios ou espectadores acreditando ser um assalto, caem de pancada no velho que é expulso do ônibus, na próxima parada, todo machucado. A jovem retoma o seu assento e o seus fones de ouvidos. A música ensurdecedora que ela ouve é uma breguice religiosa qualquer.

Arte sobre Ding - Mulher de Segunda - Joba Tridente - 2010

Noite. Itinerário: centro. Ônibus razoavelmente cheio. Todos os lugares tomados principalmente por gente jovem. Num banco, no primeiro carro, um rapaz de uns 18 anos, confortavelmente sentado, ao perceber a entrada de uma senhora, de uns sessenta e poucos anos, se apressa em lhe oferecer o lugar. A senhora, magra e elegante, vestida com bom gosto, maquiagem discreta e cabelos prateados presos à moda diva, com bonita presilha, sapatos e bolsa combinando, agradece e rejeita a oferta. Um senhor cinquentão, que não tinha visto a cena, repete o gesto, oferecendo o seu lugar. O que é novamente recusado de forma bastante educada. Um pouco atrás, assistindo a tudo, duas senhoras quarentonas. Donas de casa, talvez. Ou funcionárias de uma empresa qualquer. Não importa. Não interessa. Derrubadas:

É inacreditável, duas pessoas oferecem o lugar e “a princesa” recusa. Deve se achar madame demais. Perua demais, você quer dizer, né amiga. Quando ninguém oferece o lugar dizem que todo mundo é mal educado. Com essa cara cheia de rugas e esse cabelo branco, que não engana nem cego, ela pensa que vai convencer a quem, de que não é velha? Menina, você viu os pés de galinha? E os sapatos combinandinho com a bolsa? Isso fica bem em mulher jovem e não em mulher velha. Tem gente que não se toca, viu. Aposto que usa dentadura fixada com aquele talquinho. Deus me livre de chegar nessa idade e toda metida assim. E eu, então!? Pra andar sozinha de ônibus ou deve ser solteirona ou viúva. A essa hora, só pode! Ou sapatão, né? Tudo é possível. Ela deve ter, no mínimo, uns oitenta anos. No mínimo!. Mas pensa que aparenta cinquenta. Nem morta! Você reparou no vestido? Deve ter copiado de alguma vitrine. Não tem nem um bom caimento. E o tecido? Isso lá é tecido pra gente velha? Mas as mãos dela estão bem feitas. Você deve estar cega, aquele esmalte já caiu de moda há séculos. É mesmo! Shhhhiiii, que a dondoca vai descer. Elvira do céu, se viu o velho que está esperando por ela? Com beijinho na boca e tudo. Até que ele está bem vestido. Possivelmente vão a algum velório. O deles mesmo. A não ser que sejam casados. Imagina! Nessa idade, vestidos desse jeito, beijinhos. Hoje em dia, os casamentos não duram dois anos. Sabe que você tem razão, Marlene, o meu não chegou a três, com filhos e tudo. O meu até que tá durando, já vou pro quinto. Mas tenho que fazer muita vista grossa, por causa dos quatro filhos, né. Imagino!

Ilustrações: Arte de Joba Tridente sobre Dings

3 comentários:

  1. olá! como faço pra conseguir uma cópia do seu curta cortejo? abraços

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  2. Olá, Carlos.
    Você mora onde?
    Se morar em Curitiba, fica mais fácil.

    Como soube do curta?

    Abração.
    T+
    Joba

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  3. oi joba, moro em paranaguá. respondi no outro blog. qualquer coisa meu email é minutosdeodio@gmail.com

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