Em 2001
escrevi uma série de cinco artigos, para o Caderno
G, do jornal Gazeta do Povo, de
Curitiba, tratando de textos clássicos da literatura universal, já em Domínio
Público, disponibilizados gratuitamente na internet. Em 2001 a web ainda era um
mundo pouco conhecido. Entre os artigos, que posteriormente publiquei aqui, estava o que fala de uma Carta escrita pelo Jesuíta Antônio Rodrigues em 1553. Até hoje
esta postagem é muito acessada e recentemente me dei conta de que a bendita Carta não aparece na postagem. Não sei o
porquê! Por conta disso, estou postando novamente o artigo. Boa leitura.
O lado “B” da literatura “A”
na internet: A carta de Antônio Rodrigues
“Bem é
que morram, porque não haverá ouro para tantos!” Este é um breve trecho de uma
impressionante e, por vezes, apavorante carta que o soldado, viajante,
aventureiro e jesuíta português Antônio Rodrigues enviou, em maio de 1553, aos
seus irmãos jesuítas em Portugal e que a Fundação Biblioteca Nacional está
disponibilizando, juntamente com A Alma
Encantadora das Ruas, de João do Rio (1881-1923), no arquivo: Cronistas e Viajantes. Nota: O link
disponibilizado (na época) pela Biblioteca Nacional não está mais ativo. Fiz
várias consultas e não tive nenhuma resposta e tampouco consegui localizar a Carta
no seu Acervo Digital.
A
Carta é um relato dos sonhos,
esperanças e pesadelos de Antônio
Rodrigues em busca de uma terra repleta de riquezas: “E é que eu e outros Portugueses,
assim por vaidade como por cobiça de ouro e prata, no ano de 1523, partimos de
Sevilha em uma armada, que fazia Dom Pedro de Mendonça, na qual éramos 1800
homens; e todos carregados de nossa cobiça, chegamos, com próspero vento, ao
Rio da Prata e entramos pelo rio com as naus 60 léguas.”
O seu conteúdo desvela a
confissão dolorida e amarga de um homem procurando compreender e situar a
realidade que o cerca, diante da “lógica católica apostólica” a que serve. A
culpa de Antônio Rodrigues, “em pensamentos, palavras e obras”, parece infinita
e a sua súplica de perdão atravessará os “mares de Portugal” e também os séculos,
atordoando o leitor habituado com a História Oficial. Nada se compara com o
fato sendo descrito por quem comete o ato. Documento ideal para ser discutido e
analisado por professores e alunos de história, geografia, antropologia,
sociologia, economia, por detalhar contrastes e confrontos entre civilizados e
selvagens. Resta-nos saber quem é quem pois, uns são movidos pela ambição e
outros para se livrar do jugo.
“Prouve a Nosso Senhor castigar
a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome
ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão.
E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era
muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e
assim morriam cada dia 4 ou 5.”
Propondo-se a relatar uma viagem de ida e volta
do Brasil ao Peru, Antônio Rodrigues serve-nos em uma cuia a História como ela
era e assim, diante dos nossos olhos, o domínio português se firma, vilarejos
são levantados e povos exterminados, enquanto a ambição leva dezenas de
confiantes homens cristãos ao Peru e traz de volta uns poucos miseráveis
sobreviventes. Quem dera fosse pura ficção!
Para
quem quer conhecer o Brasil de anteontem, pra entender o Brasil de hoje, a Carta Jesuítica de Antônio Rodrigues é
um bom começo. Ela não é tão idílica, como a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha (também disponível no site da FBN),
portanto, que o leitor fique prevenido, pois, em alguns momentos, a narrativa
pode embrulhar o estômago mais sensível. É que não há como ficar indiferente
aos cheiros da miséria e aos gritos da violação da terra, dos povos, das
crenças primitivas, em nome de Jesus Cristo.
“Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os
quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem
cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não
era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez
nenhum proveito na fé.”
Carta
de Antônio Rodrigues
Logo quiseram ir em terra todos para edificar uma
cidade: e os primeiros seis que saíram para ver o lugar onde se podia fazer
mataram-nos as onças bravas. Nem por isso se deixou de edificar ainda que cada
dia as onças matavam homens. Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e
pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que
não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a
gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada
dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam
cada dia 4 ou 5. Ainda que não deixou Nosso Senhor a estes, que castigavam aos
outros, sem castigo, porque vieram os gentios um dia de Corpus Christi e
mataram 40 dos mais nobres e esforçados.”
“Aconteceram nesta fome, com que Nosso Senhor
nos castigou por nossos pecados, coisas semelhantes às que aconteceram aos
judeus em Jerusalém, no cerco de Tito e Vespasiano. Porque, enforcando-se a
dois soldados, lhes comeram as barrigas das pernas, e um homem matou em sua
casa a um seu primo e comeu-lhe a assadura. Acabando de a comer o acharam que
estava para morrer, permitindo Deus por seu justo juízo que o matasse a comida
com que a morte do primo procurou. Aconteceu também comerem uns o excremento
que outro depois de ter comido deitava, ainda que pela corrupção dos corpos era
aquilo tão peçonhento que quem o comia logo morria. E, desta maneira, uns com
fome, outros por os matarem as onças, e outros os gentios, morreram neste
tempo, que se fez a cidade, 600 homens”.
“(..) Digo isto, Caríssimos Irmãos, porque claramente se
vê ter Nosso Senhor permitido tantos males por nossos pecados. Porque ali
renegavam e blasfemavam de Deus, ali os falsos testemunhos, ali as injustas
justiças e vinganças, ali os oficiais da ordem da guerra diziam: - Bem é que
morram, porque não haverá ouro para tantos!”
“Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os
quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem
cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não
era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez
nenhum proveito na fé.”
“Chegamos à terra dos “Carijós”, que são gentios
muito poderosos e grandes lavradores e, naquele tempo, em extremo cruéis, que
comiam carne humana. Chegamos com muita fome e falta de mantimentos, por haver
seis meses que a remos tínhamos caminhado, sem ter um só dia vento de vela. Ia
por nosso capitão um homem chamado João de Salazar, muito capaz na guerra, o
qual como nos via ir cansados de caminhar, tomou conselho do que seria bom
fazer, e concluiu-se que se fizesse ali fortaleza. E assim saltamos em terra as
três partes da gente, ficando os bergantins apercebidos para a guerra no rio. E
um homem, que levávamos, que sabia a língua, começou a dizer àqueles gentios
(que quando nos viram eram tantos sobre nós que cobriam a terra) que nós éramos
filhos de Deus e que lhes trazíamos nossas coisas, cunhas facas e anzóis; com
isto, folgaram e nos deixaram em paz fazer uma fortaleza muito grande de
madeiras muito grandes. E assim pouco a pouco fizemos uma cidade aonde
trouxemos toda a gente que vinha atrás, e outra que o Imperador depois enviou,
de maneira que se juntaram nela 600 homens, os quais vieram a tanta cegueira
que pensaram que o preceito crescite et
multiplicamini era valioso. E assim dando-lhes os gentios as suas filhas
encheram a terra de filhos, os quais são muito hábeis e de grande engenho.”
“Tornado a nossa cidade, achamos admirável fruto feito com os gentios, porque
um Padre, chamado Nuno Gabriel, deixando uma capelania que tinha na igreja se
deu todo a doutrinar estes gentios; tomava os principais deles e os filhos dos
principais e os tinha em uma casa grande e ali os ensinava a ler e escrever e
sabiam o Pater Noster e Ave-Maria, Credo e Salve-Regina, Mandamentos e
finalmente toda a doutrina. Fez-lhes cantigas contra todos os seus vícios, a
saber, para não comerem carne humana, para não se pintarem, para não matarem,
etc.”
*
Ilustração:
mapas disponibilizados na web: Mapa da
América do Sul (1550), de Pierre Descelliers, e Mapa Mundi (sec. XVII?)- Os dois terços do mundo que foram explorados pelos
Portugueses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário