domingo, 13 de setembro de 2015

Antônio Rodrigues: Cartas Jesuíticas

Em 2001 escrevi uma série de cinco artigos, para o Caderno G, do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, tratando de textos clássicos da literatura universal, já em Domínio Público, disponibilizados gratuitamente na internet. Em 2001 a web ainda era um mundo pouco conhecido. Entre os artigos, que posteriormente publiquei aqui, estava o que fala de uma Carta escrita pelo Jesuíta Antônio Rodrigues em 1553. Até hoje esta postagem é muito acessada e recentemente me dei conta de que a bendita Carta não aparece na postagem. Não sei o porquê! Por conta disso, estou postando novamente o artigo. Boa leitura.



O lado “B” da literatura “A”
na internet: A carta de Antônio Rodrigues

Bem é que morram, porque não haverá ouro para tantos!” Este é um breve trecho de uma impressionante e, por vezes, apavorante carta que o soldado, viajante, aventureiro e jesuíta português Antônio Rodrigues enviou, em maio de 1553, aos seus irmãos jesuítas em Portugal e que a Fundação Biblioteca Nacional está disponibilizando, juntamente com A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio (1881-1923), no arquivo: Cronistas e Viajantes. Nota: O link disponibilizado (na época) pela Biblioteca Nacional não está mais ativo. Fiz várias consultas e não tive nenhuma resposta e tampouco consegui localizar a Carta no seu Acervo Digital.

A Carta é um relato dos sonhos, esperanças e pesadelos de Antônio Rodrigues em busca de uma terra repleta de riquezas: “E é que eu e outros Portugueses, assim por vaidade como por cobiça de ouro e prata, no ano de 1523, partimos de Sevilha em uma armada, que fazia Dom Pedro de Mendonça, na qual éramos 1800 homens; e todos carregados de nossa cobiça, chegamos, com próspero vento, ao Rio da Prata e entramos pelo rio com as naus 60 léguas.”

O seu conteúdo desvela a confissão dolorida e amarga de um homem procurando compreender e situar a realidade que o cerca, diante da “lógica católica apostólica” a que serve. A culpa de Antônio Rodrigues, “em pensamentos, palavras e obras”, parece infinita e a sua súplica de perdão atravessará os “mares de Portugal” e também os séculos, atordoando o leitor habituado com a História Oficial. Nada se compara com o fato sendo descrito por quem comete o ato. Documento ideal para ser discutido e analisado por professores e alunos de história, geografia, antropologia, sociologia, economia, por detalhar contrastes e confrontos entre civilizados e selvagens. Resta-nos saber quem é quem pois, uns são movidos pela ambição e outros para se livrar do jugo.

“Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam cada dia 4 ou 5.”

Propondo-se a relatar uma viagem de ida e volta do Brasil ao Peru, Antônio Rodrigues serve-nos em uma cuia a História como ela era e assim, diante dos nossos olhos, o domínio português se firma, vilarejos são levantados e povos exterminados, enquanto a ambição leva dezenas de confiantes homens cristãos ao Peru e traz de volta uns poucos miseráveis sobreviventes. Quem dera fosse pura ficção!

Para quem quer conhecer o Brasil de anteontem, pra entender o Brasil de hoje, a Carta Jesuítica de Antônio Rodrigues é um bom começo. Ela não é tão idílica, como a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha (também disponível no site da FBN), portanto, que o leitor fique prevenido, pois, em alguns momentos, a narrativa pode embrulhar o estômago mais sensível. É que não há como ficar indiferente aos cheiros da miséria e aos gritos da violação da terra, dos povos, das crenças primitivas, em nome de Jesus Cristo.

“Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez nenhum proveito na fé.




Carta de Antônio Rodrigues

Logo quiseram ir em terra todos para edificar uma cidade: e os primeiros seis que saíram para ver o lugar onde se podia fazer mataram-nos as onças bravas. Nem por isso se deixou de edificar ainda que cada dia as onças matavam homens. Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam cada dia 4 ou 5. Ainda que não deixou Nosso Senhor a estes, que castigavam aos outros, sem castigo, porque vieram os gentios um dia de Corpus Christi e mataram 40 dos mais nobres e esforçados.”

“Aconteceram nesta fome, com que Nosso Senhor nos castigou por nossos pecados, coisas semelhantes às que aconteceram aos judeus em Jerusalém, no cerco de Tito e Vespasiano. Porque, enforcando-se a dois soldados, lhes comeram as barrigas das pernas, e um homem matou em sua casa a um seu primo e comeu-lhe a assadura. Acabando de a comer o acharam que estava para morrer, permitindo Deus por seu justo juízo que o matasse a comida com que a morte do primo procurou. Aconteceu também comerem uns o excremento que outro depois de ter comido deitava, ainda que pela corrupção dos corpos era aquilo tão peçonhento que quem o comia logo morria. E, desta maneira, uns com fome, outros por os matarem as onças, e outros os gentios, morreram neste tempo, que se fez a cidade, 600 homens”.

“(..) Digo isto, Caríssimos Irmãos, porque claramente se vê ter Nosso Senhor permitido tantos males por nossos pecados. Porque ali renegavam e blasfemavam de Deus, ali os falsos testemunhos, ali as injustas justiças e vinganças, ali os oficiais da ordem da guerra diziam: - Bem é que morram, porque não haverá ouro para tantos!”

“Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez nenhum proveito na fé.”

“Chegamos à terra dos “Carijós”, que são gentios muito poderosos e grandes lavradores e, naquele tempo, em extremo cruéis, que comiam carne humana. Chegamos com muita fome e falta de mantimentos, por haver seis meses que a remos tínhamos caminhado, sem ter um só dia vento de vela. Ia por nosso capitão um homem chamado João de Salazar, muito capaz na guerra, o qual como nos via ir cansados de caminhar, tomou conselho do que seria bom fazer, e concluiu-se que se fizesse ali fortaleza. E assim saltamos em terra as três partes da gente, ficando os bergantins apercebidos para a guerra no rio. E um homem, que levávamos, que sabia a língua, começou a dizer àqueles gentios (que quando nos viram eram tantos sobre nós que cobriam a terra) que nós éramos filhos de Deus e que lhes trazíamos nossas coisas, cunhas facas e anzóis; com isto, folgaram e nos deixaram em paz fazer uma fortaleza muito grande de madeiras muito grandes. E assim pouco a pouco fizemos uma cidade aonde trouxemos toda a gente que vinha atrás, e outra que o Imperador depois enviou, de maneira que se juntaram nela 600 homens, os quais vieram a tanta cegueira que pensaram que o preceito  crescite et multiplicamini era valioso. E assim dando-lhes os gentios as suas filhas encheram a terra de filhos, os quais são muito hábeis e de grande engenho.”

 “Tornado a nossa cidade, achamos admirável fruto feito com os gentios, porque um Padre, chamado Nuno Gabriel, deixando uma capelania que tinha na igreja se deu todo a doutrinar estes gentios; tomava os principais deles e os filhos dos principais e os tinha em uma casa grande e ali os ensinava a ler e escrever e sabiam o Pater Noster e Ave-Maria, Credo e Salve-Regina, Mandamentos e finalmente toda a doutrina. Fez-lhes cantigas contra todos os seus vícios, a saber, para não comerem carne humana, para não se pintarem, para não matarem, etc.”

*
Ilustração: mapas disponibilizados na web: Mapa da América do Sul (1550), de Pierre Descelliers, e Mapa Mundi (sec. XVII?)- Os dois terços do mundo que foram explorados pelos Portugueses.

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