sábado, 2 de fevereiro de 2019

Jorge de Lima: O Grande Circo Místico


A propósito da estreia recente do equivocado filme brasileiro O Grande Circo Místico, dirigido por Cacá Diegues..., tendo por base o belo e desconcertante poema homônimo do escritor Jorge de Lima (1893 - 1953), presente em seu livro A Túnica Inconsútil, de 1930, que também inspirou a famosa montagem do Balé Teatro Guaíra, em 1982 e a sua releitura em 2002, bem como um musical 2014, e cuja trilha sonora foi composta por Chico Buarque e Edu Lobo..., me pareceu interessante publicar o poema aqui no Falas ao Acaso, para a apreciação de novos leitores, acompanhado de diversos links (abaixo) de estudos críticos e curiosidades da obra literária.

A inspiração de Jorge de Lima para este, que é um dos seus mais conhecidos poemas, teria vindo de uma notícia de jornal sobre uma companhia circense austríaca em turnê pelo Brasil. Segundo material colhido na web (confira nos links), a história real da Companhia Knie é a seguinte:

"Em Viena, durante o reinado de Maria Tereza da Áustria, viveram os irmãos Charles e Frédéric Knie, este médico, que casou em 1873 e no ano seguinte teve um filho, também chamado Frédéric, fundador da dinastia Knie, ligada à arte do circo. Aos 18 anos, estudante de medicina em Insbruck, Fréderic apaixonou-se pela acrobata de uma companhia eqüestre ambulante e seguiu a troupe em turnê. Interessando-se pelo trabalho dos saltimbancos, aprendeu o ofício de funambulista. Em 1806, montou sua própria companhia, viajando com uma exibição de dança e acrobacia na corda bamba. Três anos mais tarde, já com a segunda esposa (que reclusa pelo pai em um convento, foi de lá resgatada por Frédéric através de uma corda bamba), passou por momentos difíceis por causa da guerra, trabalhando apenas pela sobrevivência diária. Logo em seguida, porém, tornou-se próspero e orientou os filhos na arte circense; Charles, o mais velho, não se interessou pela profissão, mas Rodolphe, Carl, Franz e Fanny seguiram a dinastia. Todos foram grandes artistas, e Carl, o mais notável deles, teve filhos que continuaram o seu trabalho: Charles, Clara (casada com o funambulista Henri Blondin), Marie (esposa do clown Futelet) e Louis; e os filhos deste (Frédéric, Rodolpho, Charles e Éugene), por sua vez, perpetuaram a dinastia do Circo Knie, fundando, em 1919, o Circo Nacional Suiço. O sucesso dos Knie continua, num circo famoso pela qualidade de seus animais amestrados e pela beleza de seus espetáculos. Em sua sede, às margens do lago de Zurich, a dinastia está assegurada por uma numerosa geração de pequenos Knie, treinados na melhor tradição dos antigos saltimbancos."


      
O Grande Circo Místico
Jorge de Lima

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps -
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo - o trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram a alma para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.
        
*
ilustração: Joba Tridente.2019


Jorge de Lima (União dos Palmares - AL: 23.04.1893 - Rio de Janeiro - RJ: 15.11.1953): médico, escritor de prosa e verso, ensaísta, tradutor, artista plástico, político. O escritor parnasiano que “migrou” para o modernismo é autor de vasta e riquíssima obra literária. Poesia: XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos Poemas (1929); O Acendedor de lampiões (1932); Tempo e Eternidade (1935); A Túnica Inconsútil (1938); Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950); Invenção de Orfeu (1952). Romances: O anjo (1934); Calunga (1935); A mulher obscura (1939); Guerra dentro do beco (1950); Infantojuvenil: História da Terra e da Humanidade (1937); Aventuras de Malazarte (1942). Artes: A pintura em pânico (com fotomontagens, 1943).
Para saber mais: Templo Cultural Delfos: Jorge de Lima - surrealismo e modernidade;  Tiro de Letra: Grandes Entrevistas: Jorge de Lima; Jornal Opção: Poetas Católicos do Brasil - Jorge de Lima; Alfredo Bosi: Jorge de Lima poeta em movimento (Do "menino impossível" ao Livro de sonetos); Bianca Cristina de Carvalho Ribeiro: O simbolismo na poesia de Jorge de Lima; Luciano Dias Cavalcanti: Itinerário da Poesia de Jorge de Lima: de Parnasiano a Órfico; Leandro Durazzo: Jorge de Lima e a Poesia Transicional; História de Alagoas: Jorge de Lima, doutor em poesia; Antonio Miranda: Jorge de Lima; Escritas.org: Jorge de Lima; Fundação Joaquim Nabuco: Jorge de Lima; Enciclopédia Itaú Cultural: Jorge de Lima;


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