A propósito da estreia recente do equivocado filme
brasileiro O Grande Circo Místico,
dirigido por Cacá Diegues..., tendo por base o belo e desconcertante poema
homônimo do escritor Jorge de Lima (1893
- 1953), presente em seu livro A Túnica
Inconsútil,
de 1930, que também inspirou a famosa montagem do Balé Teatro Guaíra, em
1982 e a sua releitura em 2002, bem como um musical 2014, e cuja trilha sonora foi
composta por Chico Buarque e Edu Lobo..., me pareceu interessante publicar o
poema aqui no Falas ao Acaso, para a
apreciação de novos leitores, acompanhado de diversos links (abaixo) de estudos
críticos e curiosidades da obra literária.
A inspiração de Jorge de Lima para este, que é um dos
seus mais conhecidos poemas, teria vindo de uma notícia de jornal sobre uma companhia
circense austríaca em turnê pelo Brasil. Segundo material colhido na web (confira nos links), a história real da Companhia Knie é a seguinte:
"Em Viena,
durante o reinado de Maria Tereza da Áustria, viveram os irmãos Charles e
Frédéric Knie, este médico, que casou em 1873 e no ano seguinte teve um filho,
também chamado Frédéric, fundador da dinastia Knie, ligada à arte do circo. Aos
18 anos, estudante de medicina em Insbruck, Fréderic apaixonou-se pela acrobata
de uma companhia eqüestre ambulante e seguiu a troupe em turnê. Interessando-se
pelo trabalho dos saltimbancos, aprendeu o ofício de funambulista. Em 1806,
montou sua própria companhia, viajando com uma exibição de dança e acrobacia na
corda bamba. Três anos mais tarde, já com a segunda esposa (que reclusa pelo
pai em um convento, foi de lá resgatada por Frédéric através de uma corda
bamba), passou por momentos difíceis por causa da guerra, trabalhando apenas
pela sobrevivência diária. Logo em seguida, porém, tornou-se próspero e
orientou os filhos na arte circense; Charles, o mais velho, não se interessou
pela profissão, mas Rodolphe, Carl, Franz e Fanny seguiram a dinastia. Todos
foram grandes artistas, e Carl, o mais notável deles, teve filhos que
continuaram o seu trabalho: Charles, Clara (casada com o funambulista Henri
Blondin), Marie (esposa do clown Futelet) e Louis; e os filhos deste (Frédéric,
Rodolpho, Charles e Éugene), por sua vez, perpetuaram a dinastia do Circo Knie,
fundando, em 1919, o Circo Nacional Suiço. O sucesso dos Knie continua, num
circo famoso pela qualidade de seus animais amestrados e pela beleza de seus
espetáculos. Em sua sede, às margens do lago de Zurich, a dinastia está
assegurada por uma numerosa geração de pequenos Knie, treinados na melhor
tradição dos antigos saltimbancos."
O Grande Circo Místico
Jorge de Lima
O médico de câmara
da imperatriz Teresa - Frederico Knieps -
resolveu que seu
filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo
relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou,
fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem
ocupado a imprensa.
Charlote, filha de
Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram
Marie e Oto.
E Oto se casou com
Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre
um santo tatuado.
A filha de Lily
Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um
convento,
mas Oto Frederico
Knieps não atendeu,
e Margarete
continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado
a imprensa.
Então, Margarete
tatuou o corpo
sofrendo muito por
amor de Deus,
pois gravou em sua
pele rósea
a Via-Sacra do
Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a
ofendeu jamais;
e o leão Nero que já
havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava
nua pela jaula adentro,
chorava como um
recém-nascido.
Seu esposo - o
trapezista Ludwig - nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras
sagradas afastavam
a pele dela o desejo
dele.
Então, o boxeur
Rudolf que era ateu
e era homem fera
derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o
ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas
meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre
são as suas virgindades
em que os banqueiros
e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas
levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em
que ninguém acredita;
são as suas mágicas
que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças
crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se
apresentam nuas,
dançam no arame e
deslocam de tal forma os membros
que parece que os
membros não são delas.
A platéia bisa
coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se
repartem todas,
se distribuem pelos
homens cínicos,
mas ninguém vê as
almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros
para a visão dos homens,
atiram a alma para a
visão de Deus.
Com a verdadeira
história do grande circo Knieps
muito pouco se tem
ocupado a imprensa.
*
ilustração: Joba
Tridente.2019
Jorge de Lima (União dos Palmares - AL: 23.04.1893
- Rio de Janeiro - RJ: 15.11.1953): médico, escritor de prosa e verso,
ensaísta, tradutor, artista plástico, político. O escritor parnasiano que “migrou”
para o modernismo é autor de vasta e riquíssima obra literária. Poesia: XIV Alexandrinos (1914); O
Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927);
Novos Poemas (1929); O Acendedor de lampiões (1932); Tempo e Eternidade (1935); A Túnica Inconsútil (1938); Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943);
Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950); Invenção de Orfeu (1952). Romances: O anjo (1934); Calunga (1935);
A mulher obscura (1939); Guerra dentro do beco (1950); Infantojuvenil: História da Terra e da Humanidade (1937); Aventuras de Malazarte (1942). Artes:
A pintura em pânico (com
fotomontagens, 1943).
Para saber mais: Templo Cultural Delfos: Jorge de
Lima - surrealismo e modernidade; Tiro de Letra: Grandes
Entrevistas: Jorge de Lima; Jornal Opção: Poetas
Católicos do Brasil - Jorge de Lima; Alfredo Bosi: Jorge
de Lima poeta em movimento (Do "menino impossível" ao Livro de
sonetos); Bianca Cristina de Carvalho Ribeiro: O
simbolismo na poesia de Jorge de Lima; Luciano Dias Cavalcanti: Itinerário
da Poesia de Jorge de Lima: de Parnasiano a Órfico; Leandro Durazzo:
Jorge
de Lima e a Poesia Transicional; História de Alagoas: Jorge de Lima, doutor
em poesia; Antonio Miranda: Jorge
de Lima; Escritas.org: Jorge de Lima;
Fundação Joaquim Nabuco: Jorge
de Lima; Enciclopédia Itaú Cultural: Jorge
de Lima;
Links - Grande Circo Místico: Rodrigo Duguay da Hora Pimenta: Um
Circo Outro: enunciado e polifonia no espetáculo “O Grande Circo Místico”;
Deisily de Quadros: Em
Cena, O Grande Teatro do Mundo, de Jorge de Lima; Deisily de
Quadros: “O
Grande Circo Místico”: do palco à página; Deisily de Quadros: O
Grande Circo Místico e a Crítica Brasileira; Ceci Maria Costa
Baptista Mariani: “O
grande circo místico”, mistério de Deus na carne humana. Leitura
místico-teológica do poema de Jorge de Lima; Emanuel França de
Brito: O
grande circo místico e o dantismo de Jorge de Lima; Eduardo José
Diniz: Todo
mundo tem pereba: Ensaio sobre a arte e a construção sociocultural das
subjetividades; Teatro: O
Grande Circo Místico: Um Espetáculo Musical.
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