quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Literatura: Carta de Antônio Rodrigues



Carta de Antônio Rodrigues
O lado “B” da literatura “A” na Internet

Esta série de cinco artigos, que escrevi em 2001, foi publicada no Caderno G, da Gazeta do Povo, de Curitiba, no segundo semestre do mesmo ano.

Bem é que morram, porque não haverá ouro para tantos!
Este é um breve trecho da cópia de uma impressionante e, por vezes, apavorante carta que o soldado, viajante, aventureiro e jesuíta português Antônio Rodrigues enviou, em maio de 1553, aos seus irmãos jesuítas em Portugal e que a Fundação Biblioteca Nacional está disponibilizando, juntamente com A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio (1881/1923), no arquivo: Cronistas e Viajantes.

A carta é um relato dos sonhos, esperanças e pesadelos de Antônio Rodrigues em busca de uma terra repleta de riquezas: “E é que eu e outros Portugueses, assim por vaidade como por cobiça de ouro e prata, no ano de 1523, partimos de Sevilha em uma armada, que fazia Dom Pedro de Mendonça, na qual éramos 1800 homens; e todos carregados de nossa cobiça, chegamos, com próspero vento, ao Rio da Prata e entramos pelo rio com as naus 60 léguas.” O seu conteúdo desvela a confissão dolorida e amarga de um homem procurando compreender e situar a realidade que o cerca, diante da “lógica católica apostólica” a que serve. A culpa de Antônio Rodrigues, “em pensamentos, palavras e obras”, parece infinita e a sua súplica de perdão atravessará os “mares de Portugal” e também os séculos, atordoando o leitor habituado com a História Oficial. Nada se compara com o fato sendo descrito por quem comete o ato. Documento ideal para ser discutido e analisado por professores e alunos de história, geografia, antropologia, sociologia, economia, a carta detalha contrastes e confrontos entre civilizados e selvagens. Resta-nos saber quem é quem pois, uns são movidos pela ambição e outros para se livrar do jugo.

(...) Prouve a Nosso Senhor castigar a nossa cobiça e pecados, que soldados comumente fazem: permitiu vir tanta fome ao arraial que não davam a comer a cada um, cada dia, senão seis onças de pão. E, porque a gente por esta causa, com a fraqueza, não podia trabalhar, era muito castigada dos oficiais da ordem da guerra, porque lhes davam com paus, e assim morriam cada dia 4 ou 5.
Propondo-se a relatar uma viagem de ida e volta do Brasil ao Peru, Antônio Rodrigues serve-nos em uma cuia a História como ela era e assim, diante dos nossos olhos, o domínio português se firma, vilarejos são levantados e povos exterminados, enquanto a ambição leva dezenas de confiantes homens cristãos ao Peru e traz de volta uns poucos miseráveis sobreviventes. Quem dera fosse pura ficção!

(...) Porque, enforcando-se a dois soldados, lhes comeram as barrigas das pernas, e um homem matou em sua casa a um seu primo e comeu-lhe a assadura. Acabando de a comer o acharam que estava para morrer, permitindo Deus por seu justo juízo que o matasse a comida com que a morte do primo procurou. Aconteceu também comerem uns o excremento que outro depois de ter comido deitava, ainda que pela corrupção dos corpos era aquilo tão peçonhento que quem o comia logo morria. E, desta maneira, uns com fome, outros por os matarem as onças, e outros os gentios, morreram neste tempo, que se fez a cidade, 600 homens.

Para quem quer conhecer o Brasil de anteontem, pra entender o Brasil de hoje, a Carta de Antônio Rodrigues é um bom começo. Ela não é tão idílica, como a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha (também disponível no site da FBN), portanto, que o leitor fique prevenido pois, em alguns momentos, a narrativa pode embrulhar o estômago mais sensível. É que não há como ficar indiferente aos cheiros da miséria e aos gritos da violação da terra, dos povos, das crenças primitivas, em nome de Jesus Cristo.

Há muitas terras povoadas deste gênero de gentio, os quais obedecem a seus principais e neles há grande disposição para se fazerem cristãos. Praza a Nosso Senhor de mandá-los visitar, porque a nossa, porque não era para ganhar as suas almas senão para ver se tinham ouro, não lhes fez nenhum proveito na fé.

ilustração: Terra Brasilis, Atlas Miller, c 1523 – 1525/Mapas Históricos Brasileiros/ Grandes Personagens da Nossa História – Abril Cultural, 1973

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