As
lembranças das viagens de trem, na minha infância, são as melhores, delícia das
delícias. Não estou falando de (trem) metrô ou de (trem) subúrbio..., falo de Trem de Ferro que me trazia de Oswaldo
Cruz para Tupã, Marília, São Paulo. Em outubro de 2012, quando preparava
material para uma Oficina de Poesia
Aleatória, reencontrei o Trem
viajando na diversidade poética de Manuel Bandeira: Trem
de Ferro; de Ascenso
Carneiro: Trem
de Alagoas; de Solano
Trindade: Tem Gente Com Fome (Trem da Leopoldina); e de António
Jacinto: Castigo P’ro Comboio Malandro
(Trem Angolano). As minhas viagens
juvenis tinham a felicidade de Bandeira e de Carneiro..., não a angústia de
Jacinto e Trindade.
Nesta 4ª.
Estação, a parada é (ainda) do mais contundente dos trens brasileiros, no verbo
ferino (porém terno e solidário) de Solano
Trindade: Tem Gente Com Fome, publicado
em Poemas de uma Vida Simples, livro que
foi apreendido, em 1944, e levou o poeta para a prisão.
Tem
Gente Com Fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuuu
Ilustração
de Joba Tridente - 2013
Para
Bruno Fernandes: “...o poema “Tem gente
com Fome” é uma sátira ao célebre poema “Trem de Ferro”, de Manuel Bandeira.
(...) O poema de Solano Trindade não apenas ironiza o de Bandeira, como por
exemplo, faz o poeta angolano António Jacinto, com “Castigo pro comboio Malandro”. Solano vai
além dessa identificação, e realiza a própria antítese ao trabalho do autor de
“Trem de Ferro”. Assim, enquanto Manuel Bandeira percorre as ruas da cidade
mostrando a paisagem do interior, numa viagem de aventuras, Solano Trindade
carrega em seu “trem sujo da Leopoldina” toda a angústia, pobreza, falta de
afeto e injustiça a qual estão submetidos os infelizes passageiros do
cotidiano, abafados pelo “autoritário apito do trem”.” - em Literatura e Identidade: poesia de
representação em busca de uma cidadania negada - tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e
Cidadania Global - Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, 2011.
Solano Trindade (Recife, 1908 - Rio de Janeiro, 1974) foi
um multiartista: folclorista, pintor, escritor, ator, teatrólogo, cineasta. Nos
anos 1930 idealizou o I Congresso
Afro-Brasileiro, no Recife, e fundou o Centro
Cultural Afro-Brasileiro e a Frente
Negra Pernambucana. Em 1945, com Abdias Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e o Teatro Experimental do Negro. Com
Haroldo Costa fundou o Teatro Folclórico.
Na década de 1950 criou o Teatro Popular Brasileiro e o grupo de dança
brasileira Brasiliana. Trindade atuou em filmes como A Hora e a Vez de Augusto Matraga (de Roberto Santos, 1965) e O Santo Milagroso (de Carlos Coimbra, 1966) e foi o responsável pela formatação da Feira das Artes do Embu, em São Paulo.
Admirado por Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Afonso Schmidt,
Roger Bastides, Darcy Ribeiro, Sérgio
Milliet, o poeta Solano Trindade publicou Poemas
Negros (1936); Poemas de uma Vida
Simples (1944); Seis Tempos de Poesia
(1958); Cantares ao Meu Povo (1961). Em
1975 o poema Tem Gente Com Fome,
musicado por João Ricardo, não foi liberado pela censura para o disco do Secos & Molhados, mas foi gravado
por Ney Matogrosso em 1979, no LP Seu Tipo. Solano foi tema da Escola de Samba
Vai-Vai, em 1976.
Vídeos
com interpretações de Tem Gente Com Fome:
Raquel Trindade 1 e Raquel Trindade
2 ; Ney Matogrosso (incompleto); Juan Angel Italiano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário