Esta
crônica foi publicada originalmente na Gazeta
de Notícias, Rio de Janeiro (05/11/1888) e se encontra também em Machado de Assis - Obra Completa (Nova
Aguilar).
Joaquim
Serra
Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra,
vi que naquele féretro ia também uma parte da minha juventude. Logo de manhã
relembrei-a toda. Enquanto a vida chamava ao combate diurno todas as suas
legiões infinitas, tão alegre e indiferente, como se não acabasse de perder na
véspera um dos mais robustos legionários, recolhi-me às memórias de outro
tempo, fui reler algumas cartas do meu amado amigo.
Cartas íntimas e familiares, mais letras que
política. As primeiras, embora velhas, eram ainda moças, daquela mocidade que
ele sabia comunicar às coisas que tratava. Relê-las era conversar com o morto,
cuja alma ali estava derramada no papel, tão viçosa como no primeiro dia. A
cintilação do espírito era a mesma; a frase brotava e corria pela folha abaixo,
como a água de um córrego, rumorosa e fresca.
Os dedos que tinham lavrado aquelas folhas de
outro tempo, quando os vi depois cruzados sobre o cadáver, lívidos e hirtos,
não pude deixar de os contemplar longamente, recordando as páginas públicas que
trabalharam, e que ele soltou ao vento, ora com o desperdício de um engenho
fértil, ora com a tenacidade de apóstolo. Versos sobre versos, prosa e mais
prosa, artigos de toda casta, políticos, literários, o epigrama fino, o epíteto
certo ou jovial, e, durante os últimos anos, a luta pela abolição, tudo caiu
daqueles dedos infatigáveis, prestadios, tão cheios de força como de
desinteresse.
A morte trouxe ao espírito de todos o contraste
singular entre os méritos de Joaquim Serra e os seus destinos políticos. Se a
vida política é, como a demais vida universal, uma luta em que a vitória há de
caber ao mais aparelhado, aí deve estar a explicação do fenômeno. Podemos
concluir então, que não bastam o talento e a dedicação, se não é que o próprio
talento pode faltar, às vezes, sem dano algum para a carreira do homem. A posse
de outras qualidades pode ser também negativa para os efeitos do combate. Serra
possuía a virtude do sacrifício pessoal, e muito cedo a aprendeu e cumpriu,
segundo o que ele próprio mandou me dizer um dia da Paraíba do Norte, em 10 de
março de 1867:
Já te escrevi algumas linhas acerca da
minha adiada viagem em maio. Foi mister... Não sei mesmo como se exigem
sacrifícios da ordem daqueles que ultimamente se me têm exigido. Se eu contasse
tudo, talvez não o acreditarias. Enfim, não te verei em maio, mas hei de ir ao
Rio este ano.
Não me referiu, nem então, nem depois, outras
particularidades, porque também possuía o dom de esquecer, — negativo e
impróprio da vida política. Era modesto até à reclusão absoluta. Suas ideias
saíam todas endossadas por pseudônimos. Eram como moedas de ouro, sem efígie,
com o próprio e único valor do metal. Daí o fenômeno observado ainda este ano.
Quando chegou o dia da vitória abolicionista, todos os seus valentes
companheiros de batalha citaram gloriosamente o nome de Joaquim Serra entre os
discípulos da primeira hora, entre os mais estrênuos, fortes e devotados; mas a
multidão não o repetiu não o conhecia. Ela, que nunca desaprendeu de aclamar
e agradecer os benefícios, não sabia nada do homem que, no momento em que a
nação inteira celebrava o grande ato, recolhia-se satisfeito ao seio da
família. Tendo ajudado a soletrar a liberdade, Joaquim Serra ia continuar a ler
o amor aos que lhe ensinavam todos os dias a consolação.
Mas eu vou além. Creio que Joaquim Serra era
principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar
também o arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social. Onde
outros podiam ver artigos de programa, intuitos partidários, revolução economica,
Joaquim Serra via uma retificação e um complemento; e, porque era bom
e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública,
cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de
todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche.
Não importa, pois, que os destinos políticos de
Joaquim Serra hajam desmentido dos seus méritos pessoais. A história destes
últimos anos lhe dará um couto luminoso. Outrossim, recolherá mais de uma
amostra daquele estilo tão dele, feito de simplicidade, e sagacidade,
correntio, franco, fácil, jovial, sem afetação nem reticências. Não era o
humour de Swift, que não sorri, sequer. Ao contrário, o nosso querido morto ria
largamente, ria como Voltaire, com a mesma graça transparente e fina, e sem o
fel de umas frases nem a vingança cruel de outras, que compõem a ironia do
velho filósofo.
Machado de Assis (1839 - 1908) um dos mais importantes
escritores brasileiros, cofundador e primeiro presidente da Academia Brasileira
de Letras.
Ilustração: arte sobre desenho Joaquim Serra (web)
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