quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Saborear

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Saborear
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

No interior o verdadeiro sentido de cada coisa está no jeito em que se olha, ouve, cheira, saboreia a paisagem que se desvela. Diz-se que, se o gosto interior do ser tão longe da capital não é frugal, também jamais será fugaz. Longe da capital, mesmo nas cidades que minguam a olhos nus, há que se ter tempo para apreciar o que a Natureza nos oferece. Esta quarta crônica fala do sabor da existência do todo e do nada.

Na vida interior ou capital tem-se fome de muita coisa. Nãoquem não a sinta ou que não precise satisfazê-la. Quando se viaja para dentro, tem-se fome da paisagem que se afigurava plena e deliciosa no horizonte e que agora se rabisca sobra fugaz em mera abstração. Tem-se fome do saboroso verbo caipira que parafraseava o verbo oficial. Tem-se fome da saborosa sonoridade sertaneja que dialogava com a sonoridade clássica. Nas cidades minguantes tem-se fome da gostosa fase crescente, interrompida bem antes da sobremesa.

Além dos grandes centros, ser tão arraigado à terra em que nasceu não é mais um prato que satisfaz. Quer se muito mais. Na mesa que se avizinha, o cidadão espera encontrar pratos que ainda não experimentou e que jamais degustará na casa que se esvazia. Assim como na antropofagia o verbo engole palavras, como a álgebra engole cálculos. Assim como na autofagia verbal o alfabeto tem fome de letras, como a matemática tem fome de números, a cidade do interior tem fome de capital.

Querer sentir o sabor do que não se tem, não é vergonha, é necessidade. Acolá a criança quer saborear o carinho de quem pegue na sua mão, a ensine os mistérios da palavra e ouça as suas histórias. A adolescente quer saciar a sua fome quase contida do que na TV com quem ama. A velha quer se deliciar com quem pegue na sua mão, a leve para passear na praça e ouça as suas memórias. A fome pode ser um ciclo vicioso e, se saciada, um vício gostoso. Como o dos vizinhos que, indiferentes à decadência da cidade, plantam em seus quintais as mesmas frutas, assim, na época da colheita, um experimenta a do outro, para descobrir se a fruta alheia é realmente a mais saborosa. Um olha a jabuticabeira do outro, beirando o muro, com seus troncos repletos de frutos, e suspira pela hora da troca. Qualquer fome, de arte-cultura ou não, é melhor saciada quando compartilhada. Longe da capital, os sabores urbanosmuito não se misturam aos rurais, por enjoo ou acidez dos paladares. Talvez a falta de jeito, com o cardápio que se apresenta, esteja no gesto ou na fala, esteja no ato ou na forma que se conjuga o verbo oferecer. Diz um ditado chinês que não se deve dar um peixe a um faminto mas ensiná-lo a pescar.

Quando se propõe ao ser tão capaz do interior um novo olhar sobre a arte-cultura de consumo ou de apreciação é preciso estar ciente que para saborear ele precisará tocá-la.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

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