sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Cidades Minguantes: O Tocar

Escrevi Cidades Minguantes quando participava do Projeto Comboio Cultural, que durante um ano rodou todo o Paraná, levando literatura, teatro, música, dança, às cidades mais periféricas do estado. As seis crônicas foram publicadas, originalmente, no jornal Gazeta do Povo, aqui de Curitiba, entre outubro e novembro de 2001. Postei no Falas ao Acaso em abril de 2011. Mas, como em 2014 elas finalmente servirão de base para a concretização de um antigo projeto, em fase de planejamento, decidi fazer uma nova postagem!


Cidades Minguantes: O Tocar
Joba Tridente

Viajar ao interior, como Oficineiro Cultural, mais que levar informação é acolher o desconhecido. É descer do pedestal e reler a si mesmo.

No interior, o cidadão integrado no seu cotidiano é o sujeito da sua realidade e não um espectador alheio. O ser tão carente na distância capital teme o verbo que chega de fora, quando não encontra uma forma de conjugá-lo com o seu verbo usual. Esta última crônica procura refletir sobre o toque das mãos no que parece minguante em busca do crescente.

Certa vez participei de um Salão de Humor, em Brasília, com o genial Henfil, e numa conversa informal ele disse que o mau humor no mundo estava relacionado com a falta de “relamento”, com o pavor que as pessoas tinham de relar (um quase tocar) umas nas outras, mesmo que distraidamente, e se sentirem comprometidas sexualmente. Para ele, as pessoas deveriam se relar mais, não apenas para se sentirem vivas, mas para se aproximarem, trocar energia, carinho, amizade. Infelizmente o pavor de um ser humano relar num outro ser humano, assim como se relam muitos animais, continua o mesmo. Lembrei disso ao coordenar uma Oficina de Arte-Postal no interior do Paraná.  Acostumado à formalidade dos grandes centros, quando me vi em cidades quase terminais, que nem hotel possuem, compreendi que era hora de rever os meus arcaicos conceitos.

Dependurar arte em varais, como se dependura roupa ao sol, sem a segurança da moldura, da parede, da distância máxima do corpo, traçada no chão, é comungar o toque e o relar sutil de amigos e de estranhos. O tocar na arte é bem mais que relar a própria alma. É mais que ouvir um cordel. O ser tão inocente e aparentemente frágil do interior a arte e procura se reconhecer nela. Admira o que conhece e ri do desconhecido. Toca-a para sabê-la real. Toca-se para saber-se vivo. A cumplicidade é sempre compartilhada pelos comuns. Na praça central, o olhar que registra o presente, pode compreender ou ignorar a desconstrução real de um tempo tocado pela máquina. Nas mesas repletas de revistas velhas, o olhar que desconstrói uma imagem impressa e constrói outra, num cartão, pode compreender ou ignorar a sua própria catarse tocada pelas mãos.

A síntese interior é muito maior que a autoexposição. E bem menor que a autocomiseração. O olhar que se derrama sobre a velha praça, recolhe-se em meditação ao ver-se exposto numa obra de leitura quase infantil. Quase, porque, não tendo medo, a criança que limpa a ramela, briga com a cola bastão e com a tesoura, na “brincadeira de colagem maluca”, acerta nos seus desejos, mesmo que inconscientes. O tapa, naquele que olha e a arte curiosamente feita com retalhos, com sobras de outras sobras, não é um toque de cumplicidade ou um quase relar distraído, mas a marca abrasiva que tatua na memória uma estranha sensação de culpa ou de medo pelo desconhecido ou pelo não feito.

Ir ao interior realmente não é se dar a ler, pois um texto que se quer capital, pode estar tão velho e ultrapassado que nem serve mais pra enrolar a carne no açougue ainda aberto.

(*)
Ilustração: Fotoarte de Joba Tridente

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