quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Hans Christian Andersen: A Família Feliz

Hans Christian Andersen é sempre uma redescoberta de excelência. A Família Feliz é um conto gracioso e singelo. Esta versão encontra-se na edição portuguesa Contos de Andersen - Clássicos Infantojuvenis (*). Poderia enumerar as razões para a postagem, mas, para não induzir a leitura, fico apenas com uma delas: inocência.



A FAMÍLIA FELIZ
Hans Christian Andersen

A maior folha verde que existe aqui no país é, certamente, a folha da bardana. Se alguém pequenino a puser diante da barriguinha, é como um avental perfeito e, se a puser sobre a cabeça, em tempo de chuva, é quase tão boa como um guarda-chuva, porque é tremendamente grande. Uma bardana nunca cresce só. Não! Onde nasce uma, nascem muitas, são de uma grande beleza e toda essa beleza serve de comida aos caracóis.
Os grandes caracóis brancos — que as pessoas finas, em tempos antigos, mandavam preparar de fricassé — comiam as folhas e diziam «hum!, sabe tão bem!», pois acreditavam que as bardanas tinham um gosto delicioso porque eles viviam nas suas folhas e foi para ser a sua comida que estas tinham sido semeadas.
Havia então um velho solar onde já há muito não se comiam caracóis porque estavam completamente extintos. Mas as bardanas, essas, não estavam extintas, Cresciam e cresciam sobre todos os caminhos e canteiros. Já nada podia sustê-las. Era um imenso campo de bardanas. Aqui e acolá havia uma macieira e uma ameixeira e, se não fossem elas, nunca se pensaria que havia ali um pomar. Tudo era bardanas e ali viviam os dois últimos e velhíssimos caracóis.
Nem eles próprios sabiam quão velhos eram, mas lembravam-se de que haviam sido muitos, que eram de uma família provinda de um país estrangeiro e que, para eles e para os seus, fora plantado todo o campo de bardanas. Nunca tinham estado fora dele, mas sabiam que havia algo no mundo que se chamava solar. Aí, depois de cozinhado até ficar preto era-se posto em travessas de prata, mas o que acontecia a seguir não se sabia. Não eram capazes de imaginar como seria ser-se cozinhado e posto em bandeja de prata, mas devia ser algo belo e especialmente distinto. Nenhum escaravelho, sapo ou minhoca a quem tinham perguntado, podia dar a resposta. Nunca nenhum deles fora cozinhado ou posto em travessas de prata.
Os velhos caracóis brancos eram os mais distintos do mundo. O campo de bardanas estava ali por amor a eles e o solar existia para que pudessem ser cozinhados e postos em travessas de prata. Era disso que estavam convencidos.
Viviam muito sós, mas felizes. Como não tinham filhos, adotaram um caracolzinho vulgar que educaram como se fosse o seu próprio filho. Porém, o pequeno não crescia, pois era um caracol vulgar. Aos velhos, especialmente à mãe-caracol, parecia-lhe que ele se tornava maior e pediu ao pai, que já não tinha olhos que o pudessem ver, que pelo menos apalpasse a casinha do filho. Foi o que fez e achou que a mãe tinha razão.
Num dia caiu uma grande chuvada.
— Ouve como tamborila… rumpumpum, rumpumpum, nas bardanas — disse o pai-caracol.
— Também estão a cair pingos! — afirmou a mãe-caracol. — Até escorrem pelo caule! Vais ver, vai ficar tudo encharcado! Estou contente que tenhamos as nossas boas casas e que o pequeno também tenha a sua! Em boa verdade, fez-se mais por nós do que por todos os outros seres criados. Pode assim ver-se como somos de alta estirpe no mundo! Temos casa desde o nascimento e os campos de bardanas são semeados por amor de nós! Gostaria de saber até onde este mundo se estende e o que há para além dele!
— Não há nada para além! — proferiu o pai-caracol. — Melhor do que o nosso não pode ser nenhum outro lugar, lá nada há que eu deseje!
— Sim — concordou a mãe —, mas eu gostava muito de ir ao solar, ser cozinhada e posta numa travessa de prata. Todos os nossos antepassados o foram. Acredita que há algo de distinto nisso!
— O solar está possivelmente desmoronado — disse o pai-caracol — ou as bardanas cresceram por cima dele, de modo que os seres humanos não podem sair de lá. De resto, não há pressa, mas tu andas sempre numa correria terrível e o pequeno começa a fazer o mesmo. Não subiu o caule até lá acima em três dias? Até me sinto mal da cabeça quando o vejo lá no alto!
— Não deves ralhar-lhe — aconselhou a mãe-caracol. — Ele arrasta-se com tanta compostura… temos tanto prazer nele e para outra coisa não vivemos nós, velhotes! Mas já pensaste como vamos arranjar-lhe uma esposa? Não crês que lá para longe, no campo das bardanas, haja alguém da nossa raça? — Caracóis pretos creio que há bastantes — disse o velho.
— Caracóis pretos sem casa, mas são tão vulgares e têm tanta presunção! De resto podemos encarregar disso as formigas. Passam a vida a correr para trás e para a frente, como se tivessem sempre que fazer. Sabem, com certeza, de uma boa esposa para o nosso caracolzinho!
— Sei, de verdade, da mais bonita de todas! — disse uma das formigas. — Mas receio que não dê resultado porque é rainha.
— E que tem isso! — redarguiram os velhos.
— Ela tem casa? — Tem um palácio! — responderam as formigas. — O mais belo palácio de formiga com setecentas entradas.
— Obrigada — disse a mãe-caracol. — O nosso filho não vai entrar num formigueiro! Se não sabem de coisa melhor, vamos pedir aos mosquitos brancos. Voam à roda à chuva e ao Sol, conhecem o campo de bardanas por dentro e por fora.
— Temos uma esposa para ele! — informaram os mosquitos. A uns cem passos de homem há, num groselheiro, uma menina-caracol com casa, que está completamente só e com idade para se casar.
— Sim, ela que venha ter com ele! — disseram os velhos. — Ele tem um campo de bardanas, ela tem só um groselheiro!
E assim mandaram buscar a menina-caracol. Levou oito dias a chegar, mas foi muito apreciada, pois podia ver-se que era de raça.
Realizaram-se então as bodas. Seis pirilampos luziram o melhor que puderam; para além disso, tudo se passou calmamente, pois os caracóis velhos não podem suportar alvoroços e manifestações ruidosas. A mãe-caracol, contudo, fez um belo discurso. O pai, comovido, não conseguiu. Ambos deram aos noivos, em herança, todo o campo de bardanas e disseram o que sempre tinham dito: os campos de bardanas eram o melhor do mundo e se eles vivessem honesta e honradamente e se se multiplicassem, um dia todos haveriam de entrar no solar para serem cozinhados até ficarem pretos e serem postos em travessas de prata.
E depois do discurso feito, os velhos arrastaram-se para dentro das suas casas e nunca mais saíram; ficaram a dormir. O jovem casal de caracóis reinou no campo de bardanas e teve uma grande prole, mas nunca foram cozinhados e nunca foram postos em travessas de prata, pelo que concluíram que o solar se havia desmoronado e que todos os seres humanos estavam extintos. Como ninguém lhes dizia nada em contrário, era essa, portanto, a verdade.
E a chuva batia nas folhas de bardana para fazer música de tambores por amor deles, e o Sol brilhava para dar colorido ao campo de bardanas por amor a eles, e eram muito felizes, e toda a família era feliz.
Porque o era.

*
Ilustração de Joba Tridente


Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas Collin. Entre outras obras, publicou: O Improvisador (1835), Nada como um menestrel  (1837), Livro de Imagens sem Imagens  (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847). Ganhou renome com os contos (Histórias e Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há farto material na web sobre o grande mestre.


(*) Contos de Andersen – Coleção Clássicos Infantojuvenis. Edição do Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro, disponibilizada pela DGARQ (Direção-Geral de Arquivos – Secretaria de Estado da Cultura – Governo de Portugal).

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