segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Cora Coralina: Antiguidades

A escritora brasileira Cora Coralina, natural da bucólica Goiás Velho, no estado de Goiás, é mais um exemplo de talento literário reconhecido tardiamente. Embora haja registro de publicação de seus textos em jornais e revistas desde 1905 (com a crônica A Tua Volta, dedicada ao poeta Luiz do Couto), foi apenas aos 75 anos que publicou o seu primeiro livro: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. A notoriedade veio com a sua segunda edição, de 1978, que, ao merecer entusiasmados elogios do escritor Carlos Drummond de Andrade: “Se há livros comovedores este é um deles!”, chamou a atenção da crítica literária e de leitores em todo o país.

No Brasil, “intelectuais” preconceituosos, que “confundem” simplicidade com ignorância, invejosos do talento nato alheio, desdenham de escritores marcantes como Cora Coralina, Patativa do Assaré, ou mesmo Carolina de Jesus (que tem momentos de rara beleza) por julgá-los semialfabetizados. Coralina frequentou a escola por quatro anos (com a Mestra Silvina), Assaré, por um e Carolina de Jesus por dois. Todavia, se essa gente metida a besta, com suas pós-imbecilidades, se dessem ao “trabalho” de pesquisar, de fato, os autores e suas obras (que possivelmente “conhecem” só de ouvir falar), iriam fazer urgentemente um mea-culpa. Cada um dos três autores, ao seu modo, canta a sua aldeia: velha cidade, sertão e favela..., desnudando-se diante da palavra em verso ou prosa.

Há farto material biográfico e inúmeras teses defendidas por brasileiros e estrangeiros sobre os três escritores e suas obras, inclusive na internet. Um dos trabalhos mais interessantes sobre Cora Coralina é El Discurso Poético y las Condiciones de su Producción: una lectura comparada de la Poesís de Rosalía de Castro y de Cora Coralina - Tesis Doctoral de Consuelo Brito de Freitas (Universidad Complutense de Madrid - Facultad de Filología - 2004).

A poética de Cora lembra o modernismo e o ritmo poético de Drummond. Conheça, em quatro postagens, um mínimo da obra máxima de Cora Coralina. Começo com Antiguidades, do livro Poema dos Becos e Goiás e Estórias Mais.



ANTIGUIDADES
Cora Coralina

Quando eu era menina
bem pequena, 
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.

Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.
Era aquilo uma coisa de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.
Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito"
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus!...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
“- Lili é a bengala de D. Benedita”.
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando “causos” infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.

E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé. 

*
ilustração de Joba Tridente.2015


CORA CORALINA (Goiás Velho, 20.08.1889 - Cidade de Goiás, 10.04.1985), escritora de prosa (poética) e verso (em prosa) e doceira. Cora nasceu Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas: “Comecei a escrever aos 14 de idade, numa idade em que não tinha leitura, não tinha cultura e não tinha vivência. Mal tinha deixado a escola primária e escrevia o que eu chamo hoje “os meus escritinhos”. Mas eu me enchia de muita vaidade e para escrever me servia apenas do meu imaginário, nada mais. Tentei o verso, mas, enquanto a poesia esteve determinada pela rima e pela métrica, nunca consegui armar uma quadra. De modo que passei para a prosa, mas diziam em Goiás, naquele tempo, que eu escrevia a poesia em prosa e nessa ocasião procurei o meu pseudônimo porque me chamo Anna e, sendo Sant’Ana a padroeira da cidade, tinha muita Ana naquele tempo e eu tinha medo que a minha glória literária fosse atribuída a outra Ana. Procurei então, um nome que na cidade eu não tivesse xará, achei Cora. Cora só … não chegava, encontrei Coralina. Juntei os dois e hoje me identifico...”  Em sua Árvore Genealógica, Cora traz parentesco com o poeta Olavo Bilac (1865-1918), por parte do pai Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, e com o poeta Luis do Couto (1884-1948), por parte da mãe Jacyntha Luiza do Couto Brandão.

Após os inesperados elogios de Drummond e o reconhecimento nacional, Cora Coralina recebeu, em 1983, o título Doutor Honoris Causa da UFG e o Prêmio Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores. Livros de poesia: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965, 1978 e 1980); Meu Livro de Cordel (1976); Vintém de Cobre - Meias confissões de Aninha (1983). Livro de contoEstórias da Casa Velha da Ponte (1985). Livros póstumos: Meninos Verdes (infantil, 1986); Tesouro da Casa Velha (poesia, 1996); A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (infantil, 1999); Vila Boa de Goiás (poesia, 2001); O Prato Azul-Pombinho (infantil, 2001).

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