Esta
entrevista com o polêmico psicanalista Jacques
Lacan foi realizada em 1974, pelo jornalista Emilio
Granzotto, da revista italiana Panorama,
e permaneceu inédita até ser traduzida por Paul Lemoine e publicada, em
fevereiro de 2004, na edição n.428 da francesa Magazine Littéraire, em Paris. A tradução para o português é de Marcia Gatto.
Conheci a entrevista nesta terça (29.03.2016), num compartilhamento no FaceBook e a achei tão interessante (divertida e mordaz) e ainda pertinente (40 anos depois) que decidi postá-la também por aqui. Há uma tradução em espanhol no portal Centro Lacaiano.
Conheci a entrevista nesta terça (29.03.2016), num compartilhamento no FaceBook e a achei tão interessante (divertida e mordaz) e ainda pertinente (40 anos depois) que decidi postá-la também por aqui. Há uma tradução em espanhol no portal Centro Lacaiano.
foto: (?) - web |
Emilio Granzotto
entrevista Jacques Lacan
Aqui Jacques Lacan alerta sobre os
perigos do retorno da religião e do cientificismo: a psicanálise é para ele o
único baluarte aceitável contra as angústias contemporâneas.
Emilio Granzotto - Fala-se cada vez mais frequentemente de crise da psicanálise. Sigmund
Freud, dizem, está ultrapassado, a sociedade moderna descobriu que sua obra não
seria suficiente para compreender o homem nem para interpretar a fundo sua
relação com o mundo.
Jacques Lacan - São histórias. Em primeiro
lugar, a crise. Ela não existe, não pode existir. A psicanálise não
encontrou exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a
descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise, não há solução
imediata, mas somente a longa e paciente busca das razões. Em segundo
lugar, Freud. Como julgá-lo ultrapassado se nós ainda não o compreendemos
inteiramente? O que é certo, é que ele nos fez conhecer coisas
extremamente novas, que não poderíamos nem imaginar antes dele. Desde os
problemas do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico
ao assujeitamento às leis da linguagem. Sua doutrina colocou em questão a
verdade, é algo que concerne a todos e cada um pessoalmente. Uma crise é
outra coisa. Eu o repito: estamos longe de Freud. Seu nome serviu
para cobrir muitas coisas, houve desvios, os epígonos nem sempre seguiram
fielmente o modelo, confusões foram criadas. Após sua morte em 1939,
alguns de seus alunos também pretenderam exercer a psicanálise de maneira
diferente, reduzindo seu ensinamento a alguma fórmula banal: a técnica como
ritual, a prática como restrita ao tratamento do comportamento, e como meio de
readaptação do indivíduo a seu meio social. É a negação de Freud, uma
psicanálise de conforto, de salão. Ele próprio o havia previsto. Há três
posições insustentáveis, dizia ele, três tarefas impossíveis: governar, educar
e exercer a psicanálise. Atualmente, pouco importa quem assume a
responsabilidade de governar, e todo o mundo se pretende educador. Quanto
aos psicanalistas, graças a Deus, eles prosperam, como os magos e
curandeiros. Propor às pessoas ajudá-las significa um sucesso assegurado,
e a clientela se acotovelando na porta. A psicanálise é outra coisa.
EG - O que
exatamente?
JL - Eu a defino como sintoma – revelador do mal-estar
da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma filosofia. Detesto a
filosofia, há tanto tempo ela não diz nada de interessante. A psicanálise
também não é uma fé, e não me agrada chamá-la de ciência. Digamos que é uma
prática e que ela se ocupa do que não está funcionando. Terrivelmente
difícil porque ela pretende introduzir na vida do dia-a-dia o impossível, o
imaginário. Ela obteve alguns resultados até o presente, mas ainda não tem
regras e se presta a toda sorte de equívocos. É preciso não esquecer que
se trata de algo totalmente novo, seja do ponto de vista da medicina, seja do da
psicologia e seus anexos. Ela também é muito jovem. Freud morreu há
apenas trinta e cinco anos. Seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, foi publicado em 1900 com muito pouco
sucesso. Foram vendidos, creio, trezentos exemplares em alguns anos. Ele
tinha poucos alunos, tomados por loucos e nem mesmo de acordo com a maneira de
colocar em prática e de interpretar o que tinham aprendido.
EG - O que não
funciona hoje no homem?
JL - É essa grande lassidão, a vida como consequência da
corrida pelo progresso. Através da psicanálise, as pessoas esperam
descobrir até onde podemos ir carregando essa lassidão.
EG - O que empurra
as pessoas a se fazer analisar?
JL - O medo. Quando lhe acontecem coisas, mesmo
desejadas por ele, coisas que ele não compreende, o homem tem medo. Ele
sofre por não compreender, e pouco a pouco cai num estado de pânico. É a
neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente de medo de estar
doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o medo coloca
coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar, fobias nas
quais as formas e os objetos adquirem significações diversas, e que dão medo.
EG - Por exemplo?
JL - Acontece ao neurótico se sentir pressionado por uma
necessidade assustadora de ir dezenas de vezes verificar se uma torneira está
realmente fechada, ou se uma coisa está no lugar correto, sabendo entretanto
com certeza que a torneira está como deve estar e que a coisa está no lugar
onde ela deve se achar. Não há pílulas para curar isso. É preciso
descobrir porque isso acontece conosco, e saber o que isso significa.
EG - E o
tratamento?
JL - O neurótico é um doente que se trata com a palavra,
e acima de tudo, com a dele. Ele deve falar, contar, explicar-se a si
próprio. Freud define a psicanálise como a assunção da parte do sujeito de
sua própria história, na medida em que ela é constituída pela palavra
endereçada a um outro. A psicanálise é a rainha da palavra, não há outro
remédio. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo quanto
inacessível ao aprofundamento consciente. E ele dizia que nesse
inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o
sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.
EG - Palavra de
quem? Do doente ou do psicanalista?
JL - Em psicanálise os termos “doente”, “médico”,
“remédio” não são mais justos que as fórmulas no passivo que adotamos
comumente. Dizemos: se fazer psicanalisar. É um erro. Aquele que faz
o verdadeiro trabalho em psicanálise, é aquele que fala, o sujeito
analisante. Mesmo se ele o faz da maneira sugerida pelo analista, que lhe
indica como proceder e o ajuda por suas intervenções. Lhe é também
fornecida uma interpretação. À primeira vista, ela parece dar um sentido
ao que o analisante diz. Na realidade, a interpretação é mais sutil,
tendendo a apagar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O
objetivo é mostrar-lhe através de sua própria narrativa que o sintoma, a doença
digamos, não tem nenhuma relação com nada, que ela é privada de qualquer
sentido que seja. Mesmo se na aparência ela é real, ela não
existe. As vias pelas quais esse ato da palavra procede, reclamam muita
prática e uma infinita paciência. A paciência e a medida são os
instrumentos da psicanálise. A técnica consiste em saber medir a ajuda que
damos ao sujeito analisante. Em consequência, a psicanálise é difícil.
EG - Quando
falamos de Jacques Lacan, associamos inevitavelmente esse nome a uma fórmula, o
“retorno a Freud”. O que isso significa?
JL - Exatamente o que é dito. A psicanálise é
Freud. Se queremos fazer psicanálise, é necessário voltar a Freud, a seus
termos e a suas definições, lidos e interpretados no sentido
literal. Fundei em Paris uma Escola freudiana precisamente com esse
objetivo. Há vinte anos ou mais que exponho meu ponto de vista: retornar a
Freud significa simplesmente tirar o terreno dos desvios e dos equívocos da
fenomenologia existencial, por exemplo, como do formalismo institucional das
sociedades psicanalíticas, retornando a leitura do ensinamento de Freud segundo
os princípios definidos e enumerados a partir de seu trabalho. Reler Freud
quer dizer somente reler Freud. Quem não faz, em psicanálise, utiliza uma
fórmula abusiva.
...tomam-me
por um obscuro
que esconde
seu pensamento em cortinas de fumaça...
EG - Mas Freud é
difícil? E Lacan, dizem, o torna completamente incompreensível. A
Lacan repreende-se falar e sobretudo escrever de tal maneira que somente muito
poucos adeptos podem esperar compreender.
JL - Eu sei, tomam-me por um obscuro que esconde seu
pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por que. A propósito
da análise, repito com Freud que é “o jogo intersubjetivo através do qual a
verdade entra no real”. Não está claro? Mas a psicanálise não é um
negócio para crianças. Meus livros são definidos como incompreensíveis.
Mas para quem? Eu não os escrevi para todo o mundo, para que sejam
compreendidos por todos. Ao contrário, nunca me ocupei minimamente de qualquer
leitor que seja. Eu tinha coisas a dizer e as disse. É me suficiente ter
um público que leia. Se ele não compreende, paciência. Quanto ao
número de leitores, tive mais sorte que Freud. Meus livros são mesmo muito
lidos, fico surpreso com isso. Também estou convencido de que em dez anos no
máximo, aquele que me lerá me achará extremamente transparente, como um
belo copo de cerveja. Talvez até se diga então: “Esse Lacan, que banalidade!”
EG - Quais são as
características do lacanismo?
JL - É um pouco cedo para dizê-lo, no momento em que o
lacanismo ainda não existe. Sentimos dele apenas o cheiro, como
pressentimento. Lacan, em todos os casos, é um senhor que pratica a
psicanálise há pelo menos quarenta anos, e que há tantos anos a estuda. Eu
creio no estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em meu livro que
“aquilo a que nos leva a descoberta de Freud é a enormidade da ordem
na qual entramos, na qual nascemos, se podemos nos exprimir assim,
uma segunda vez, saindo do estado chamado a justo título infans,
sem palavra”. A ordem simbólica sobre a qual Freud fundou sua
descoberta é constituída pela linguagem como momento do discurso
universal concreto. É o mundo da palavra que cria o mundo das coisas,
inicialmente confusas em tudo aquilo que está em devir. Há somente as
palavras para dar um sentido completo à essência das coisas. Sem as
palavras, nada existiria. O que seria o prazer sem o intermediário da
palavra? Minha opinião é que Freud, enunciando em suas primeiras obras – A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer, Totem e tabu – as leis do
inconsciente, formulou, como precursor, as teorias com as quais alguns anos
mais tarde Ferdinand de Saussure teria aberto a via à lingüística moderna.
EG - E o
pensamento puro?
JL - Ele está submetido como todo o resto às leis da
linguagem. Somente as palavras podem engendrá-lo e dar-lhe
consistência. Sem a linguagem a humanidade não daria um passo adiante nas
pesquisas / buscas do pensamento. É o caso da psicanálise. Qualquer que
seja a função que possamos lhe atribuir, agente de cura, formação ou de
sondagem, há apenas um meio do qual nos servimos: a palavra do paciente. E
toda palavra merece resposta.
EG - A análise
como diálogo, portanto. Há pessoas que a interpretam mais como um
sucedâneo da confissão.
JL - Mas que confissão? Ao psicanalista confessamos
um belo nada. Deixamo-nos ir a lhe dizer simplesmente tudo que se passa
pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da psicanálise é o
homem como animal falante. Cabe ao analista ordenar as palavras que ele
ouve e dar-lhes um sentido, uma significação. Para fazer uma boa análise,
é necessário o acordo, o entendimento entre o analisante e o
analista. Através do discurso de um, o outro procura imaginar do que se
trata, e encontrar além do sintoma aparente o nó difícil da verdade. A
outra função do analista é explicar o sentido das palavras para fazer
compreender ao paciente o que se pode esperar da análise.
EG - É uma relação
de extrema confiança.
JL - Mais uma troca, na qual o importante é que um fala
e o outro escuta. Também o silêncio. O analista não faz pergunta e
não tem ideias. Ele só dá as respostas que ele quer realmente dar às
questões que sua vontade suscita. Mas ao final, o analisante vai sempre
aonde seu analista o leva.
EG - O senhor
acaba de falar do tratamento. Há possibilidade de curar? Sai-se da
neurose?
JL - A psicanálise tem sucesso quando ela limpa o
terreno, sai do sintoma, sai do real. Quer dizer quando ela chega à
verdade.
EG - O senhor pode
enunciar o mesmo conceito de uma maneira menos lacaniana?
JL - Eu chamo sintoma tudo aquilo que vem do
real. E o real tudo aquilo que não vai bem, que não funciona, que se opõe
à vida do homem ao afrontamento de sua personalidade. O real volta sempre
ao mesmo lugar. Você sempre encontrará lá, com os mesmos
semblantes. Por mais que os cientistas digam que nada é impossível no
real. É preciso ter um grande topete para afirmar coisas desse gênero, ou
então, como eu suspeito, a total ignorância do que se faz e diz. O real e
o impossível são antitéticos, eles não podem caminhar juntos. A análise
empurra o sujeito para o impossível, ela lhe sugere considerar o mundo
como ele é realmente, isto é, imaginário, sem significação. Enquanto que o
real, como um pássaro voraz, só faz se alimentar de coisas sensatas, de ações
que têm sentido. Ouve-se repetir que é preciso dar um sentido a isso e a
aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos,
ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada. Os sábios
perdem o fôlego a nos explicar. Meu medo é que por seus erros, o real,
essa coisa monstruosa que não existe, acabe por conseguir, por levar a melhor. A
ciência é substituída pela religião, e ela é de outra maneira mais despótica,
obtusa e obscurantista. Há um deus-átomo, um deus-espaço, etc. Se a
ciência ganha ou a religião, a psicanálise está acabada.
...para mim a única
ciência verdadeira,
séria, a ser seguida, é
a ficção científica...
EG - Atualmente,
que relação existe entre a ciência e a psicanálise?
JL - Para mim a única ciência verdadeira, séria, a
ser seguida, é a ficção científica. A outra, a oficial, que tem seus
altares nos laboratórios, avança às cegas, sem meio correto. E ela até
começa a ter medo de sua sombra. Parece que chegou o momento da angústia para
os sábios. Em seus laboratórios assépticos, alinhados em seus jalecos
engomados, esses velhos bambinos que brincam com coisas desconhecidas,
fabricando aparelhos cada vez mais complicados e inventando fórmulas cada vez mais
obscuras, começam a se perguntar o que poderá acontecer amanhã, o que essas
pesquisas sempre novas acabarão por trazer. Enfim! Digo. E se fosse muito
tarde? Os biólogos se perguntam agora, ou os físicos, os
químicos. Para mim, eles são loucos. Já que eles já estão mudando a
face do universo, vem-lhes ao espírito somente agora se perguntar se por acaso
isso pode ser perigoso. E se tudo explodisse? Se as bactérias criadas
tão amorosamente nos brancos laboratórios se transformassem em inimigos
mortais? Se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda
a merda que o habita, a começar por esses sábios dos laboratórios? Às três
posições impossíveis de Freud, governo, educação, psicanálise, eu acrescentaria
uma quarta, a ciência. Ademais, que os sábios não sabem que sua posição é
insustentável.
EG - Eis uma
versão bastante pessimista do que chamamos progresso.
JL - Não, é algo completamente diferente. Eu não
sou pessimista. Nada acontecerá. Pela simples razão de que o homem é
uma porcaria, nem mesmo capaz de destruir a si próprio. Pessoalmente,
acharia maravilhoso um flagelo total produzido pelo homem. Isso seria a
prova de que ele conseguiu fazer alguma coisa com suas mãos, sua cabeça, sem
intervenções divina, natural ou outros. Todas essas belas bactérias
superalimentadas para a diversão, espalhadas através do mundo como os
gafanhotos da Bíblia, significariam o triunfo do homem. Mas isso não
acontecerá. A ciência atravessa felizmente essa crise de responsabilidade,
tudo entrará na ordem das coisas, como se diz. Eu anunciei: o real levará
vantagem, como sempre. E nós estaremos como sempre ferrados.
EG - Outro
paradoxo de Jacques Lacan. Censuram-lhe, além da dificuldade da língua e a
obscuridade dos conceitos, os jogos de palavras, os gracejos de linguagem, os
trocadilhos à francesa, e justamente, os paradoxos. Aquele que escuta ou
que lê o senhor tem o direito de se sentir desorientado.
JL - De fato eu não brinco, digo coisas muito
sérias. Eu apenas me sirvo da palavra como os sábios de que falei de seus
almanaques e de suas montagens eletrônicas. Eu procuro me referir sempre à
experiência da psicanálise.
EG - O
senhor diz: o real não existe. Mas o homem médio sabe que o real é o
mundo, tudo que o cerca, que ele vê a olho nu, toca.
JL - Livremo-nos também desse homem médio que, em
primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção estatística. Existem
indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem da rua, de pesquisas de
opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse gênero, penso em todos os
pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de escuta. Nenhum, em
qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas fobias, as mesmas
angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não compreender. O
homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o presidente da República?
EG - Nós falávamos
de real, do mundo que todos nós vemos.
JL -
Justamente. A diferença entre o real, isto é, o que não vai bem, e o
simbólico, o imaginário, isto é, a verdade, é que o real é o mundo. Para
constatar que o mundo não existe, que ele não está aqui, é suficiente pensar em
todas as banalidades que uma infinidade de imbecis acreditam ser o
mundo. E convido meus amigos da Panorama,
antes de me acusarem de paradoxo, a refletirem bem sobre o que leram apenas.
EG - Dir-se-ia que
o senhor está cada vez mais pessimista.
JL - Não é verdade. Não me enquadro nem entre os
alarmistas nem entre os angustiados. Infeliz do psicanalista que não tiver
ultrapassado o estádio da angústia. É verdade, existem à nossa volta
coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte
de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se
deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas veem. E
depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes
que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que
devoram. Mas não há porque se fazer um drama disso. Estou certo de
que assim que estivermos de saco cheio de foguetes, da televisão e de todas
suas malditas pesquisas no vazio, encontraremos outra coisa com a qual nos
ocuparmos. É uma revivescência da religião, não é? E que melhor
monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se
divertir por séculos, como isso já foi demonstrado. Minha resposta a tudo
isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal. O único real que
podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se
fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma,
o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria
professor de segundo grau.
EG - As angústias
são toda dessa natureza ou existem angústias ligadas a certas condições
sociais, a certa época histórica, a certas latitudes?
JL - A angústia do sábio que tem medo de suas
descobertas pode parecer recente. Mas o que sabemos nós do que aconteceu
em outros tempos? Dos dramas de outros pesquisadores? A angústia do
operário escravo da cadeia de montagem como de um remador de galera, é a
angústia de hoje. Ou, mais simplesmente, ela está ligada às definições e
palavras de hoje.
EG - Mas o que é a
angústia para a psicanálise?
JL - Algo que se situa fora de nosso corpo, um medo, mas
de nada, que o corpo, espírito incluído, possa motivar. O medo do medo, em
suma. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os
percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade é sem
remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar na
palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande
desconhecido.
EG - Agora que se
distribui sexo em todas as curvas, sexo no cinema, sexo no teatro, na
televisão, nos jornais, nas canções, nas praias, ouve-se dizer que as pessoas
estão menos angustiadas com os problemas ligados à esfera sexual. Os tabus
caíram, dizem, o sexo não dá mais medo.
JL - A sexomania invasora é apenas um fenômeno
publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que diz respeito, repito-o, a uma
relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o
analista. Não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias
ou neuroses de massa. Que o sexo seja colocado na ordem do dia e exposto
na esquina das ruas, tratado como um detergente qualquer nos carrosséis
televisivos, não comporta nenhuma promessa de algum benefício. Não digo que
isso seja ruim. Não é suficiente certamente para tratar as angústias e os
problemas particulares. Faz parte da moda, dessa fingida liberalização que
nos é fornecida, como um bem dado de cima, pela dita sociedade
permissiva. Mas não serve ao nível da psicanálise.”
Jacques-Marie Émile
Lacan (Paris, 13.4.1901 - Paris, 9.9.1981), psicanalista francês, nasceu em
uma família de sólida tradição católica. Na adolescência rompeu com o catolicismo e passou a
dedicar-se, com afinco, à vanguarda literária. Leu Baruch Spinoza, Nietzsche,
Charles Maurras, os surrealistas e James Joyce. Frequentou de livrarias e
grupos de escritores e poetas e foi aluno de Gaëtan Gatian de Clérambault. Embora
estimado fora dos meios psicanalíticos franceses, Lacan não recebeu
reconhecimento da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), na qual seus
trabalhos não eram considerados e seu anticonformismo causava irritação. A
partir de 1936, deduziu que a obra freudiana devia ser relida “ao pé da letra”
e à luz da tradição filosófica alemã. Em 1938, nutrindo forte sentimento de
repugnância em relação ao triunfo do nazismo, concluiu que a psicanálise
nascera do declínio do patriarcado e argumentava a favor da revalorização de
sua função simbólica no mundo ameaçado pelo fascismo. Em 1965, Lacan fundou a
coleção Champ Freudien nas Éditions du Seuil e em 1966, publicou os
Escritos. Em 1974, dirigiu um ensino
do “Campo Freudiano” no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris
VIII. Sofrendo de distúrbios cerebrais e de uma afasia parcial, Lacan morreu em
9 de setembro de 1981, após a retirada de um tumor maligno no cólon.
Resumo da resenha elaborada por Aurea Chagas Cerqueira, que você pode ler na íntegra no portal da Federação Brasileira de Psicanálise. Na internet há muito material biográfico sobre Lacan. Não encontrei informação alguma sobre o jornalista Emilio Granzotto.
Resumo da resenha elaborada por Aurea Chagas Cerqueira, que você pode ler na íntegra no portal da Federação Brasileira de Psicanálise. Na internet há muito material biográfico sobre Lacan. Não encontrei informação alguma sobre o jornalista Emilio Granzotto.
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