Desde a primeira leitura desta excelente entrevista concedida
pelo escritor e jornalista e cineasta Valêncio Xavier à escritora e
jornalista Marilia Kubota, há alguns anos, ansiava pela oportunidade de também
vê-la publicada no Falas ao Acaso.
Admirador dos dois autores, solicitei e Marilia me concedeu a honra de publicá-la...,
para o deleite do leitores que sabem que no acaso
também se encontram falas da maior
qualidade.
foto de João Wainer |
O
FANTÁSTICO MUNDO DE VALÊNCIO XAVIER
Marilia
Kubota
Valêncio
Xavier Niculitcheff, como Carlitos, é um clochard ocupado em se virar pelo mundo.
Nasceu em São Paulo, em 1933 e passou a juventude no Rio Grande do Sul e no Rio
de Janeiro. Em 1959, embarcou para a França, onde trabalhou como fotógrafo
durante um ano em Paris. No começo dos anos 60, veio para Curitiba para
inventar a TV do Paraná.
Em Curitiba, trabalhou como desenhista, cenógrafo, produtor, redator de teleteatro, humor, musicais e reportagens. Em 1966, foi contratado pela Globo, de São Paulo, onde ficou até 1969. A experiência na produção de programas policiais foi determinante em seu processo de criação literária, inspirado nos inquéritos investigativos.
Nos anos 80, fez
pesquisa de imagens para os cineastas Silvio Tendler, Sylvio Back e Eduardo
Escorel. Também foi o criador, com Francisco Alves dos Santos, do projeto da
Cinemateca do Museu Guido Viaro de Curitiba, do qual foi diretor. Como
cineasta, recebeu o prêmio de Melhor Filme de Ficção, pela produção de Caro
Signore Feline, na IX Jornada Brasileira de Curta Metragem. Realizou, entre
outros vídeos, O Pão Negro – Um Episódio da Colônia Cecília e Os 11
de Curitiba, Todos nós.
A produção literária começou com o livro Curitiba de nós, em 1975, biografia do pintor Poty Lazarotto. A seguir, surpreendeu a crítica com a novela gráfica O Mez da Grippe, em 1981. Passou a ser cultuado por críticos e escritores como Décio Pignatari, publicando livros artesanais, de baixa tiragem. Seguiram-se História de Curitiba em Quadrinhos (1981), Maciste no Inferno (1983), O Minotauro (1985), O Mistério da Prostituta Japonesa e A Propósito de Figurinhas (1986), antologia Sete de Amor e Violência (1986), Poty – Trilhos, Trilhas e Traços (1994) , A Guerra de Carlos Scliar (1995), Meu Sétimo Dia (1998).
Em 1998, a crítica
Flora Sussekind o indicou para Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras,
que reuniu num só volume os livros O Mez da Grippe, O Minotauro, O
Mistério da Prostituta Japonesa e 13 Mistérios + O Mistério da Porta Aberta. O
livro recebeu, em 1999, o prêmio Jabuti de Melhor Produção Editorial. Em 2001 a
mesma editora publicou Minha mãe morrendo e menino mentido, e a
Publifolha, Crimes à Moda Antiga, em 2004.
A seguir, transcrevo uma entrevista que fiz por escrito com Valêncio Xavier (1933-2008), uma das últimas que ele deu, antes de ficar doente de Alzheimer:
MARILIA KUBOTA - Como foi seu despertar para a literatura e o gosto
pela arte da palavra?
VALÊNCIO
XAVIER - Vou separar dois momentos, um na infância e outro mais
tardio. Em criança eu já era louco por mágica, lia livros, assistia espetáculos
de mágicos, comprava aparelhagem e fazia truques para impressionar a garotada.
O truque que eu mais gostava de fazer era o do livro mágico: Eu mostrava um
livro, folheava mostrando que ele tinha as páginas em branco. Folheava outra
vez e apareciam somente palavras, mais uma folheada e apareciam somente
desenhos, mais outra e se via apenas pautas musicais. Não vou aqui revelar o
truque, é contra a ética dos mágicos, mas eu criança tinha inveja de não ter
inventado esse livro. Nunca fui muito leitor de poesia, a influência tardia foi
Anabase, de Saint-John Perse
(1887-1975), um longo poema que conta uma história, mas não revela que história
é essa: Nasceu um poldro em baixo das
folhas de bronze. Um homem pôs essas bagas amargas em nossas mãos. Estrangeiro.
Que passava. E eis um grande rumor numa árvore de bronze. Betume e rosas, dom
do canto! Trovão e flautas pelas câmaras! Ah! tanta facilidade em nossas vias,
ah! quantas histórias pelo ano em fora, e o Estrangeiro com suas maneiras pelos
caminhos de toda a terra!... Eu vos saúdo, minha filha, sob a mais bela
roupagem do ano. (tradução Bruno Palma) A obsessão de Saint-John Perse pela
etimologia. A palavra certa na hora certa com a entonação certa. Qual a palavra
certa para traduzir o sentido da palavra anabase?!
Por que desperdiçar palavras para contar nossa história e não aquela que
estamos contando? E que a palavra já tenha em si a densidade absoluta do que
ela tem a dizer. Partindo de Saint-John Perse fui ler a Anabase, do historiador grego Xenofonte. Por sua composição ferrosa
as montanhas da Armênia tem uma leve coloração azul, ao descrever a retirada do
exército de Ciro, Xenofonte se refere a elas como as montanhas azuis da
Armênia.
MK - Antes de lançar O Mez da Grippe, em 1981, você dizia em entrevistas não desejar uma carreira literária. Dizia-se satisfeito como produtor de TV e cineasta e tinha pouca literatura escrita. Quando começou a mudar?
VX
- Não é bem assim. Sou o rei da preguiça. Sempre trabalhei em televisão,
passava o dia escrevendo programas de tudo que é tipo: humor, musicais,
entrevistas, reportagens, documentários, tele-teatro, telenovelas, e por aí
vai. Fora o que eu escrevia para jornais e revistas aqui e ali. Além de empatar
meu tempo, isso não deixava de ser um tipo de literatura e punha dinheiro no
bolso. O Mez foi de cara um sucesso
de crítica e de um certo público. E eu deixara a televisão, tinha mais tempo
livre para escrever outras coisas.
MK – A publicação de O Mez pela Companhia das Letras foi um investimento de risco num mercado voltado para o lucro. Você acha que existe público para a prosa de invenção?
VX
- Imaginava
que O Mez da Grippe ia fazer certo
sucesso entre meu público costumeiro, mais de ambiente universitário ou
especializado. Mas pegou também o público geral, que se diverte e não se
chateia com minhas histórias. Há muitos nesse Brasil afora, considerados
malditos, que fazem uma literatura experimental sem querer cagar regras, ou
meter sapiência, ideologias e mágoas em seus textos, ou imitando esse e aquele
– escrevem só pelo prazer de escrever. Um grande público espera por eles, é só
uma editora decente se interessar. De momento eu cito o André Sant’Anna com seu
primeiro livro Amor e o Sebastião
Nunes: você sabe, Sebastião, que eu queria que aquilo que está acontecendo
comigo acontecesse com você.
MK - Truques mágicos, mitos
clássicos e mistérios estão sempre em seus livros. Por que você busca estes
temas?
VX
-
Mais magia do que mágica, menos mito e mais minto, mais perguntas que não sei
as respostas do que mistério, penso ser esses os meus “temas”, se é que posso
chamá-los assim. Não tenho nenhum interesse nem a mínima pretensão de tentar
compreender o mundo, apenas vivo nele.
MK - Algumas histórias suas parecem extraídas de novelas policiais ou programas populares de TV, descrevendo a miséria e a paixão humanas. Como você escolhe a linguagem de uma obra? Você tem obsessões literárias? Como sabe que uma história chega à forma final?
VX - Vamos por partes. Novelas policiais e
programas populares de TV são parte das misérias e paixões humanas, e a minha
linguagem é a única que sei transar. E não escolho temas, eles é que me
escolhem. Sim, os assuntos me perseguem, mas que eu saiba minha única obsessão
é o amor. Canso de dizer que no meu computador tem colado uma frase do cineasta
Alain Resnais, mestre da forma e do conteúdo: “A forma preexiste em algum lugar, não sei onde, e se incorpora na
história à medida que escrevemos”. Não tem nada de sobrenatural, a gente
tem de sentir quando a forma se completa e quando a história termina, senão
danou-se tudo.
MK - Como é que você compõe as histórias? Quando tem uma ideia começa a caçar informações? Como é este processo de montagem?
VX
-
Começa na cabeça, e eu não vou à caça. Em determinados momentos o próprio desenrolar
da história pede os elementos que a compõe. Não sou o que se chama de um
pensador; se não fosse muita pretensão da minha parte, diria como Picasso
disse: “Eu não procuro, eu acho”. E
se reparar bem, você verá que escrevo mais em planos seqüências do que em
montagem de frases curtas em cortes rápidos, que erroneamente se considera
linguagem cinematográfica. Maciste no
Inferno é um único longo plano seqüência. O que há, talvez, é um
sincronismo do passado, presente e do que possa acontecer no futuro – mas isso
está somente na cabeça dos personagens das histórias que eu escrevo.
foto (?): web |
MK - Quais seus autores preferidos, na literatura e no cinema ?
VX - Mark Twain, Alain Robbe-Grillet, Gustave Flaubert, Elio Vittorini, Luis
Buñuel, Alain Resnais, Orson Welles, Peter Greenaway e Shoei Imamura.
MK - Ver filmes influencia o que você escreve ?
VX
-
Sou da teoria que todos nós vemos os nossos filmes, e não aquele que está na
tela. Se um dia fossemos juntos ao cinema, você iria ver o seu filme, muito
diferente daquele que eu estiver vendo, e do que o espectador ao seu lado está
assistindo, o que está ao meu lado poderia até ter dormido justamente naquele
momento que mais me emocionou. Tudo que acontece só acontece dentro de cada um
de nós. E não tem coisa mais fácil do que contar o que está dentro de nós. Além
de ser divertido, podemos até controlar o que vamos contar para não acabar
atrás das grades, ou no hospício.
MK - Pra quem você escreve? O escritor tem que pensar no leitor ou escrever só pra si mesmo?
VX
-
E eu lá que sei? Eu só escrevo para mim, com exceção de um livro que escrevi
para outra pessoa ler. O leitor é que deve descobrir o livro, e não o autor.
Ah, por que eu não dizer como Saint-John Perse: “Terra arável do sonho! Quem fala em construir?”.
MK - Por que você faz literatura?
VX
- Nunca
me perguntei isso, nem vou perguntar. Sei que posso muito bem viver sem
escrever, as únicas coisas que não dá para viver sem elas são comer, beber
(água) e amar. Às vezes, muito raramente, me lembro de eu menino, antes de ter
idade para entrar na escola, enchendo páginas e páginas de cadernos com garranchos,
achando que tinha escrito alguma coisa que fazia sentido. Não sei se isso tem
alguma coisa a ver comigo hoje.
MK - O que a gente escreve pode mudar a vida das pessoas ?
VX
-
Isso vale não só para o que escrevemos: Infelizmente, ou felizmente, nunca
ficamos sabendo de que maneira nossos atos podem, ou não, mudar a vida das
pessoas. Eu poderia contar uma historinha, mas não sei se vale a pena. Quando
saiu a primeira edição de O Mez da Grippe,
uma pessoa de outro estado me escreveu dizendo que estava em véspera de se
matar, mas depois que leu o livro desistiu. De vez em quando essa pessoa me
escreve contando como vai sua vida: casou, tem filhos, está tudo bem. Verdade? Mentira?
Não sei.
foto (?) web |
MK: Aqui, um retrato de Valêncio Xavier, que escrevi para o jornal Gazeta do Povo, em seu aniversário de 70 anos, em 2013.
MARILIA
KUBOTA é poeta e jornalista, mestre em Estudos Literários pela
Universidade Federal do Paraná.Orientadora de oficinas de criação literária
desde 2005. Livros: micropolis (2014)
Esperando as bárbaras (2012) e Selva de Sentidos (2008). Organizou a
antologia Retratos Japoneses no Brasil
(São Paulo, Annablume, 2010) e participou de mais 11 coletâneas. Organizou o Concurso Nacional de Haicai Nempuku Sato,
Arte Nikkei no Centenário (2008) e a Mostra de Cinema Nikkei (2010). É
editora do JORNAL MEMAI – Letras e Artes
Japonesas.
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