Em seu
livro Contos Para A Infância (1877),
Guerra Junqueiro selecionou belos contos,
fábulas e parábolas da tradição oral europeia. Em alguns trabalhos o moralismo
e ou a religiosidade exagerada me incomodam. Prefiro os mais sutis como: Boa Sentença, O Ermitão, Presente porPresente. Atualizei levemente a grafia das postagens.
O Ermitão
Um homem, animado pela mais ardente crença
religiosa, deliberou retirar-se a uma gruta solitária para se consagrar
inteiramente ao trabalho da sua salvação. Jejuando sempre, orando,
ciliciando-se, os seus pensamentos não se desviavam nunca da ideia de Deus.
Depois de ter assim vivido durante muitos anos, uma noite lembrou-se de que já
tinha merecido um lugar glorioso no paraíso, e podia ser contado entre os santos
mais notáveis.
Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e
disse-lhe:
- Há no mundo um pobre músico, que anda de porta
em porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas
eternas.
O ermitão, atônito, ao ouvir estas palavras,
levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do músico e mal o encontrou
disse-lhe:
-Irmão, diz-me que boas obras fizeste, e por
meio de que orações e penitências te tornaste agradável a Deus.
- Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a
cabeça, santo padre, não zombes de mim. Nunca fiz boas obras, e quanto a
orações não as sei, pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é andar de
casa em casa a divertir os outros.
O austero ermitão continuou a insistir:
- Estou certo que, no meio da tua existência
vagabunda, praticaste algum ato de virtude.
- Em verdade não poderia citar nem um só.
- Mas então como chegaste a este estado de
pobreza? Tens vivido loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste
frivolamente o teu patrimônio e o produto do teu oficio?
- Não; mas um dia encontrei uma pobre mulher
abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão para pagar
uma dívida. Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em
minha casa, protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía para
resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia encontrar-se com seu
marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro tanto?
A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e
exclamou:
- Nos meus setenta anos de solidão nunca
pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus,
enquanto que tu não passas de um pobre músico.
*
Ilustração
de Joba Tridente - 2013
Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg.
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