Em seu
livro Contos Para a Infância (1877),
Guerra Junqueiro selecionou belos
contos, fábulas e parábolas da tradição oral europeia. Em alguns trabalhos o
moralismo e ou a religiosidade exagerada me incomodam. Prefiro os mais sutis
como: Boa Sentença, O Ermitão, Presente por Presente. Atualizei levemente a grafia das postagens.
Presente
por Presente
Um grande fidalgo, que se tinha perdido numa
floresta, foi dar de noite à choupana de um pobre carvoeiro. Como este ainda
não tinha chegado, foi a mulher que recebeu o importante personagem. Acolheu-o
o melhor que pôde, desculpando-se da miserável hospitalidade que lhe ia dar,
porque eram batatas cozidas a única coisa que lhe poderia oferecer; cama não a tinha,
por conseguinte dormiria sobre a palha. Mas o estrangeiro estava morto de fome
e de fadiga; as batatas souberam-lhe mais do que faisões, e dormiu melhor em
cima da palha do que num leito de príncipes. Ao outro dia pela manhã disse isto
mesmo à pobre mulher, gratificando-a ao despedir-se com uma moeda de ouro. Mas,
como o desconhecido lhe tinha dito que a guardasse como uma pequena lembrança,
a boa camponesa julgou que seria uma medalha, e sentiu que não tivesse um
buraquinho para a trazer ao pescoço. Quando o carvoeiro chegou a casa,
contou-lhe logo o que lhe tinha acontecido, mostrando-lhe a moeda preciosa. O carvoeiro
examinou os cunhos e o valor da moeda de ouro, e disse para a mulher:
- Esse forasteiro era nada mais nada menos do
que o nosso príncipe!
E o bom do homem não podia conter-se de alegria,
por sua alteza ter achado as suas batatas melhores do que faisões.
É necessário confessar, disse ele com um ar
triunfante, que não há talvez no mundo um terreno mais favorável do que este
para a cultura das batatas; hei de lhe levar um cesto delas, já que as acha tão
boas.
E partiu imediatamente para o palácio com uma
provisão de batatas escolhidas. Os lacaios e as sentinelas ao princípio não o
queriam deixar entrar; mas insistiu energicamente, dizendo que não vinha pedir
nada, e que pelo contrário vinha trazer alguma coisa.
Foi, pois, introduzido na sala da audiência.
- Meu senhor, disse ele ao príncipe: Vossa
alteza dignou-se recentemente pedir hospitalidade à minha mulher, e dar-lhe uma
peça de ouro, em troca duma enxerga miserável e de um prato de batatas cozidas.
Era pagar demasiadamente, apesar de serdes um príncipe muito rico e poderoso.
Eis o motivo porque eu venho trazer ainda a vossa alteza um cestinho das batatas,
que vos souberam melhor do que os vossos faisões. Dignai-vos aceitá-las, e, se
nos fizerdes de novo a honra de ser nosso hóspede, lá as encontrareis sempre ao
vosso dispor.
A honrada simplicidade do camponês agradou ao
príncipe, e, como estava num momento de bom humor, fez-lhe doação de uma quinta
com trinta jeiras de terra.
Ora o carvoeiro tinha um irmão muito rico, mas
invejoso e avarento, que, sabendo da fortuna do irmão mais novo, disse consigo:
- Porque não me há de suceder a mim outro tanto? O príncipe gosta do meu
cavalo, pelo qual lhe pedi sessenta libras, que ele me recusou. Vou lhe fazer presente
dele: se deu ao João uma quinta com trinta jeiras de terra, simplesmente por um
cesto de batatas, a mim com certeza me há de recompensar ainda mais
generosamente.
Tirou o cavalo da estrebaria e levou-o para
defronte das portas do palácio; recomendou ao criado que o segurasse, e, atravessando
com ar altivo as alas dos lacaios, penetrou na sala da audiência.
- Ouvi dizer, disse ele, que vossa alteza gosta
do meu cavalo; não tenho querido trocá-lo a dinheiro, mas dignai-vos
permitir-me que lhe ofereça.
O príncipe viu imediatamente onde o nosso homem
queria chegar, e disse consigo: - Deixa estar, tratante, que te vou dar a paga
que mereces.
Depois dirigindo-se a ele:
- Aceito a tua dádiva, mas não sei como
agradecer-te condignamente. Oh! espera um pouco: Eis aqui um cesto de batatas
mais saborosas do que faisões. Custaram-me trinta jeiras de terra. Parece-me
que é um bom preço para um cavalo, que eu poderia ter comprado por sessenta
libras.
E entregando-lhe o cesto, mandou-o embora.
*
Ilustração
de Joba Tridente - 2013
Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg.
Nenhum comentário:
Postar um comentário