domingo, 8 de junho de 2014

Tradição Oral: A Mulher Gaiteira

Ah, as coincidência! Na quinta-feira, 5/6/2014, vi uma postagem curiosa no Facebook: Um pinto contra Francisco Sá, sobre uma estudante diariamente cantada por um porteiro, no Rio de Janeiro. Cansada do assédio, exatamente no dia e hora em que resolveu reagir, ia passando uma repórter que aproveitou o desabafo da garota para fazer uma matéria. O que deu algum pano pra manga! Neste dia eu estava terminando de ler Contos Populares do Brasil 2 (1897), recolhidos por Silvio Romero, e, para a minha surpresa, eis que, entre os últimos contos da Seção Terceira: Contos de Origem Africana e Mestiça, encontrei O Caboclo Namorado (Sergipe) e Mulher Gaiteira (Rio de Janeiro) que, coincidentemente, falam de cantada, de assédio sexual. Divirta-se..., ou não.  Ai! Ai! Ai!!!!



A Mulher Gaiteira

Havia uma mulher casada e que não tinha filhos. Defronte dela morava um padre, pelo qual a mulher apaixonou-se.
Ela chamava-o de Rabo de galo, por ele ter os cabelos muito bonitos.
O padre não correspondia e mesmo nem sabia de tal paixão.
A mulher já não governava mais a casa e só queria estar na janela para ver o padre. Estava já tão doida, que chegava a dizer ao marido: “Não é bonito aquele padre?” O marido fingia não compreender e afirmava o que ela dizia.
Não satisfeita de ver o padre só da janela, a mulher não perdia missa um só dia, a pretexto de ir rezar, e o marido suportando tudo calado. Querendo ver até que ponto chegava aquela mulher, pretextou uma viagem e escondeu-se perto de casa, recomendando à negra que lhe fizesse sabedor de tudo 0 que sua mulher praticasse na sua ausência.
Não tardou em que a negra lhe viesse entregar um bilhete que a senhora ia mandar por ela ao padre, no qual pedia-lhe uma entrevista à noite, visto o marido não estar em casa. O homem apoderou-se do bilhete, disse à negra que dissesse à senhora que o tinha entregado ao padre, e escreveu, disfarçando a letra, outro bilhete, dizendo ser do padre, aceitando o convite e marcando a hora da dita entrevista. Trouxe a negra o bilhete e deu-o à senhora. Esta não cabia em si de contente, e à hora marcada, entrou o marido, que se disfarçou no padre, vestido de batina, e com um grande chicote de couro cru escondido. A mulher convidou-o a entrar no quarto para descansar. Aí não teve dúvida; o marido empurrou-lhe o chicote a torto e a direito, ainda fingindo ser o padre e dizendo: “Mulher casada, sem vergonha, como é que seu marido não está em casa, e manda-me um bilhete convidando-me para vir aqui! Tome juízo”, dizia o padre, e empurrava o chicote na mulher. Ela desesperada com as bordoadas, dizia: “Vai-te embora, padre dos diabos, se eu soubesse que tu eras tão mau, não tinha caído nesta. Sai, malvado, tu queres me matar? Basta, não me dês tanto.” O marido, depois que deu-lhe muito, saiu deixando a mulher quase morta de pancadas. Mudou toda a roupa, e veio para casa, fingindo ter chegado da viagem. Perguntou pela mulher e disseram-lhe que ela estava doente. Ele, muito penalizado, perguntou que moléstia era aquela, pois ele a tinha deixado tão boa. Ela respondeu que sentia muitas dores pelo corpo, mas que também não sabia 0 que era. Mal pôde dizer estas palavras ao marido, e começou logo a gritar, tão forte era o seu sofrimento. Então o marido disse que ela estava muito mal, e que ele ia mandar chamar aquele padre, que morava defronte, para confessá-la. A mulher ouvindo isto, exclamou: “Não, marido, por Nossa Senhora não me mande chamar aquele padre.” O marido replicou: “Pois mulher, você não o acha tão bonito, e como não quer que ele venha lhe confessar?” E para apreciar bem o efeito da surra, mandou chamar o padre do Rabo de galo, como a mulher o chamava, e este veio confessá-la, alheio a tudo o que tinha se passado. A mulher, assim que foi vendo o padre, foi dizendo: “Sim, seu diabo, ainda achou pouca a surra que me deu, e ainda se atreve a vir aqui? Sai, diabo, vai-te embora.”
O padre ficou espantado, e acreditou que a mulher estava com efeito muito doente, que talvez estivesse com o diabo no corpo, e então benzia-a e dizia: “Filha, acomoda-te, lembra-te de Deus, que estás para morrer. Eu esconjuro este mau espírito, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amem.”
“Sim, dizia a mulher: eu esconjuro é a surra que tu me deste.” O padre, depois de muita reza retirou-se, e o marido quase que não podia conter o riso. Passados muitos dias, de cama, levantou-se a mulher curada da grande surra. A primeira coisa que fez, foi pregar a janela que dava para a casa do padre, com uns pregos bem fortes, o que vendo o marido, disse-lhe que não fizesse aquilo, que aquela janela era para ela se distrair nas horas vagas. Por mais que o marido pedisse, a mulher não foi capaz de deixar de pregar a janela e nunca mais olhou o padre.¹

Nota de Silvio Romero: 1. Tema que parece de origem europeia, porém profundamente alterado pelo mestiço.

*
Ilustração de Joba Tridente. 2014


Silvio Romero (1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais. Entre outras obras é autor de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A literatura brasileira e a crítica moderna (1880);  Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885); Contos Populares do Brasil  2 (1887); História da literatura brasileira, I e II (1888); A poesia popular no Brasil (1880);  Compêndio da História da Literatura Brasileira (1906). 

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