Nas
minhas considerações sobre o filme de terror O Espelho, que estreia nesta semana, cito o conto fantástico O Espelho, de Machado de Assis,
publicado no livro Papéis Avulsos, em 1882. Para quem ainda não o conhece, eis a
obra que, por vezes, apavora mais que o filme.
O
ESPELHO
Esboço
de uma nova teoria da alma humana
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite,
várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos
trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa
Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente
com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras,
e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada,
estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo
amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram
quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem,
calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou
outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros,
entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não
sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se
da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto
batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins
e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna.
Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e
desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava
ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que
este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou
quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto
que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o
acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade
das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência
dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma
conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma
ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se
querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que
ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em
primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana
traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de
fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de
ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou
dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos
homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão
de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o
voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor,
etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a
primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma
laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e
casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência
inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados;
perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a
Tubal; é um punhal que me enterras no
coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma
exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso
saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não
aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que
morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas
enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável.
Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um
chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos.
Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda
de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera;
cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um
baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo
nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho
experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao
episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...
Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso
prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da
civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que
não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e
metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta
a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava
de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que
isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me
o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila,
note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na
Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e
que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente
gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se
davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação,
tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que
todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D.
Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num
sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e
levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila,
porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo
que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me
também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca,
chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher.
Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E
sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu
pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça,
bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do
finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o
"senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos
escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor
lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo
da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho,
obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta
e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe,
que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não
sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente
muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns
delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de
madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
- Espelho grande?
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza,
porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve
forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só
por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia
muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram
em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou.
Imaginam, creio eu?
- Não.
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns
dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse
à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma
exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de
natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava
do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo
foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar
e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos
ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os
sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de
moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento
andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do
homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas,
as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática
ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro.
Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia
grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco
léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe
extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim
que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o
contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com
os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande
opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere,
subitamente levantadas
em torno de mim. Era a alma exterior que se
reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava
a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais
débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de
certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida.
Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos.
Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de
ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um
concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal
podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os
velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir
durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro
paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano.
Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e
galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas,
e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes
que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não
tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as
primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina;
fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe
dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre,
para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu
ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o
irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído
havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei
a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não
tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse
dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções
enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com
uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho
relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac,
feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando,
muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei
este famoso estribilho: Never, for ever!
- For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles
dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever! - For ever, never!
Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E
então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo
que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais
larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas
salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma...
Riem-se?
- Sim, parece que tinha um pouco de medo.
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria.
Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto
é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um
defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O
sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra.
Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade
de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente,
no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam
alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro
o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro,
esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma
interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em
não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria
algum sinal de regresso. Soeur Anne,
soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na
lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros.
Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava,
tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever
alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente;
sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no
estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma.
Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
- Mas não comia?
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas
raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a
terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos
latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta
volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o
efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo
silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
- Na verdade, era de enlouquecer.
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que,
desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção
deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de
achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação
é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito
dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me
dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do
universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o
espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim
devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o
fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e
enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau
humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava,
mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo,
tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os
botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para
o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de
contornos... Continuei a vestir-me.
Subitamente por uma inspiração inexplicável, por
um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a
minha ideia...
- Diga.
- Estava a olhar para o vidro, com uma
persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e
inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento...
Não, não são capazes de adivinhar.
- Mas, diga, diga.
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a,
aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos,
e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma
linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava,
enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e
fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que,
pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a
ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem
outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira,
ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para
o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro
exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante,
fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me
diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me
outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha
descido as escadas.
*
Ilustração de Joba
Tridente
Joaquim Maria Machado de Assis (RJ,
1839-1908), escritor, dramaturgo, jornalista, crítico literário, cofundador
e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, onde
se encontra farto material biográfico sobre o autor.
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