sábado, 17 de outubro de 2015

Hans Christian Andersen: O Bule

Aproveitando a comemoração da Semana da Criança, no Brasil, como desculpa, estou publicando uma série de sete contos do grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que já apareceu por aqui, em setembro e outubro de 2014, com os emblemáticos O Livro MudoA Família Feliz e Só A Pura Verdade. A obra de Andersen, com sua rica alegoria, também (ou até mais) cala fundo na consciência do público adulto. Algumas ilustrações Edna F. Hart e ou de F. Reiß são das edições originais disponibilizadas pela Biblioteca Gutemberg e ou Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro. Ontem foi dia d’O Papílio. Hoje a mesa está posta para o belíssimo O Bule.



O BULE
Hans Christian Andersen
ilustração de Joba Tridente

Era uma vez um Bule muito orgulhoso. Orgulhoso por ser de porcelana, orgulhoso do seu longo bico e orgulhoso da sua asa bojuda. Tinha o bico à sua frente e a asa atrás de si. Era acerca dos dois que falava sem parar.

Nunca falava da tampa que estava partida e colada, ou seja, que era defeituosa. Ninguém gosta de falar dos seus defeitos, basta que os outros o façam por nós.

As chávenas, a leiteira e o açucareiro — numa palavra, todo o serviço de chá — pensavam muito mais nos defeitos da tampa e falavam muito mais acerca dela do que acerca da asa robusta e do bico tão distinto.

O Bule sabia que assim era.

«Conheço bem os meus defeitos — disse o Bule para com os seus botões. — Reconheço-os e admito-os. Penso que é nisso que reside a minha humildade e a minha modéstia. Todos temos muitos defeitos, mas também temos virtudes.

As chávenas têm asas, o açucareiro tem uma tampa. Mas eu tenho as duas coisas e, além disso, possuo aquilo que nenhum deles jamais terá — um bico — e é por sua causa que sou o rei da mesa de chá.

A função do açucareiro e da leiteira é servir iguarias, mas sou eu que impero. Reparto bênçãos pela humanidade sedenta. No meu interior, as folhas chinesas dão sabor à água quente e insípida.»

Era assim que o Bule falava nos tempos da sua juventude. Estava sobre a mesa posta para o chá e foi levantado por mãos delicadas. Mas as mãos delicadas revelaram-se muito desajeitadas. O Bule caiu no chão, o bico quebrou-se, a asa partiu-se e da tampa nem se fala porque já se disse tudo o que havia a dizer sobre esse assunto.

O Bule jazia desmaiado no chão, deixando escorrer do seu interior a água a ferver. Foi um rude golpe. O pior foi que toda a gente se riu dele e da mão desajeitada que o deixara cair.

«Nunca me esquecerei desse dia! — dizia o Bule quando, mais tarde, falava com os seus botões acerca do passado. — Chamaram-me inválido e puseram-me a um canto. No dia seguinte deram-me a uma mulher que veio mendigar um pouco de comida. Caí na miséria, tão inútil por dentro como por fora.

Foi então que começou para mim uma vida melhor. Começa-se a vida sendo uma coisa e de repente passa-se a ser outra bem diferente.

Encheram-me de terra, o que para um Bule é o mesmo que ser enterrado, e na terra plantaram um bolbo de flor. Quem o pôs lá e me ofereceu, não sei dizer. Foi aí plantado, substituindo as folhas chinesas, a água a ferver, a asa e o bico.

O bolbo ficou na terra, dentro de mim, tornando-se o meu coração, o meu coração cheio de vida, coisa que nunca tinha possuído antes. Havia vida no meu interior, havia energia e poder. Palpitava. O bolbo germinou, libertou pensamentos e sentimentos que brotaram numa flor. Vi-a, sustentei-a e esqueci-me de mim próprio perante a sua beleza.

É uma bênção esquecermo-nos de nós próprios e vivermos para os outros. Não me vangloriei, nem sequer pensei em mim. Todos a admiravam e eu sentia-me honrado.

Um dia disseram que a flor merecia um vaso melhor. Partiram-me em dois, — que dor! — plantaram-na noutro vaso e atiraram-me para o pátio onde me encontro quebrado em mil bocados. Mas conservo esta recordação, e ninguém me pode tirar!»


Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas Collin. Entre outras obras, publicou: O Improvisador (1835), Nada como um menestrel (1837), Livro de Imagens sem Imagens (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847). Ganhou renome com os contos (Histórias e Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há farto material na web sobre o grande mestre.  

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