A edição de relançamento de A Rosa do Povo, do
escritor Carlos Drummond de Andrade, pela Record, em 1984, traz
uma apresentação do editor:
"Uma poesia marcada pelo momento
histórico." É assim que o crítico Antônio Houaiss qualifica
a poesia de Carlos Drummond de Andrade reunida em A Rosa do Povo, livro escrito durante a II Guerra Mundial,
publicado em 1945 e jamais reeditado isoladamente. Se a sua repercussão na
época foi imensa, quase quarenta anos depois podemos dizer que ele não perdeu o
vigor da emoção poética e a atualidade nervosa. Saindo de novo a público, A Rosa do Povo propõe o mesmo debate
inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos
problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se
fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam
a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de
intenso lirismo existencial. (Nota:
a edição de 1945 é da José Olympio)
..., e uma
apresentação de Carlos Drummond de Andrade:
Este
livro, publicado em 1945, embora recebesse boa acolhida do público e da
crítica, não teve mais nenhuma edição autônoma. Só veio a sair, depois,
incorporado a volumes de poesias completas do autor. Quis a Record fazê-lo
voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um
"tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito
durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são
identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo
pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento
moral é o mesmo - e está dito o necessário. C.D.A.
Comemorando
70 anos da 1ª. edição de A Rosa do Povo,
publico, nesta semana, 5 poemas, dos 55 presentes no livro, começando com Resíduo..., um dos mais emblemáticos de
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
e que, ironicamente, a maioria dos apreciadores da poesia declamada só o conhece
“um pouco”, pela metade, raramente por inteiro.
R
E S Í D U O
Carlos
Drummond de Andrade
De tudo
ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Ficou
um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
pouco
ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de
tudo fica um pouco.
Da
ponte bombardeada,
de duas
folhas de grama,
do maço
- vazio
- de cigarros, ficou um pouco.
Pois de
tudo fica um pouco.
Fica um
pouco de teu queixo
no
queixo de tua filha.
De teu
áspero silêncio
um
pouco ficou, um pouco
nos
muros zangados,
nas
folhas, mudas, que sobem.
Ficou
um pouco de tudo
no
pires de porcelana,
dragão
partido, flor branca,
ficou
um pouco
de ruga
na vossa testa,
retrato.
Se de
tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um
pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
na consoante?
no poço?
Um
pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo
fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de
tudo fica um pouco.
Oh abre
os vidros de loção
e abafa
o
insuportável mau cheiro da memória.
Mas de
tudo, terrível, fica um pouco,
e sob
as ondas ritmadas
e sob
as nuvens e os ventos
e sob
as pontes e sob os túneis
e sob
as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a
gosma e sob o vômito
e sob o
soluço, o cárcere, o esquecido
e sob
os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob
as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob
tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob
os gonzos da família e da classe,
fica
sempre um pouco de tudo.
Às
vezes um botão. Às vezes um rato.
*
ilustração de Joba Tridente.2015
Carlos
Drummond de Andrade
(Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de
prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito
jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do
século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o
mestre.
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