segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: Resíduo

A edição de relançamento de A Rosa do Povo, do escritor Carlos Drummond de Andrade, pela Record, em 1984, traz uma apresentação do editor:

"Uma poesia marcada pelo momento histórico." É assim que o crítico Antônio Houaiss qualifica a poesia de Carlos Drummond de Andrade reunida em A Rosa do Povo, livro escrito durante a II Guerra Mundial, publicado em 1945 e jamais reeditado isoladamente. Se a sua repercussão na época foi imensa, quase quarenta anos depois podemos dizer que ele não perdeu o vigor da emoção poética e a atualidade nervosa. Saindo de novo a público, A Rosa do Povo propõe o mesmo debate inesgotável sobre a situação do artista no mundo e sua posição em face dos problemas políticos e sociais do seu tempo. Drummond tomou posição e manteve-se fiel a seu ideário, embora reconhecendo a falácia de ilusões que se misturavam a perenes interesses de justiça, liberdade e paz. Ao lado disso, o livro é de intenso lirismo existencial. (Nota: a edição de 1945 é da José Olympio)

..., e uma apresentação de Carlos Drummond de Andrade:
Este livro, publicado em 1945, embora recebesse boa acolhida do público e da crítica, não teve mais nenhuma edição autônoma. Só veio a sair, depois, incorporado a volumes de poesias completas do autor. Quis a Record fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um "tempo", não só individual mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da II Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo - e está dito o necessário. C.D.A.

Comemorando 70 anos da 1ª. edição de A Rosa do Povo, publico, nesta semana, 5 poemas, dos 55 presentes no livro, começando com Resíduo..., um dos mais emblemáticos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e que, ironicamente, a maioria dos apreciadores da poesia declamada só o conhece “um pouco”, pela metade, raramente por inteiro.



R E S Í D U O
Carlos Drummond de Andrade

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

*
ilustração de Joba Tridente.2015


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. No site releitura há um bom material biográfico sobre o mestre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...