quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Hans Christian Andersen: O Colarinho Postiço

Aproveitando a comemoração da Semana da Criança, no Brasil, como desculpa, estou publicando uma série de sete contos do grande escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, que já apareceu por aqui, em setembro e outubro de 2014, com os emblemáticos O Livro MudoA Família Feliz e Só A Pura Verdade. A obra de Andersen, com sua rica alegoria, também (ou até mais) cala fundo na consciência do público adulto. Algumas ilustrações Edna F. Hart e ou de F. Reiß são das edições originais disponibilizadas pela Biblioteca Gutemberg e ou Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro. Ontem foi dia dos Saltadores. Hoje é o momento d’O Colarinho Postiço.



O COLARINHO POSTIÇO
Hans Christian Andersen
ilustração de Edna F. Hart (?)

Era uma vez um cavalheiro fino cujos artigos de toalete eram uma calçadeira e um pente. Mas tinha os mais bonitos colarinhos postiços do mundo e é sobre um colarinho que vamos ouvir uma história.

Certo colarinho pensava que estava na idade de casar. E aconteceu que foi para lavar juntamente com uma liga.

— Oh! Não! — disse o colarinho, olhando para a liga. — Nunca vi, na verdade, algo tão elegante e fino, tão doce e tão bonito. Posso perguntar-lhe o nome?

— Não digo — respondeu a liga. — Onde reside? — insistiu o colarinho.
Mas à liga, que era muito tímida, pareceu-lhe não ser de bom tom responder ao colarinho.

— É certamente uma tira! — continuou o colarinho. — Assim uma tira interior. Vejo bem que é tão útil como decorativa, minha menina.

— Não deve falar-me! — respondeu-lhe a liga. — Parece-me que não lhe dei o mínimo pretexto para isso!

— Sim, quando se é tão bonita como você! — retorquiu o colarinho. — É pretexto suficiente.

— Não se chegue mais! — disse a liga. — Tem um ar tão másculo! 

— Sou também um fino cavalheiro! Tenho calçadeira e pente!

E não era verdade. Quem os tinha era o dono do colarinho, mas ele estava a fanfarronar.

— Não se aproxime! — disse a liga. — Não estou habituada a isso!

— Pretensiosa! — afirmou o colarinho, e foram retirados da bacia de lavar. Levou goma, foi pendurado numa cadeira ao Sol e estendido na tábua de engomar. Veio o ferro com a sola quente.

— Senhora! — disse o colarinho. — Viuvinha! Estou a aquecer completamente! Estou a ficar outro, estou a ficar sem rugas. Está a queimar-me, a fazer buracos em mim! Ui!… Proponho-lhe casamento!

— Farrapo! — disse a sola do ferro de engomar, passando orgulhosa por cima do colarinho. Achava-se parte de uma caldeira a vapor. Devíamos era ir para o caminho de ferro puxar vagões.

— Farrapo! — ouviu-se.

O colarinho estava um pouco puído nas pontas. Veio então a tesoura de papel para as aparar.

— Oh! — disse o colarinho. — É com certeza primeira-bailarina! Como sabe estender as pernas! É do mais bonito que vi! Nenhum ser humano pode imitá-la!

— Isso sei eu! — disse a tesoura.

— Merecia ser condessa! — comentou o colarinho. — Tudo quanto tenho é um fino cavalheiro, uma calçadeira e um pente! Tivesse eu um condado!

— Está a declarar-se, este! — disse a tesoura. Zangada, deu-lhe uma valente tesourada.

Estava arrumado.

— Só me resta propor casamento ao pente! — pensou o colarinho. — É notável como conserva todos os dentes, meu caro! Nunca pensou em noivado?

— Sim, pode sabê-lo! — disse o pente. Estou comprometido com a calçadeira! — Comprometido!

Agora não havia mais ninguém para propor casamento. Decidiu então pôr essa ideia de lado.

Muito tempo depois, o colarinho foi parar a uma caixa, no moinho de papel. Havia uma grande sociedade de farrapos. Os finos de um lado e os grosseiros do outro. Arrumados como deve ser. Todos tinham muito que contar, mas o colarinho postiço tinha ainda mais. Era um verdadeiro gabarola.

— Tive tantas namoradas! Não podia andar sossegado. Era também um cavalheiro fino, com goma! Tinha uma calçadeira e um pente que nunca usava! Deviam ter-me visto, quando estava deitado de lado! Não esqueço nunca o meu primeiro namoro, era uma tira, tão fina, tão doce e tão encantadora. Afogou-se numa selha de água por mim! Havia também uma viúva que ficou em brasa, mas eu deixei-a até ela ficar preta! Houve a primeira-bailarina, deu-me a cutilada que ainda trago comigo. Era tão raivosa! O meu próprio pente enamorou-se de mim, perdeu todos os dentes por mal de amor. Sim, tive muitas experiências deste gênero! Mas do que sinto mais pena é da liga… quero dizer, da tira que se afogou na selha de água. Tenho muito a pesar-me na consciência. Bem posso necessitar fazer-me papel branco!

E assim foi, todos os farrapos se tornaram papel branco, mas o colarinho transformou-se precisamente neste pedaço de papel, que aqui vemos, onde a história está impressa, e isso porque fanfarronou tanto sobre o que nunca lhe acontecera.

É nisso que devemos pensar para não fazermos o mesmo, pois nunca havemos de saber, na verdade, se não viremos alguma vez também para a caixa de farrapos para ser transformados em papel branco e ter toda a nossa história nele impressa. Mesmo a mais secreta. E ter assim de correr mundo e contá-la.

Como o colarinho postiço.


Hans Christian Andersen nasceu em Odense, 1805, e morreu em Copenhague, 1875. O notório escritor dinamarquês teve uma infância pobre, mas enriquecida com as histórias que seu pai, humilde lhe contava, encenando com bonecos. Após a morte do pai, fugiu de casa e aos 14 anos começou a trabalhar no Teatro Real, em Copenhague. Andersen foi ator, corista, bailarino e autor. A maior parte de seus estudo foram financiados pelo diretor de teatro Jonas Collin. Entre outras obras, publicou: O Improvisador (1835), Nada como um menestrel (1837), Livro de Imagens sem Imagens (1840), O romance da minha vida (autobiografia em dois volumes, 1847). Ganhou renome com os contos (Histórias e Aventuras) para o público infantojuvenil, publicada de 1835 a 1872. Há farto material na web sobre o grande mestre.
  

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