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Clarice Lispector em foto (web) de Fraco e Moura (?) |
Em 2014 a escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem lançou, pela Editora da UFPR, o livro As duas Clarices - entre a Europa e a América: Leitura e tradução da obra de Clarice Lispector na França e Quebec. A obra, já em sua segunda edição, é fruto da tese de Doutorado em Língua e Literatura Francesa (Um olhar estrangeiro sobre a obra de Clarice Lispector - leitura e recepção da obra da autora na França e no Quebec.), apresentada na Universidade de São Paulo, em que Lúcia Cherem analisa importantes títulos literários de Lispector em português e em traduções francesas realizadas por tradutoras ligadas à causa feminista e feminina na França e no Canadá. Sem nenhum ranço acadêmico, As duas Clarices é de leitura fluída e a cada capítulo desperta um interesse ainda maior sobre a obra de Clarice Lispector (1920-1977) e o complexo processo de tradução de uma escritora dona de uma linguagem muito particular e extremamente original.
A se observar a introdução de
Lúcia, a envolvente fluidez, rara em teses acadêmicas, não poderia ser
diferente: “Desde que me conheço por gente ou leitora, leio os textos
de Clarice Lispector. É como conhecer alguém há muitos anos, e acredito que
nenhum relacionamento seja passível unicamente de explicação objetiva. (...)
Talvez por isso eu tenha buscado o caminho do diálogo, interessando-me pela
abordagem que essas mulheres estrangeiras haviam feito de sua obra. Elas também
confessavam que a ligação com os textos de Clarice era de outra ordem, mesmo
que não soubessem muito bem como explicá-la. Fui movida, então, por esse
interesse: perguntar, procurar saber, investigar por que a obra de Clarice
Lispector representava mais do que uma descoberta intelectual; por que sua
linguagem era perturbadora e, ao mesmo tempo, atraente? Que modo canhestro era
esse de fazer literatura? O que havia, afinal, de especial em sua escrita?
(...) Ter traduzido A mulher que matou os peixes para o francês, ao lado se
Séverine Rosset. havia me dado também a possibilidade de sentir de perto como ela
era lida na França nos anos 1980 e como o seu texto ecoava em língua
estrangeira. Lembro-me que eu dizia sempre à Séverine: temos que manter o tom
íntimo de Clarice, suas confidências, sua linguagem simples. Temos que cuidar
para o francês não pesar sobre ela, deixá-la enfim, existir na outra língua.
Não sei se conseguimos. Não ousei analisar nossa própria tradução neste
trabalho.”
Para conhecer um pouco deste
curioso gabinete das traduções, versões e adaptações, bem como o mítico
universo literário da Clarice Lispector, o Falas
ao Acaso convidou Lucia Peixoto
Cherem para uma entrevista. O assunto é extenso e o espaço pequeno...,
portanto, estou publicando a essência. A foto é de Matias Dala Stella.
Lúcia
Peixoto Cherem: Porque a
obra da escritora Clarice Lispector sempre me acompanhou, desde a adolescência,
como uma presença mesmo, uma aliada à minha solidão e à minha incompreensão do
que me sucedia naquela época. Havia
uma compreensão da dor, da tristeza que eu compartilhava. E também ela me
ensinava uma alegria difícil, mas que era verdadeira.
Falas: Como
conheceu a sua obra? Foi um encontro casual, de entrar em uma livraria ver o
título, folhear e comprar?
Lúcia: Acho que lendo crônicas. Também me lembro
que a notícia da morte dela me tocou muito e aí, com uns 17 anos, comecei a ler
toda a obra.
Falas: Há um
grande número de livros sobre Clarice Lispector persona e autora..., por que Clarice
ainda desperta tanto interesse no Brasil e no exterior?
Lúcia: Ela desperta muito interesse porque toca em
aspectos muito difíceis da alma humana de uma forma direta, fácil de perceber.
Busca uma cumplicidade com o leitor, não é um texto só elaborado para enredar,
ele também clama por companhia num mundo de solidão.
Falas: Há um
consenso do hermetismo da sua obra. Clarice é vista, principalmente pelos
críticos e pesquisadores, como uma pessoa triste, ensimesmada. Todavia, sinto
uma certa dose humor, ainda que negro ou nonsense, em seus textos. Estou
equivocado?
Lúcia: Sim, ela tem um certo humor, mas ninguém
quase fala sobre isso. No meio dos contos tem umas tiradas engraçadas. Tem um
conto chamado Legião estrangeira que trata da personagem Ofélia com bastante
humor...
Falas: Há
ainda algo que não se saiba sobre Clarice?
Lúcia: Acho que deve haver muita coisa ainda a ser
estudada na obra dela, apesar de muitos críticos já terem se debruçado sobre
seus escritos. Uma forma de lidar com a linguagem bastante singular.
Falas: Não me
refiro necessariamente a escritora, mas a pessoa Clarice. Ou não há como
dissociar? Há tanto “folclore” sobre ela
que fica difícil saber o que é verdade ou ficção.
Lúcia: Criou-se em torno dela um mito difícil de
desconstruir: tem um mistério, uma aura, a admiração pela beleza, pela
elegância, pelo silêncio de esfinge... Tem que se debruçar mais sobre a obra do
que sobre a pessoa. Isso é mais difícil, mais custoso, porque a obra requer
mergulho, rigor, dedicação como qualquer estudo. É mais fácil você repetir
algumas frases como verdades absolutas e achar que ela é um guru. É isso que
acaba aparecendo muito na internet, muita coisa que ela nunca escreveu começa a
aparecer como sendo dela. Como era uma escritora econômica, dizia muito com
poucas palavras, as pessoas vão emendando, interpretando, se colocando também,
ela chama para isso, de alguma forma.
Falas: Ainda
no campo do mistério pessoal e autoral, pelo misticismo em sua obra, ela era
uma bruxa das letras ou de ofício? O escritor Otto Lara Rezende tem razão ao
dizer que “O que Clarice faz não é literatura, e sim bruxaria.”? Ou tudo não
passa de marketing?
Lúcia: Muito mistério em cima de uma escrita forte,
carregada de uma vivência, de um trabalho muito muito difícil com a
linguagem. Como se ela colocasse tudo em jogo a cada frase. Uma espécie
de ruminar interno; quando aquilo sai é resultado de muito pensar, cismar,
quase enlouquecer. Mas justamente, ela é salva pela linguagem, pela palavra que
encontra como balaustrada que ela vai buscar lá no fundo de si mesma, nas
lembranças, nas leituras sedimentadas, nas entranhas, nos sentimentos, na
mistura das línguas que conhecia; é conhecimento profundo também da língua
portuguesa do Brasil, do uso das palavras, não é bruxaria, a meu ver. O texto
dela assustou mais de um mineiro: Otto, Rubem Braga, Fernando Sabino. E deve
ter perturbado também muito Paulo Mendes Campos, com que teve um relacionamento
amoroso. Por isso, essa coisa de chamar de bruxa, algo muito incompreensível,
faltavam antenas para ler a obra dela, no início, eu acho... Depois mais
leitores foram lidando melhor com a sua escrita.
Falas: Em seu
livro As Duas Clarice, você fala
também sobre o período em que ela se dedicou às artes plásticas, que me parece
mais uma vivência para o desenvolvimento e ou compreensão da própria escrita e
ou do gesto de escrever um texto ilustrado. Essa fase já mereceu estudo ou
ainda serve apenas de apêndice às teses?
Lúcia: Seus quadros não chamam a atenção de
especialistas no assunto. As análises giram mais em torno da relação que as
telas têm com sua escrita ou com os limites que a sua escrita lhe impunha. Para
fugir da palavra-prisão, ela pintou, criou personagens artistas plásticos para
sair das suas obsessões, da sua cabeça confusa. Outra forma de
sobrevivência, de ordenar o caos.
Falas: Há
algum texto ainda inédito da autora?
Lúcia: Há os textos do seu diário íntimo com
trechos em inglês, francês, italiano e português, mas acho que é pouca coisa.
Cartas que foram retiradas de Minhas Queridas pela família.
Falas: Na internet a
gente encontra vários poemas românticos, piegas e de autoajuda que teriam sido
escritos por ela. Eu não acredito que sejam, pois são muito ruins! Ela escreveu
poesia também? Se escreveu, por que nenhum pesquisador fala deles?
Lúcia: Ela escreveu um poema no início da
carreira e depois não quis mais escrever poesia, apesar de Manuel Bandeira ter
insistido com ela que era poeta. A poesia de que foi capaz está entremeada na
prosa. Em Perto do coração selvagem, por exemplo. Inventam que muitos
textos são de sua autoria, não sei de onde tiram isso... Não acompanho muito,
mas às vezes recebo textos que não são dela mesmo...
Falas: Clarice
é uma autora feminina ou feminista?
Lúcia: Acho que ela nunca foi uma feminista ativa, que lutou pelas mulheres abertamente,
mas fez isso de forma indireta colocando muitas personagens femininas em seus
livros. Essas personagens não abrem mão de um jeito de ser e se colocam
no mundo com uma presença de corpo e de atitude que muitas vezes vêm completar
uma visão mais masculina privilegiada nas narrativas de aventura, de ambição
política, literária; ela passa uma visão de ser, estar no mundo, viver o
presente, sem se incomodar muito com modismos ou gêneros. Ela veio ocupar este
espaço vago na literatura brasileira. Uma prosa com poesia também.
Falas: Você
fala muito em leitoras de Clarice, o seu público alvo (se é que há) é realmente
o feminino? Clarice escrevia para mulheres ou para qualquer leitor que quisesse
se aventurar em sua escrita metafísica?
Lúcia: Não, ela não escrevia pra mulheres, mas
acontece que foram as mulheres que mais a estudaram e a fizeram ser conhecida
no mundo das letras fora do Brasil. Se não fosse esse trabalho, talvez ela
fosse ainda uma desconhecida no exterior.
Falas: Quanto
tempo entre pesquisa para a tese e a publicação do livro?
Lúcia: Levei uns quatro anos para levantar os dados
e escrever a tese. Mas o livro veio anos depois com algumas complementações,
atualizações bibliográficas.
Falas: A
família de Clarice Lispector é acessível aos pesquisadores da obra de Clarice?
Lúcia: Sobre a família, eles têm medo de ser
invadidos e de as pessoas quererem ganhar dinheiro falando de Clarice. Eles
sempre me atenderam com distância, mas nunca negaram nada, foram sempre muito
corretos, principalmente Paulo Gurgel Valente, seu filho mais novo. Com a
crítica quebequense Claire Varin estabeleceram elos de amizade inclusive.
Falas: O texto
de As duas Clarices é fluido e não tem
o ranço de tese acadêmica, ele sofreu alguma modificação ao ser publicado em livro?
Lúcia: Não, não modifiquei muito. Tive a sorte de
pegar uma orientadora super acolhedora que me deixou fazer a tese em primeira
pessoa, eu me coloquei também sem problemas. Eu não queria fazer um estudo
acadêmico, seria estragar a leitura que tinha feito a vida toda sobre a
Clarice.
Falas: Você
pega Clarice pelo viés da tradução..., assim como Guimarães Rosa, Lispector é
intraduzível em qualquer língua?
Lúcia: Não é fácil traduzi-la porque ela tem uma
sintaxe particular e não enfeita muito. Quer pegar a força da palavra, a coisa
meio chão, passar a vida pela palavra e isso é muito duro de traduzir. Se você
começa a embelezar muito, o texto sofre e se perde. Há uma crueza que precisa
ser guardada, na minha opinião.
Falas: Em sua
análise das traduções da obra de Clarice Lispector para o francês, nota-se que
este é sempre um assunto delicado. Versão e adaptação podem ser consideradas
uma forma de tradução? É possível uma tradução pura de uma língua para a outra,
sem perder a originalidade?
Lúcia: Trata-se de uma questão super complexa. Tem
gente que acha que traduzir é fazer outra coisa, criar um outro texto. Eu tenho
muitas dúvidas a respeito disso. Ainda acho que dá pra tentar dar conta do
texto do autor, fazer um esforço de humildade para isso, mas está fora de moda
essa visão mais respeitosa da voz de um autor. Tradução pura não existe, não é
um processo mecânico, é sempre uma interpretação que pode se distanciar mais ou
menos do texto.
Falas: O que
lhe parece quando um crítico diz que algumas traduções são melhores que os
livros originais?
Lúcia: Esse é o caso das traduções dos livros de
Paulo Coelho para o francês, você pode melhorar sintaticamente um autor. Mas
quando há um trabalho real de linguagem, é preciso trabalhar também, entendendo
como o original funciona, é preciso ter uma coerência do começo ao fim, não é
um exercício, é uma busca árdua, uma luta de boxe, quase, você sua, procura, se
enfurece e se alegra quando acha que encontrou a melhor forma. Se o tradutor se
achar melhor que o autor, mais inteligente e criativo, então ele está criando
mesmo, pois que escreva seus livros e deixe o autor em paz. Por que precisa
dele afinal? Muleta?
Falas: Como
tem sido a receptividade crítica e dos leitores no Brasil?
Lúcia: Algumas pessoas me escrevem dizendo que
gostaram muito de ler, que é fácil e que mostra o quanto o texto dela faz parte
da minha vida. Quis dar o testemunho de uma leitura e da leitura de outras
mulheres que se sentiram próximas dela, pelo seu texto. Não uma leitura
distante e fria, mas uma leitura que nos faz sentir mais vivos e não mais
eruditos ou mais cultos. É uma experiência mais vital, na minha opinião, que
apenas intelectual.
Falas: Pensa
em lançar o livro também na Europa, e ou em língua francesa?
Lúcia: O capítulo número 1 (A identificação com
a obra de Clarice Lispector) foi
traduzido para o francês e será publicado numa revista do Quebec agora em 2015,
até o fim do ano.
Falas: Além da
análise dos acertos e erros e ou equívocos nas traduções das obras de Clarice,
você também analisa os textos da escritora, faz comparações e aprofunda a leitura
dos signos usados por ela. Essa subjetividade é perceptível a qualquer leitor ou
fica apenas no âmbito da crítica literária?
Lúcia: Penso que quem lê mais de perto a obra dela não são os críticos
literários, são as pessoas que sofrem, como ela sofreu, a agonia de estar viva,
o não saber o que fazer de si mesmo, como pessoas que tivessem sobrado, sem um
sentido criado para tocar o cotidiano. Ela aponta para a lucidez da
falta de sentido do mundo, da correria que nos impomos. Por isso assusta tanta
gente. Muitos críticos se tornam herméticos ou fazem análises muito acadêmicas
que não entram na questão central da literatura dela, a meu ver. Claro, há
gente como Benedito Nunes, Teresa Montero, Claire Varin, que chegam mais
pertinho dela... Não sei por que penso também no desespero de uma Carolina de
Jesus (Quarto de despejo), que dentro
da precariedade, conseguiu ficar em pé pela escrita, mesmo. São escritas
vitais, se escreve para se manter vivo, não muito por prazer estético. É como
escrever sobre a própria pele, como dizia Ferdinand Céline...
Falas: Não é
irônico a editora feminista des femmes
publicar obras de Clarice traduzidas Jacques Thiériot? Nesse caso os homens se
desvelaram mais sensíveis que as tradutoras ou o gênero não faz diferença?
Lúcia: O Jacques Thiériot é o tradutor do Guimarães
Rosa, um nome de prestígio, e a editora finalmente recorreu a ele porque
entendeu que muitas traduções tinham problemas, mas convidaram a mulher dele
também pra participar. Não sei ao certo qual foi a participação dela no trabalho.
Falas: Por
que é tão difícil classificar, enquadrar a obra de Clarice em algum gênero? A
cada leitura e ou releitura o conteúdo de suas obras ganha novo significado.
Lúcia: Não sei explicar onde ela se enquadra, não
consigo ver ali uma tradição ainda. Me parece que ela entra por uma esfera
espiritual muito aberta a muitas interpretações, como um texto de apoio e
também de desconserto (ela pode desconsertar muito a vida da gente, dependendo
do momento em que se lê), texto quase religioso, mas ao mesmo tempo
secular, misturando todo tipo de crença... Ela tem uma carga religiosa entre
aspas que está, me parece, na linguagem que ela usa, na força da linguagem. Sua
linguagem carrega, move o leitor que aceita entrar na sua forma de ver o mundo,
quem não entra nisso, não entende, não penetra e pode achar até muito chato ler
os textos dela.
Lúcia
Peixoto Cherem nasceu em Tijucas, Santa Catarina, em 1960. Neste
mesmo ano, com apenas um mês e meio de idade, veio com a família para Curitiba.
Na adolescência descobriu os textos de Clarice Lispector. Em 1978 cursou um ano
de Jornalismo na UFPR e em 1979 prestou novo vestibular, desta vez para Letras
- Francês. De 1983 a 1987 estudou e trabalhou na França. Em 1990 Lúcia e Séverine
Rosset traduziram para francês o livro A
mulher que matou os peixes (La femme
que a tué les poissons), de Clarice Lispector. No ano de 1992 passou a integrar
o corpo docente da Universidade Federal do Paraná como professora do Curso de
Letras - Francês, até se aposentar em 2015. Concluiu o doutorado em 2003, na
USP, apresentando a tese Um olhar
estrangeiro sobre a obra de Clarice Lispector - leitura e recepção da obra da
autora na França e no Quebec. Lúcia Cherem continua atuando na
pós-graduação do curso de Letras - Francês da UFPR.
As duas
Clarices - entre a Europa e a América: Leitura e tradução da obra de Clarice
Lispector na França e Quebec procura-se discutir o papel
que a literatura de Clarice Lispector teve entre o final dos anos 1970 e o
início dos 1990, na França e no Quebec, época em que a participação das
mulheres no mundo editorial cresce consideravelmente e em que se discute a
possível existência de uma escrita feminina. Editora UFPR.