terça-feira, 17 de novembro de 2015

Carlos Drummond de Andrade: Lira Itabirana

..., diante da tragédia que se abateu sobre a bucólica Bento Rodrigues, no município de Mariana, em Minas Gerais, no Brasil, dia 5 de novembro de 2015, quando toneladas de resíduo tóxico vazaram dos reservatórios da mineradora Samarco, controlada pela governamental Vale (ex Vale do Rio Doce) e a australiana BHP Billinton, destruindo tudo pela frente e ainda a caminho do mar..., muitos se lembraram do poema Lira Itabirana (1984), de Carlos Drummond de Andrade, sempre ele, o mestre que cantou o melancólico desaparecimento das Sete Quedas, já postado aqui. Todavia, revendo a obra do genial escritor, a gente encontra outras proféticas poesias: Ordem e O Resto, in Boitempo I (1968) e A Montanha Pulverizada, in Boitempo II (1973), por exemplo..., que você confere abaixo, junto com Lira Itabirana. O crime ambiental é considerado o pior já ocorrido no Brasil e o terceiro mais grave no mundo. O Rio Doce, acredita-se que já esteja morto. O meio ambiente, acredita-se que será preciso ao menos um século para recuperar alguma fauna e flora...



Carlos Drummond de Andrade
LIRA ITABIRANA

I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!

III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.

IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?




Carlos Drummond de Andrade
ORDEM

Quando a folhinha de Mariana
exata informativa santificada
regulava o tempo, as colheitas,
os casamentos e até a hora de morrer,
O mundo era mais inteligível,
pairava certa graça no viver.

Hoje quem é que pode?




Carlos Drummond de Andrade
O RESTO

No altar de cidade
a boca da mina
a boca desdentada da mina de ouro
onde a lagartixa herdeira única
de nossos maiores
grava em risco rápido
no frio, na erva seca, no cascalho
o epítome-epílogo
da grandeza.




Carlos Drummond de Andrade
A MONTANHA PULVERIZADA

Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.

Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.

De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.

Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem monstro de 5 locomotivas
– trem maior do mundo, tomem nota –
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.

*
ilustrações de Joba Tridente.2015


Carlos Drummond de Andrade  (Itabira, 31.10.1902 – Rio de Janeiro, 17.08.1987): cronista e escritor de prosa e verso. Farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, sendo considerado um dos mais importantes no cenário brasileiro do século 20. Nos sites Releitura e Projeto Memória há um bom material biográfico sobre o mestre.

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